Aventuras do Carumbé, de Porto Alegre a Rio Grande
Descobrindo a Lagoa dos Patos em num Tchezinho
José Antônio S. Echeverria

Motivação

Tenho como costume acessar o site popa.com.br para ver a previsão do tempo e a imagem do Guaíba. Certo dia, havia um link denominado Cruzeiro-Regata Almirante Tamandaré, “Maior evento náutico do hemisfério sul”, acessei, obtive informações e passei a conhecer um pouco da história deste evento cujo percurso vai de Porto Alegre até Rio Grande.

Alguns dias após, meu colega e, futuro tripulante, Marcos Wünsche, tomou conhecimento e perguntou da possibilidade de participarmos do evento. Respondi, num primeiro momento, que não era coisa para nós, porém era possível. Assim, o assunto passou a ser tema diário de comentários, especulações e, com o passar do tempo, foi tomando forma de participação.

Com Celso Ribeiro, grande motivador e entusiasta, conversamos a respeito da possibilidade de ida a RGR num Tchê17 e ele, prontamente nos passou informações e confiança no sucesso da empreitada.

A probabilidade era de inúmeros inscritos, o evento teria forte apoio da Marinha do Brasil e da Comissão Organizadora, portanto, concluímos que se não encarássemos desta vez, não faríamos uma viagem tão distante em outro momento, era o “cavalo encilhado”.

Iniciaram-se os preparativos, diversos cálculos (água, gasolina, comida, tempo, velocidade, etc). Nesta fase de planejamento, consideramos situações inesperadas, soluções, inclusive saídas motorando para medir consumo de combustível. Paralelo a isto, a comissão organizadora, através do popa, publicava o 2º Aviso da Cruzeiro-Regata e, logo a seguir, o inicio das reuniões.

Início das inscrições, vamos ou não? Foi uma decisão difícil, havia um grupo de amigos e conhecidos que diziam que a viagem seria difícil, uma loucura, porém, havia a turma dos mais confiantes que encorajavam a participação do Tchê17, o Carumbé, com 2 tripulantes. Para entender a preocupação dos menos otimistas, o Tchê17 é um veleiro com aproximadamente 5 metros, cabine com 1,20m de altura sem maiores confortos, não há sanitário, nem geladeira etc, e, no caso do Carumbé, equipado com um motor Johnson de 4,0hp, luzes de navegação, gps portátil e rádio de comunicação.

Enfim, nos inscrevemos no primeiro período, aproveitando o desconto, então iniciamos aquisição dos mantimentos, 30 litros de água, 50 litros de gasolina, diversos alimentos não perecíveis, cabos extras, ferramentas, etc. Além disso, conseguimos emprestado, como reserva, um motor Mercury de 7,50hp rabeta longa com o amigo Sr Ivan Rodrigues do Iate Clube Guaíba e uma bateria extra com o Sr. Silvio, do Veleiro Terra Brasilis, da Marina Lessa. Paralelo a isto, haja vista que estávamos na categoria cruzeiro, solicitamos saída da Marina Lessa, onde fica o Carumbé, e obtivemos autorização do Danilo Ribeiro, organizador do evento.

Dentro das dificuldades que se previam, cogitamos a possibilidade de não chegarmos ao final, e portanto pensamos na ida, talvez a Tapes, São Lourenço....de toda forma nosso desejo era tentar.

1ª Perna: Largada – Praia do Sítio/Itapuã

Momento de nervosismo, aquele friozinho na barriga, carregar o carro, e ainda ficamos 2 horas carregando o barco. O Tchezinho baixou em torno de 8cm com tudo dentro. Última carguinha na bateria, mergulhar para colar os adesivos da regata e dos patrocinadores, acomodar todas as bugigangas, ligar o motor, soltar as amarras, logo estávamos navegando à noite nas águas do Guaíba.

Experiência nova, nenhum dos dois havia enfrentado águas durante a noite até aquele momento, e não enxergávamos quase nada mesmo, foi neste momento que agradecemos a existência do GPS. O vento soprava do quadrante Este, levantamos as velas, colocamos os coletes e nos amarramos ao barco, atitude de segurança que executamos em todos os períodos noturnos da regata-cruzeiro.

Fomos deixando a Ilha do Chico Manoel por bombordo, com velocidade média de 4 nós (GPS). Chegando no meio do rio, o vento e as ondas aumentaram, na nossa primeira navegada noturna, algumas ondas esporádicas passavam por cima da proa, e não conseguíamos enxergá-las o que nos causava insegurança, medo, optamos por rizar a genoa.

