Ilha Terceira a Cascais
As 849 milhas finais da travessia do Entre Pólos no Atlântico
Tau Golin e Ademir de Miranda (Gigante)

09 Jun 2008
S
eis dias para desafiar muitos dos nossos conhecimentos náuticos e a relação com o mar. Talvez, este tenha sido o principal sentido da nossa travessia da ilha Terceira, nos Açores, para Cascais, no continente europeu. Primeiro, uma previsão meteorológica, onde o calendário do tempo determinou a singradura e não os compromissos econômicos, sociais ou familiares. A absoluta exigência da navegação se impondo nas decisões. Nossa intenção inicial era zarpar de Angra do Heroísmo, ou dos Açores, em torno do dia 5. O Grib determinou a antecipação e, com isso, aumentou mais uns pontos como site de previsão do tempo. Feita para sete dias, o tempo foi confirmando dia-a-dia: a calmaria inicial, o vento aumentando e a pauleira dos últimos dois dias, quando a situação se complicaria no Atlântico Norte.

De Porto Alegre a Cascais, o Entre Pólos, principal personagem dessa travessia, já fez 8.556 milhas náuticas. Mas se mantém humilde, sólido e introspectivo. Quer bom senso de seus tripulantes. Reconhece o esforço de todos desde a partida, os quais foram alternando-se nas singraduras - Daniel, Fiala, Sílvio, Rui, Marco, Nilson, Rodrigo, Fernando, João Pedro, Cleuza, Junior e Tayná. A dupla agora a bordo já navegou junta mais de 5.200 milhas náuticas, computadas na costa brasileira – com duas Refenos – e no nosso “mar de dentro” (Guaíba e lagoa dos Patos).
Na foto acima, o Comandante Gigante comemora a balonada

De St. Maarten a ilha do Faial, foram 2.286 milhas náuticas. Depois de 15 dias de mar tínhamos a sensação de quem atinge seu objetivo, chegando à terra firme. Entretanto, sua proa teria que abrir o Atlântico em mais 913 mn. Os 28,54% de águas azuis que ainda faltavam para se completar a travessia, realizada em 3.199 mn. Agora restam as aproximadas 20 mn da costa portuguesa para entrar no rio Tejo e chegar a Lisboa. Pretendemos zarpar de Cascais na segunda, dia 9.

No dia 1º de junho, quando saímos de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, organizamos a nossa singradura em turnos de três horas. Zarpamos às 11:00 (horário local, três horas de fuso antecipado em relação Brasil; no continente são quatro), contornamos parte da ilha e pegamos o rumo leste. Velejamos com grande e genoa até a manhã do dia 2, quando auxiliamos com vela de porão. O vento caiu para 8 a 10 nós, com a velocidade baixando dos 5 nós. Este foi um procedimento padrão.

No início da tarde de domingo, o tempo começou a se armar, mas o temporal não veio. Estávamos deixando na popa o fim-de-mundo que atingiu horas depois os Açores. Tínhamos a confirmação pelo Navtex. A ameaça prosseguiu durante toda a noite escura e sem lua. E nós de sobreaviso, esperando... Nada que atrapalhasse nosso almoço de carne de panela com seleta de legumes. E um vinho do porto em homenagem aos navegadores de todos os tempos. Terminou nossa carne de St. Maarten, adocicada, de bicho confinado. Nos próximos dias usaríamos a carne de porco e gado e lingüiças compradas no Faial.

Os açorianos são exímios criadores de gados desde o século XV. Seu sistema de criação no pasto, associado às técnicas de pastoreio dos guaranis das missões, resultou na grande contribuição à pecuária do Rio Grande do Sul. Assim, não é difícil perceber o sabor da carne rio-grandense nas ilhas portuguesas do Atlântico.

Na terça, o vento continuou fraco, entre 6 a 8 nós, com pequenos picos até 11 nós, e o barômetro nas nuvens – 1029 mb -, com o motor ainda ligado. Tentamos uma vez receber o fax meteorológico através do rádio SSB, mas o sinal estava tão ruim que desistimos. Preferimos continuar confiando no Grib (www.grib.us), site usado desde Trinidad, Caribe, cuja previsão havíamos salvado no computador. Continuava preciso. Estávamos completamente sozinhos no mar, nenhuma outra embarcação à vista, ou conversa no VHF. Dia tranqüilo, permitindo que da cozinha saísse uma carne açoriana de panela, com tomates em cubos, massa e cenoura. Salada de pêssego com leite condensado. E... um vinhozinho do Porto para rebater o colesterol.

Pescamos um atum de aproximadamente 4 kg, retribuído ao mar. Logo um banho de água doce. A calmaria permitiu uma tarde de leitura a bordo. Na Horta havíamos percebido a excepcional organização náutica portuguesa, tudo sob o controle público, das cidades e freguesias locais. Materiais impressos, com informações para navegadores, além de referências históricas e turísticas. Tudo primorosamente ilustrado. Na despedida de Angra, na Terceira, o funcionário nos presenteou com um Directório: Marinas & Náutica de Recreio. Constam as marinas do continente e das ilhas portuguesas, com informações de serviços oferecidos, orientação de navegação, com coordenadas, etc. O livro Um giro pelo Atlântico, do Marçal Ceccon também dava “dicas” úteis. A leitura dos trabalhos históricos e culturais das Actas do Colóquio: O Faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX, além de outras publicações, permitiam compreender um pouco mais o espaço náutico e social em que estávamos navegando. Conversamos sobre as naus e caravelas de ouro, prata e esmeraldas, os galeões afundados nas águas em que estávamos nos combates dos portugueses e espanhóis com os ingleses e piratas. Sobre as embarcações que sucumbiram às tempestades na travessia do Atlântico Norte, as frotas que jazem nas profundezas, com a marinharia histórica, seus homens, cargas mulambentas ou tesouros incalculáveis.

