Passageiros de transatlântico lutaram contra piratas usando mesas e cadeiras
Um dos passageiros gritou: "Piratas!"
Matthias Gebauer e Dietmar Hipp

02 Mai 2009
Quando piratas atacaram o navio de passageiros MSC Melody no último sábado, o capitão conversava no bar. Os passageiros apresentaram uma versão dos acontecimentos que é mais dramática do que aquela narrada pela tripulação. Eles foram os primeiros a defender o navio, e estão agora criticando a tripulação, que vinha sendo retratada como um grupo de heróis.

Ciro Pinto está convencido de que agiu corretamente. Na tarde do último sábado, o capitão relaxava enquanto tomava um drinque no bar do transatlântico MSC Melody, conversando com duas passageiras sul-africanas. Elas lhe perguntaram se os bandos de piratas que vagam por aqueles mares representavam um problema para o cruzeiro. De forma alguma, disse a elas o experiente marujo. Afinal, o navio estava muito longe - mil milhas náuticas ou 1.852 quilômetros - da costa da Somália, no seu curso pelo Oceano Índico, algumas centenas de milhas ao sul das Seychelles, em um cruzeiro de 22 dias de Durban, na África do Sul, a Gênova, na Itália. Era inimaginável, e mesmo praticamente impossível, que piratas usando sandálias de dedo fossem capazes de atacá-los em tal região.

Mas o bate-papo foi interrompido abruptamente. Segundo testemunhas, dois passageiros entraram gritando no bar e contaram o que se passava ao capitão, gesticulando intensamente. Eles informaram ao capitão que uma lancha havia aparecido à popa, e vários homens armados preparavam-se para abordar o transatlântico. Um dos piratas já tentava escalar a amurada da embarcação. Vários passageiros pegavam desesperadamente mesas e cadeiras e as jogavam contra os homens que procuravam invadir o navio.


Navio italiano MSC Melody é acompanhado por fragata da marinha espanhola

Foi então que foram disparados os primeiros tiros. E foi nesse momento que o capitão entendeu o que estava acontecendo - o seu navio estava sendo atacado por piratas.

Pinto enviou por rádio um código de alarme para a sua tripulação, e ordenou a todos os passageiros que se recolhessem ao interior do navio imediatamente. A seguir ele foi para o convés. Os piratas continuavam tentando abordar o navio. Pinto abriu o cofre e entregou pistolas aos guardas de segurança a bordo. A seguir ele ordenou que o timoneiro colocasse o navio em uma rota de ziguezague, repelindo os piratas com a criação de grandes ondas. Os guardas de segurança, que a essa altura tinham chegado à popa do transatlântico, dispararam dois tiros de advertência para o ar.

Em uma questão de minutos, o grave perigo pareceu ter sido neutralizado. O fato de a tripulação do cruzeiro estar armada aparentemente surpreendeu os piratas. Segundo relatos da companhia MSC Cruises, os piratas afastaram-se em sua lancha, não sem antes dispararem contra o navio rajadas de tiros com os seus fuzis AK-47. Janelas foram estilhaçadas e balas ricochetearam nas laterais do casco da embarcação.

"Foi como uma guerra", anunciou com orgulho o capitão em uma estação de rádio italiana na manhã seguinte. "A tripulação e a equipe de segurança defenderam-se profissionalmente do ataque".

"Não dá para repelir piratas com mesas e cadeiras"
Toda a narrativa pode parecer o roteiro de um filme de ação de Hollywood, mas novos relatos de testemunhas indicam que o ataque ocorrido na noite de sábado foi bem mais dramático do que sugerem as versões até agora divulgadas. Pierfrancesco Vago, diretor da companhia de navegação italiana MSC, confirmou a versão que os passageiros do navio deram a "Spiegel Online", descrevendo as declarações deles como "autênticas".

Os novos detalhes revelam como o quão perto o navio esteve de ser sequestrado. "Nós fomos profissionais", disse Vago, bem abertamente. "Mas também tivemos sorte".

Ele chama isso de sorte. Mas passageiros como Jules Tayler, que estava na parte anterior do navio, classificam o que ocorreu de "puro acaso".

