Náufragos
De certa forma, o fato guarda semelhança com o oscarizado As Aventuras de Pi, aquele em que um jovem indiano sobrevive por semanas num bote salva-vidas, na companhia de um tigre-de-bengala. Tigres e tartarugas são muito diferentes, sei disso. A semelhança está naquilo que não vemos. O filme, além das cenas belíssimas, tem um dilema no final: ou você acredita na história fantasiosa da arca de Noé em que se transformou o barco à deriva, ou encara uma realidade dolorosa e cruel, protagonizada por humanos que se entredevoram na busca desesperada da sobrevivência. Somos todos náufragos de nossas memórias. Toda vez que falamos do passado, reescrevemos nossa própria história com outras tintas, selecionando lembranças que nos agradam e descartando muitas das que nos fazem sofrer. Não o fazemos por mal. Queremos agradar, queremos ser felizes, queremos que os outros nos reconheçam. Imagine-se então um homem sozinho, no meio do oceano, sem testemunhas nem câmeras espiãs como essas que nos acompanham por todos os lugares nas cidades. Esse homem, até pela licença poética de seus delírios, pode reinventar a sua aventura do modo que bem entender. Há muitos pontos obscuros na história de José Salvador Alvarenga. Não se sabe exatamente como seu companheiro de barco morreu, como ele se manteve tão saudável com pouco alimento, como driblou o sol, como encontrou tantas tartarugas para beber. Talvez ele até conte algum detalhe escabroso de sua viagem sem destino quando virar personagem de livro ou filme, pois logo alguém vai querer faturar em cima desse episódio. Aí, a gente escolhe no que acreditar. Por enquanto, fiquemos com o milagre da sobrevivência num mundo em que todos somos náufragos de esperanças.
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