A terça, dia 4, seria o marco de certa tranqüilidade.

Na quarta, o vento firmou de NW e W, com força 3, o que nos dava uma singradura de popa rasa ou 3/4. Às 8:00 levantamos o balão e colorimos o azul atlântico. Somente arriamos às 16:00 quando o vento aumentou e chegou aos 20 nós. Em seguida oscilou para uma média de 15 nós. Seguimos em asa de pombo, com o luxo de ainda acrescentar a trinqueta, fechando ao vento aquele buraquinho entre a grande e a genoa. O Entre Pólos prosseguia soberbo no RM 87, com três velas içadas. Ainda festejamos com um arroz com lingüiça de Horta, com salada de cebola, pepino, beterraba e cenoura. Avaliamos a quantidade de água doce nos tanques e no entardecer tivemos a visita de golfinhos. À noite repetimos o ritual. Conversa até depois das 23:00, pois escurece mesmo lá pelas 21:30. O primeiro turno de três horas iniciando às 24:00. Na foto acima, Tau na faina rumo a Cascais

Ingressamos em área de maior navegação e, na madrugada, avistamos dois navios. Começamos a sentir demasiadamente o frio, contrastando com os dias amenos. Nada melhor que uma feijoada ao meio-dia, com o aproveitamento da sobra do arroz com lingüiça do dia anterior e abacaxi. Mais um brinde aos navegadores com vinho do Porto, ritual que, com algum esforço..., insistimos em manter. À noite, desafiamos o frio com sopa de ervilha e legumes, com um gostinho de bacon.

Esfriou muito e a chuva terminou com o conforto do cockpit seco do Entre Pólos.

Entretanto, amanheceu sem chuva, mas com o vento bombando e oscilando, sem surpresas, de ¾ de popa para través e orça. À tarde, força do vento deu início ao período de variação que se prolongaria até chegada na costa européia entre 14 a 25 nós. Depois de um almoço de lombinho de porco no forno, com feijão, arroz feito com a sobra da sopa da janta e vinho, demos dois rizos no grande e reduzimos a genoa em 30%. A partir de então não conseguimos mais fazer refeições.

A onda também aumentou consideravelmente. Enrolamos a genoa e a substituímos pela trinqueta. E, assim, entramos na noite. O vento, em momentos, se mantinha em 25 nós. Abandonamos a programação dos turnos, com os dois em alerta, dormitando de tempos em tempos. Com o grande no segundo rizo e trinqueta, a velocidade do Entre Pólos se mantinha entre 6 a 8 nós. A onda de bordo produz o balanço lateral associado ao “de quilha”, na subida e surfada na onda. As vagas desencontradas, em alguns instantes, nos colocavam em um mar de ondas oscilantes de seis metros.

O vento lateral, entrando diretamente no cockpit, trazendo consigo a crista da onda, ou o respingo de seus estouros na borda, aumentava em muito o frio de congelar.

Ao amanhecer nos aproximamos das “hidrovias” que acompanham a costa européia e disciplinam as rotas dos navios. Entre elas existe um corredor de proteção, que as separam. Na mais próxima da costa, os navios singram no sentido sul-norte; na mais afastada (a que primeiro chegaríamos), norte-sul. Nelas as regras habituais de hierarquia de embarcações não existem. Não é incomum velejadores reclamarem que quase foram abalroados na costa européia, talvez por desconhecerem a regulamentação especial dessas áreas. No dia anterior, em rumos cruzados, um navio manobrou e passou pela nossa popa. Na nova situação, o direito seria dele e nós é que deveríamos alterar a rota.

Existe também alguma demasia sobre os perigos das “hidrovias”. Na verdade, os navios mantêm a distância entre eles em aproximadamente meia milha, permitindo bom espaço para embarcações menores. No rumo da Terceira para o continente, o radar começa a ficar povoado de sinais, todos se deslocando para o sul. Ao chegar na área de proteção, entre as “hidrovias”, percebe-se os dois movimentos. Na popa, a singradura para o Sul e, na proa, para o Norte.

Em rumos cruzados pudemos realizar o seguinte cálculo: um navio, ao ser avistado há 8 milhas, leva 19 minutos para abalroá-lo. Em proa a proa, o tempo, obviamente, é menor, pois basta diminuir o tempo conforme a velocidade do veleiro, ou outra embarcação.

Adiante as redes são outra preocupação. A impacto emocional, lúdico e histórico, ao se visualizar a costa portuguesa desde o mar, como Cristóvão Colombo chegando em Cascais em 1493, no retorno da descoberta da América, é acompanhado pelas preocupações de navegação. As bóias sinalizam uma quantidade impressionante de redes. Por sorte, todas de fundo.

O vento forte nos acompanhou até a costa. Quando a contornamos, passamos a ficar protegidos. Com o vento enfraquecendo, aumentou a temperatura, e começamos a ficar inconfortáveis em nossas roupas de tempo. Cansados, tresnoitados, sujos, mas com um sentimento humilde e calado dos desbravadores, atracamos na Marina de Cascais (foto) às 11:00 (horário local). Estamos nos relacionando com Cascais, aprendendo com sua história. Depois zarparemos para Lisboa, subindo o lendário rio Tejo.
Fotos: Tripulação do Entre Pólos



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