Inicialmente, ninguém percebeu que o navio estava sendo atacado. O primeiro aviso ocorreu quando uma mulher inclinou-se intuitivamente sobre a amurada na semi-escuridão e percebeu algo ao olhar para baixo. Ela voltou-se subitamente para os outros passageiros e disse: "Pessoal, há um barquinho ao nosso lado!".

Tayler e outros correram até a amurada e também viram aquilo que ele descreveu como cinco ou seis homens sentados em um barco pirata de convés descoberto. Um deles começou a subir a amurada do navio por uma corda. "Ele já estava na metade do caminho", diz Tayler. Um dos passageiros gritou: "Piratas!"

Sem hesitação, os passageiros pegaram tudo o que encontraram a sua volta. "Nós passamos imediatamente a atirar mesas e cadeiras contra o pirata que estava na corda", conta Tayler. Um dos objetos atingiu o pirata. Ele caiu e o barco fez meia-volta, recorda-se Taylor.

Segundo ele, a luta entre os passageiros e os piratas durou vários minutos. De repente, os piratas abriram fogo - Tayler diz que contou três rajadas de 25 a 30 tiros cada uma.

Por várias vezes o barco pirata aproximou-se do navio e desapareceu sob a popa, apenas para reaparecer. Tayler e os outros passageiros continuaram arremessando cadeiras, apesar dos tiros. Um passageiro foi baleado na perna, e uma bala atingiu de raspão a cabeça de um tripulante. De acordo com os passageiros, a equipe de segurança armada finalmente apareceu, entre seis e oito minutos após o início da luta,.

A testemunha Rolf R.*, que falou a "Spiegel Online" sobre o ataque no fim de semana, e Jules Tayler afirmaram estar convictos de que o fato de cadeiras e mesas terem sido jogadas contra os piratas salvou o navio. Se um único pirata armado tivesse conseguido abordar o navio, ele teria sido capaz de transformar facilmente em reféns os 600 passageiros que ouviam um concerto de música clássica em uma outra parte do navio no momento do incidente, diz Rolf R. "A tripulação ficou totalmente perplexa e ninguém sabia como disparar o alarme", diz Tayler, um britânico que atualmente mora na África do Sul.

Mas Vago, da MSC, vê as coisas de forma diferente: "Os passageiros obstruíram os atacantes, mas estes foram afugentados pelos tiros disparados pela nossa equipe de segurança".

Na última segunda-feira, o capitão Pinto, que foi elogiado como herói pela imprensa, relatou detalhes do ataque contra os passageiros. O capitão parecia quase estar zombando deles. "Não dá para repelir piratas com mesas e cadeiras", disse ele aos passageiros.

"Segundo o capitão, foi somente devido ao trabalho exemplar da sua tripulação e dele próprio que o navio foi capaz de repelir os piratas", diz Rolf R. Ao que parece, Pinto adorou o seu papel de herói.

Por que os passageiros não acham que o capitão Pinto tenha sido um herói
Rolf R. conta que vários passageiros ficaram irritados pela atitude do capitão, e que de forma alguma o veem como um herói. "Muitos questionam agora por que o capitão teve que ser primeiro alertado pelos passageiros sobre os disparos", diz R. Ele também não aceita as alegações feitas pela companhia de cruzeiro de que os passageiros jamais correram perigo. "Os tiros foram disparados contra janelas localizadas a apenas 50 metros de um grupo de várias centenas de passageiros que assistiam a um concerto de música clássica", afirma R.

Durante a reunião com os passageiros, o capitão teria se recusado a responder perguntas críticas. Mas os passageiros querem saber por que a tripulação demorou tanto para reagir. E por que nenhum guarda estava posicionado à noite no convés, quando o navio navegava próximo a uma região na qual ocorreram ataques piratas? E por que o radar do navio não disparou um alerta antecipado quando a embarcação pirata aproximou-se?

"Nós não estávamos na zona de risco"
As declarações de Vago, o diretor da MSC Cruises, demonstram como os navios de cruzeiro estão pouco preparados para enfrentar a ameaça dos ataques piratas. "Até este momento, temos nos preocupado mais com pratos sofisticados à base de peixe e com vinhos finos do que com ataques no alto-mar", afirma o executivo italiano. A companhia diz que mantém equipes de segurança nos seus navios nos últimos 25 anos, mas que, "por motivos legais", elas são obrigadas a deixar as suas armas em um cofre. O capitão só tem permissão para distribuir as armas depois que for soado um alarme.