Esta primeira etapa, de curto percurso, serviu para mostrar as dificuldades de estar com o barco carregado e velejar “cego a noite” confiando no GPS. O rádio estava mudo, percebemos defeito no contato do cabo da antena, ficamos preocupados, pois sem rádio não poderíamos prosseguir e teríamos que desistir. Com muita calma meu tripulante Marcos Wünsche (foto acima) conseguiu consertar antes de completar a primeira etapa. Neste fato, agradecemos ao Congere, maior veleiro participante, por responder ao nosso aviso de “teste”.

Chegamos a Praia do Sítio por volta das 3 horas do dia 23/03/2007, a imagem era bela e apesar da escuridão víamos inúmeros barcos fundeados, com apenas a luz de mastroacessa, abrigados sob a proteção dos morros de Itapuã.

2ª Perna: Praia do Sítio/Itapuã - Canal do Feitoria

Alvorada às 5h e meia, após 2h e meia de sono, era hora de enfrentar a desconhecida Lagoa dos Patos. Tudo estava calmo, aos poucos os primeiros raios de sol apareceram por cima dos morros. Pegamos o fogareiro e o “liquinho” e esquentamos leite para o café, diga-se de passagem, a única vez que usamos estes utensílios. Logo veio a embarcação do Veleiros do Sul, com o Sr Odécio Adam chamando os velejadores de barcos menores que 27.8 pés, para a largada, na lagoa, às 7 horas. A seguir passou o Danilo Ribeiro, num bote, fotografando os participantes de evento, como a foto ao lado.

Ligamos o motor e fomos em direção a linha de largada, para nós, uma formalidade, pois estávamos participando do evento na classe cruzeiro.

A vista do farol de Itapuã com os barcos fundeados ao fundo e o amanhecer, num dia de céu de brigadeiro, nos dava a visão de um cartão postal. Como o vento era fraco e do quadrante E, ligamos o motor e fomos adiante, afinal, tínhamos que tentar manter a média de 4 nós, prevista pela organização. Os barcos foram distanciando-se, aqueles que mantinham o motor ligado, foram a frente, os demais montaram a vela balão.

O dia estava ensolarado, o que sugeria envergar nosso “garboso” guarda-sol, como mencionou o colega A. J. Machado, e por volta das 10h o navio de carga Trevo Norte passou pelo bombordo de nosso Tchê. O tempo foi passando sem maiores acontecimentos, veleiros que nos ultrapassavam a distância, enfim. Para quebrar a monotonia e como o calor era bem presente, a escadinha do barco tornou-se aliada para curtir bons banhos.

Por volta das 14:15 fomos ultrapassados pelo navio da Marinha Comandante Varella. Logo a seguir, tivemos a imagem de um belo atrativo turístico da Lagoa dos Patos, o navio afundado Álvaro Alberto, fascinante visão, presente em nossa imaginação através dos comentários dos palestrantes da regata-cruzeiro.

Quase no final do Saco de Tapes, no meio da lagoa, percebemos que havia um pouco de sinal no aparelho de telefone celular, o suficiente para comunicar-se com os entes queridos, diga-se o único local no meio da lagoa que obtivemos sinal de celular. Passamos o final do Saco de Tapes, por volta das 16 horas, e avistamos nuvens carregadas que vinham em nossa direção, fechando o céu por Este/Oeste, uma chuva de verão, seguida de um lindo arco-íris. Ao entardecer cruzamos com o navio Plácido de Castro, empurrador, vigiado pelo Farol de Cristovão Pereira.

Iniciada a noite, colocamos os coletes e nos prendemos ao barco, como medida de segurança, sabíamos que o vento mudaria e a intensidade deveria aumentar, tendo em vista uma frente de sul. Ainda, por segurança, em torno das 21 horas, decidimos rizar a genoa, não sabíamos como ondas e o vento se comportariam e, “as cegas”, fomos conservadores.

A partir daí, conversas no rádio davam informações quanto a posição de redes de pesca, tentamos anotar todas as coordenadas passadas pelos outros barcos. O navio Comandante Varella informava a intensidade do vento de 15 nós de direção sul, no local em que se encontrava, provavelmente próximo ao início do canal da feitoria. A próxima informação, de outro barco da regata, era de que as rajadas chegavam a 20 nós. Alguns barcos informaram a opção de busca por abrigo, durante a noite, no fundeadouro de Bojuru.

