Sob as ordens de um comandante gelado
A difícil convivência com Amyr Klink
Danilo Chagas Ribeiro, a partir de matéria da Revista Época


10 MAI 2004
Em 15 de abril passado o Paratii 2 retornou de expedição de 5 meses em que circunavegou a Antártida. Acostumado à navegação solitária, desta vez Amyr Klink levou 4 tripulantes.

A Revista Época publicou excelente matéria de 12 páginas entitulada "Coração Antártico", enfatizando o terrível convívio a bordo do Paratii 2 durante a expedição. O estilo 'gelado' deste comandante que adora a solidão da Antártida é fartamente ilustrado pelos depoimentos de dois tripulantes que abandonaram a expedição. O próprio Amyr mostra um bordo ainda não publicado de seu temperamento pouco dado ao convívio embarcado.

Desentendimentos, gritos, lágrimas e humilhação
Quem já foi tripulante em cruzeiros sabe o que é o confinamento a bordo. O pouco espaço e a faina diuturna é um desafio à capacidade de tolerância e um exercício para o combate ao egocentrismo.

Ao ler sobre a torturante convivência a bordo do Paratii 2, lembrei de uma navegada em que me foi difícil tolerar a conduta de um dos tripulantes que eu pensava conhecer melhor. Mas nunca sequer imaginei que alguém pudesse sair no soco a bordo, como li nesta matéria. Muito menos em se tratando de um navegador renomado.

Dos 4 tripulantes, apenas Flávio Fontes, o tripulante fixo do barco, foi até o final da viagem. Os outros 3 desembarcaram há 2 meses, em Ushuaia. Alex da Silva Ribeiro (proeiro e cozinheiro) arriou porque não suportou o comandante. Gibrail Rameck Júnior (mecânico) desembarcou porque o comandante não o tolerava mais, e o cinegrafista da National Geographic porque acabara seu trabalho.

Após "76 dias de desentendimentos, gritos, lágrimas e humilhação" atracaram em Port Lockroy, o ponto de partida e de chegada da circunavegação polar. Os tripulantes apelidaram a expedição de "Big Brother em alto-mar".
Alex disse que Amyr não o deixava ligar pra casa, depois de 3 meses de indiadas polares. O mesmo ocorreu com o mecânico, que ligou escondido, mas nem tanto: Flávio, o "Imediato", o denunciou. Segundo Alex, depois de gritar muito com ele e de chamar-lhe de ladrão, Amyr deu-lhe um soco pelas costas. Após o revide, saíram no tapa até serem apartados.
Hagar, o horrível, ficaria desconsolado se visse a cena.

Amyr nega que tenha apelado para a ignorância, assim como de chegada disse que tivera "Uma viagem sem incidentes".

O jeito de urinar. E de reclamar.
Júnior escreveu 100 páginas de diário. Em um dos trechos diz que pegou o comandante "comendo uma manga seca escondido. Que feio!". A comida era racionada e faltavam guloseimas. "Ele chegou a me mandar abrir o pão pra ver se eu estava comendo o queijo dele", disse Alex.

Amyr ficou furioso ao ver gotas de urina na tampa do vaso, exigindo que o tripulante a limpasse com desinfetante. Se a disciplina não for cobrada, o barco vira uma bagunça. Amyr tinha todo o direito de reclamar. Parece que aí o problema foi o jeito. O jeito de urinar, e de reclamar.

A palavra do comandante é a lei
Ao registrar-se uma embarcação na Capitania dos Portos, mesmo sendo de recreio, assume-se obrigatoriamente toda a responsabilidade pelo que vier a ocorrer com o barco e com sua tripulação.

Se alguém acidentar-se a bordo, p.ex., o comandante poderá ter que responder criminalmente, mesmo que por culpa exclusiva do tripulante.

Por outro lado, o comandante é quem dá as ordens. E pode mandar sozinho, ditatorialmente. Pode obrigar os tripulantes ao uso de coletes salva-vidas, se julgar que as condições de segurança exigem isso. Pode impedir o uso de bebida alcoólica a bordo, se julgar por si só que há riscos (resgatar um náufrago bêbado não deve ser fácil). Pode manter um rumo mesmo que a tripulação toda conclua que vá dar nas pedras. O comandante tem poderes para isso. E se assim não fosse, o barco poderia virar uma baderna.

Ao comandante cabe escolher a tripulação, e a ela cabe aceitar, ou não, o convite para embarcar. Uma vez embarcado, o tripulante deve submeter-se às ordens do comandante.

