O naufrágio do bacalhoeiro João Costa em 1952
Foi preciso matar o cão para terem o que comer
Paulo Dâmaso

20 Jun 2008
T
rês dos quatro pescadores ainda vivos que seguiam a bordo do bacalhoeiro "João Costa" que naufragou em 1952 recordaram a tragédia que, há 56 anos, mandou ao fundo uma das mais importantes embarcações da época perante uma plateia de alunos de uma escola da Cova-Gala, S. Pedro, Figueira da Foz, Portugal, numa iniciativa integrada na Semana Cultural dedicada aos "Usos e Costumes" daquela vila piscatória.


Hipólito Luís, Remígio Gonçalves e António Santos junto à réplica do bacalhoeiro naufragado há 56 anos.
Os rostos queimados pelo sol não mentem. Hipólito Luís, Remígio Gonçalves e António Santos são três "lobos do mar". Cansados e desgastados pela dura vida da pesca, os três homens da Cova-Gala têm uma história em comum sobreviveram ao naufrágio e a sete "longos e aflitivos" dias perdidos no mar à espera de auxílio (ver caixa).

Eram cerca de 20 horas quando um curto-circuito surpreendeu a tripulação. "Parecia pólvora. Pegámos nos extintores para apagar , mas o fogo progrediu rapidamente, devido ao facto das madeiras transpirarem o gasóleo que era usado no abastecimento da embarcação e não conseguimos dominar as chamas", recordou Hipólito Luís, de 76 anos.

Quinze minutos depois, o comandante deu ordem para abandonar o barco e foi aí que "se instalou a confusão". "Era cada um a ver quem se safava primeiro para agarrar lugar nos doris (botes salva-vidas). Vivemos momentos de pânico", relembra.

Aterrorizados, nos botes os tripulantes olhavam para o "João Costa" enquanto o barco adernava no mar. Estavam a 60 milhas norte da Ilha de S. Miguel, Açores. "Nunca nenhum de nós tinha passado por uma situação idêntica", afirmou, emocionado, Hipólito, o mais falador dos três sobreviventes.

Quase que por milagre, os 72 tripulantes do bacalhoeiro, a maioria natural do concelho da Figueira da Foz, mas também do Algarve e da Póvoa do Varzim, escaparam ilesos ao naufrágio.

À deriva no meio do oceano e à mercê das correntes, os pescadores perdiam as esperanças de serem salvos à medida que o tempo passava. "Valeu-nos a fé!", explicou Remígio Gonçalves, de 78 anos, conhecido como o "da caraga". Sem comida, sem bebida e sem forma de pedir ajuda, os homens fizeram o impensável. "Conseguimos manter a calma e milagrosamente salvamo-nos todos menos o cão, o Bobby, que tivemos que matar para comer. Já andávamos à deriva há uns dias. Foi a única forma de sobrevivermos", contou, com os olhos húmidos, Hipólito.

Durante sete dias foram vários barcos passaram pelos náufragos mas ninguém os via. "Não imaginavam o que se passava". Até que no dia 30, uma embarcação mais atenta reparou "nos homens ajoelhados que não estavam a pescar, antes a implorar ajuda". Estavam desidratados, esfomeados e sem forças. Foram salvos por dois barcos, um inglês e um alemão. "Naquele dia voltámos a nascer", desabafa, entredentes, António Santos, de 77 anos.
Fonte: "Jornal de Notícias", Portugal