Com o passar das horas, o vento soprando mais forte, decidimos fazer o mesmo e, por segurança, em torno de 01 hora da madrugada de sábado, desviamos nosso rumo para o fundeadouro de Bojuru. Desconhecendo o caminho e o local, nos valemos da carta da Lagoa dos Patos para obter a coordenada central do abrigo, inserimos no GPS e fomos para esse lugar.

Ainda durante a noite, percebemos que as outras embarcações estavam repassando coordenadas para o navio da Marinha, o qual não ouvíamos e também não nos escutava. Agradecemos a solicitação atendida pelo Comandante do veleiro Goofy, que estava repassando coordenadas de outros veleiros, que repassasse nossas coordenadas para o navio da Marinha, uma vez que não tínhamos contato via rádio VHF com este navio.

Como a distância era grande, acrescido de movimentos de quem está “meio” perdido, levamos em torno de 4 horas para chegar, largando ferro as cinco e meia da manhã.

Acordamos às 06 horas e 30 minutos, neste momento avistamos uma lancha da Marinha, e já iniciando a velejada o Colibri e o Sunshine, tenho quase certeza dos nomes. Deixamos o café da manhã de lado pra não atrasar e rapidamente “desrizamos” a genoa, levantamos ferro, ligamos o motor e de pronto subimos as velas, desligamos o motor e, quando saíamos do abrigo avistamos o Capitão Krok, mais ao sul.

O céu estava cinzento, aos poucos os barcos foram distanciando-se, as ondas da lagoa estavam grandes, colocando os velejadores em alerta. Apesar de contar com a sorte durante a noite, pois não encontramos nenhuma rede de pesca, logo no início da velejada sentimos o barco “freiar”, - uma rede! Avisa o tripulante Marcos Wunsche, mas por sorte maior ainda, soltou-se sozinha, redobramos a atenção. Encontramos outra rede, desviamos e, em seguida, encontramos outra cortada (solta), provavelmente por algum veleiro participante da regata, na noite anterior. O barco adernava bastante, porém decidimos manter as velas sem rizar, necessitávamos de velocidade para tentar acompanhar os outros.

As ondas mostravam muita força, exigiam cuidado para subir e descê-las, e, em alguns momentos passavam por cima da proa, em outros, batiam no costado respingando água sobre todo o barco e velas. Cabe salientar que, apesar do céu cinzento, a água estava verde e, quando borbulhava junto ao leme mostrava-se transparente. Foi neste sábado que tivemos a impressão de velejar no mar, não somente pelas ondas, mas pela falta de referência em terra, velejamos de 6 a 7 horas sem ver em nenhuma parte do horizonte referência em terra. Em função da inclinação excessiva do barco, todas as atividades que necessitavam entrar na cabine, como pegar máquina fotográfica, bebidas, comidas, etc, ficaram prejudicadas, necessitavam ser feitas rapidamente, quando orçávamos um pouco mais. Neste trecho, entre Bojuru e o início do canal da Feitoria, obtivemos o recorde de velocidade do Carumbé, 7,2 nós, no GPS, discussões à parte, é o único equipamento para medir velocidade que possuo.

O dia foi passando e nos exigindo muita atenção. A sensação de não enxergar terra em nenhuma direção e saber que a chegada dependia exclusivamente de nosso esforço foi preocupando-nos, mas em certo momento avistamos a bóia de início do Canal da Feitoria, sentimos que a partir desse momento iniciaria o fim da cansativa regata-cruzeiro (no veleiro Tchê 17 pés). Cruzamos a bóia final por volta das 13horas e 30 minutos. Logo a nossa frente ia, o veleiro Capitão Krok, com o Comandante Silvio e Alexandre, que sempre atenderam com dedicação e presteza nossas solicitações pelo rádio. Pouco atrás vinham dois veleiros velozes, o Charlie Bravo V e o Riacho Doce, que logo em seguida nos ultrapassaram.

Com a chegada destes veleiros, estava concluído o trajeto da regata-cruzeiro Porto Alegre-Rio Grande. O navio da Marinha, Comandante Varella, que estava nas proximidades da linha de chegada, suspendeu e rumou para Rio Grande.

Canal da Feitoria

Iniciamos análises e especulações sobre como seria o trajeto no canal da feitoria, algo em torno de 40 milhas náuticas. O GPS informava nossa chegada no RGYC às 21 horas, pelo caminho sugerido, porém, com as eventualidades que surgem e, como não seguimos exatamente a rota sugerida, ficamos preocupados, pois para o evento em si, havia o aviso de proibição de navegar o canal à noite.