Não sei como classificar o Paratii 2, se como embarcação de uso comercial, de recreio, ou o que. Em embarcações de recreio observa-se na prática que o comandante relaciona-se com seus tripulantes procurando tornar o convívio o mais agradável possível. E isso não é 'exclusividade' do comandante. Todos a bordo devem buscar isso, como em uma família, em uma empresa, ou em um vaso de guerra, no porto seguro ou entre os icebergs da Antártida.

Em momentos de stress a bordo vê-se também comandantes gritando com a tripulação e repreendendo grandes amigos por bobagens, mas é circunstancial e lembra os marmanjos brigando em um mesmo time de peladas de futebol. Em regatas isso ocorre freqüentemente. Passados os momentos de faina complicada, entretanto, tudo volta ao normal.

"Para mim foi uma experiência legal"
O fato do comandante ser o chefe não impede que hajam motins a bordo, o que aliás, é histórico. Principalmente quando o bom senso no comando é escasso. Aí pode-se abordar o respeito entre as pessoas, o gênio de cada um, e tudo o mais que se possa imaginar em um regime confinado, mesmo em terra. Em uma tripulação de adultos safos no mar, como era o caso, espera-se que haja um clima de cooperação a bordo. Espera-se também que antes de uma expedição de longa duração seja feito um pequeno cruzeiro para testar a qualidade do convívio da tripulação.

"O Júnior foi uma pessoa baixo-astral do começo ao fim. Já o Alex é um cara sensacional mas nunca vai ser um navegador. Só funciona se mandar nele. Gostei muito desse problema de relacionamento com as pessoas. Para mim foi uma experiência legal. Foi uma novidade ter comportamentos tão diferentes no mesmo barco", declarou o comandante Amyr, 48 anos.

Para quem é comandante e dá as ordens, até pode ter sido legal. Já para a tripulação parece ter sido um inferno no gelo. Mesmo assim é difícil acreditar que alguém possa ser tão indiferente ao que está acontecendo a bordo, a ponto de classificar de 'legal' um clima tão ruim como este relatado. É preciso ser gelado demais.

De ídolo e amigo, ao desprezo
Amyr não deixava o pessoal ver os vídeos no computador. "Ele via e contava pra gente. Só gritava que o barco era dele e que era o dele que estava na reta se algo desse errado. Só consegui ter notícias da família no dia em que eu disse:'Amyr, você tem mãe?'."

Alex vem de família de homens do mar, serviu à Marinha e naufragou no pesqueiro Chile Dos na costa gaúcha em setembro passado, onde viu colegas morrerem. No bote salva-vidas por 4 dias, ele e mais 7 tripulantes inventavam assunto: "Eu dizia que sairia dali e faria uma viagem pelo mundo porque tinha um amigo (Fontes, o Imediato do Paratii 2) que trabalhava para o Amyr Klink.", disse Alex.

Já a bordo do Paratii 2, Alex conta que rezavam para Amyr acordar de bom humor. "Teve um dia que, depois de eu limpar o banheiro por 2 horas, o Amyr não estava satisfeito. Fiquei mais 2 horas limpando com uma escova de dentes".

Júnior, dono da marina Perequê-Açu, em Paraty, já conhecia Amyr há tempo. Diz que Amyr era uma referência para ele. "Amyr se transformou em outra pessoa no barco. Se eu pudesse, tinha saltado em cima de um iceberg." O trauma foi tão grande na submissão aos caprichos do comandante Amyr que Júnior ainda hoje acorda-se em pânico no meio da noite.

O gosto pelo gelo: "Odeio comunicação"
Alex disse que enquanto chorava na cabine, Amyr ouvia ópera.
Amyr declarou que este inferno era ótimo para ele: "A única coisa que não funcionou na viagem foi a comunicação. Eles entravam em crise, se desesperavam, choravam. Eu achei ótimo. Odeio comunicação. Ficar mandando notícias, falando pra site, essas porcarias todas. Saudades a gente guarda pra volta. Não tenho saco pra ficar brincando de volta ao mundo. Não tenho saco para ficar agüentando a dor dos outros...".

Isto parece explicar o gosto de Amyr Klink pelas navegadas solitárias. Prefere estar sozinho, sente-se bem assim. Mas já que optou por ter companhia na Antártida, entende-se que poderia ter removido o gelo, pelo menos de dentro do barco.

 

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