No caso do MSC Melody, o tempo decorrido entre o soar do alarme e a adoção de atitudes defensivas foi muito curto para possibilitar que os piratas fossem capazes de abordar o navio. Não obstante, as fotos de janelas estilhaçadas em várias cabines demonstram que piratas frustrados, disparando como loucos, poderiam facilmente ferir e matar pessoas. Foi por isso que Pinto elogiou os passageiros. Ele contou que todos obedeceram imediatamente as suas ordens de recolherem-se para dentro do navio. Pinto disse que muitos deles deixaram para trás telefones celulares, bolsas e até mesmo os sapatos quando buscaram abrigo.

Vago, da MSC Cruises, repeliu as alegações de que a companhia colocou em risco a segurança dos seus passageiros. Pouco antes do início do cruzeiro, a empresa chegou até a alterar a rota do navio, a fim de afastar-se ainda mais do que originalmente planejado das perigosas águas costeiras somalis. "Não estávamos na zona de risco", enfatiza Vago. Mas o tamanho da zona de perigo aumenta a cada ataque pirata sucessivo. Os piratas estão operando em uma área cada vez mais extensa - uma tendência que aumentou ainda mais após o incidente com o MSC Melody.

Os detalhes do ocorrido também revelam muita coisa a respeito dos piratas - o tamanho de sua audácia e o seu alto nível de organização.

Pouco depois de os passageiros do navio terem ajudado a afugentar os atacantes e de o capitão haver alertado os navios de guerra internacionais, o telefone por satélite tocou no convés. "Vocês foram atacados e precisam de ajuda", disse um homem em um inglês ruim. "Nos passe as suas coordenada e nós iremos até vocês". O capitão Pinto achou a ligação estranha. O homem do outro lado da ilha não quis fornecer o nome do seu navio, de forma que o capitão recusou-se a passar a posição do MSC Melody. Ele pode ter salvo os passageiros e a tripulação de um outro ataque pirata.

"Os piratas tentaram nos atacar de novo"
"As luzes foram totalmente apagadas, e o navio ficou invisível para os piratas", diz Vago. "Mas, naquele momento, tivemos certeza de que os piratas tentavam obter dados sobre a nossa posição, de forma a nos atacarem novamente". O capitão diz acreditar que ouviu barulhos de uma rua ao fundo durante a conversa telefônica. E Vago acha que cúmplices em terra tentavam fornecer assistência aos piratas no mar.

O diretor da MSC está chocado com os bandos de piratas. Ele diz que jornalistas lhe disseram que um somali que alegou ser o chefe de um grupo de piratas gabou-se do ataque por telefone no sábado. O homem teria dito que agora os navios de passageiros são um novo alvo dos piratas. Segundo ele, desta vez eles fracassaram devido a problemas técnicos. "Os piratas parecem estar sendo incitados pelos navios de guerra e as iniciativas tomadas contra eles", afirma Vago. "É apenas uma questão de tempo até o próximo ataque".

Vago já tomou as primeiras medida em resposta ao ataque. "Não navegaremos mais pelas perigosas áreas do Oceano Índico próximas à costa somali", diz o diretor da companhia de navegação. Uma viagem pela região, que estava planejada para um outro navio da companhia, o MSC Symphonia, para o outono deste ano, foi cancelada. "Não viajaremos por essa rota. Em vez disso, navegaremos ao longo da costa do oeste da África".

Aparentemente, a empresa não deseja confiar de novo na sorte, conforme ocorreu no sábado.

Algumas boas notícias foram divulgadas na noite da última segunda-feira pelas forças armadas espanholas. A fragata Numancia deteve nove indivíduos suspeitos de serem piratas, que podem estar envolvidos no ataque contra o MSC Melody. Os homens foram encontrados perto do lugar onde o ataque ocorreu. Após terem sido detidos, eles foram entregues às autoridades das Seychelles porque o ataque ocorreu nas águas territoriais daquele país.

Mesmo assim, é possível que jamais saibamos se esses indivíduos estiveram realmente envolvidos no incidente.

* O nome do passageiro foi modificado e abreviado pelos editores, já que a família de Rolf R. não quer ser identificada.

Fonte (tradução): UOL, do UOL Jornais


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