Neste exato momento, ouvimos o Danilo Ribeiro, do Charlie Bravo V, no rádio, comunicando-se com o Comandante Varella, questionando sobre o apoio da Marinha, no canal da feitoria, aos veleiros e também ao menor veleiro do evento que vinha por último, nós. Aproveitamos o assunto e questionamos a respeito da regra de navegação à noite no canal da feitoria, respondeu-nos afirmando a existência da regra e sugerindo ir para Pelotas passar à noite.

Após esta conversa no canal 14 do VHF, o Comandante do Riacho Doce, peço desculpas caso não tenha sido, falou da possibilidade de alcançar o Saco do Medanha até o anoitecer, o que era possível, assim poderíamos continuar a navegada, pois haveria iluminação e deveríamos utilizar como referência visual às lanchas que fazem o trajeto São José do Norte a Rio Grande, porém, ficamos receosos quanto ao canal da feitoria principalmente pela falta de experiência em navegação à noite.

No instante seguinte, o Danilo Ribeiro, que notadamente havia ficado chateado em dar-nos a orientação de que deveríamos seguir para Pelotas, comunicou que o Sr. Paulo Hennig, comandante do Charlie Bravo V, oferecia reboque ao nosso Tchezinho, o Carumbé, até o RGYC. De pronto aceitamos, ficamos muito felizes e até, um tanto emocionados, com a atitude dos nobres colegas velejadores.

Já havíamos cruzado a linha de chegada, a bóia 82, creio que era essa, e, apesar de não termos avarias e de não termos solicitado o “reboque”, esta atitude possibilitaria nossa chegada ao RGYC com tranqüilidade no sábado, dentro das regras no que tange aos horários de navegação na feitoria. No trajeto passamos por outros barcos, como Halifar, Goofy, Cap Krok, Sunshine, Riacho Doce, Comandante Varella, etc. Chegamos na cidade de Rio Grande ao entardecer, com belas imagens do pôr-do-sol (foto ao lado), passamos pelo porto e, a seguir, o RGYC, que estava lotado de embarcações, e conseguimos ali uma vaguinha para o Carumbé.

Era chegada a hora de arrumar a bagunça, separar as roupas, bolsas, roupas de cama que estavam na sua grande parte úmidas, além de organizar a inúmeras bugigangas que levamos, ensacar o lixo da viagem, levar para local adequado. Ao descermos do Carumbé para tomar um banho de chuveiro quente, até que enfim, a sensação em terra era de que o chão e as paredes se moviam, semelhante a embarcação na água. Isto só passou dois dias depois.

Em função do enorme cansaço, fizemos uma refeição leve e fomos dormir. Devido à iluminação forte que entra pelo Tchê, acordamos às 7h e 30minutos de domingo. O cansaço não estava superado, porém não conseguimos voltar a dormir, então optamos em não participar do desfile das embarcações no porto, bem como da festa e da premiação posterior. Partimos para Porto Alegre em ônibus de linha, dormindo durante todo o percurso. O corpo sentia falta de sais minerais e de ingerir bebidas isotônicas, quando chegamos em POA. Apesar disso estávamos “faceiros” com o resultado.

Agradecimentos

Foi muito gratificante para nós a participação no Cruzeiro-Regata Almirante Tamandaré, evento sabiamente organizado, principalmente pelo intuito de agregar pessoas no meio náutico, mantendo assim uma tradição de mais de 50 anos.

Agradecemos aos organizadores, Marinha do Brasil, Popa.com.br, Rio Grande Yacht Club e Veleiros do Sul; aos amigos e familiares pelo entusiasmo e apoio a nossa “aventura”. Agradecemos aos que torceram, aos que fizeram perguntas, aos que deram dicas, aos que emprestaram equipamentos, enfim aqueles que ajudaram a tornar esta “navegada” possível, desde o início das palestras até a chegada em Rio Grande.

O aprendizado foi imenso e com certeza saímos deste evento muito melhores do que entramos.

Bons Ventos a Todos.

Comandante do Carumbé

José Antônio S. Echeverria

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19 Abr 2007
Celso Chagas Ribeiro
A Travessia do Zé e Marcos / Carumbé - Lessa !

Pouco conheço sobre travessias dessa nossa lagoa maior. Mas o fato está registrado nas páginas do "Popa", e, em algum tempo, alguém a cruzará, acompanhado de um proeiro, em um veleiro menor, de forma mais rápida e sem desembarcar.
Uma coisa se evidencia: É bom levar na bagagem um bom condicionamento físico, estabilidade emocional e um lastro enorme feito de pura parceria.

Aquele abraço,

Celso C. Ribeiro

E/T : A Tripulação ainda declara que voltou melhor.