Velejando Solitário pelo Guaíba e Lagoa dos Patos
Rogério Tavares Constante

 

A navegação solitária é, talvez, um dos desafios mais freqüentes entre navegadores à vela, especialmente aqueles que leram o livro “velejando solitário ao redor do mundo” de Joshua Slocum[1], ou outros mais modernos como o do Hélio Setti, do Serge Testa, e do Amyr Klink. Sem pretensões de comparação entre a grande epopéia de Slocum, ou a dos outros navegantes, e o meu quase insignificante passeio de final de semana, apresento o meu relato de navegação que pelo menos compartilha o espírito destas grandes aventuras individuais, ainda que em pequena escala.

 

A minha aventura à vela estava planejada da seguinte forma: sair de Porto Alegre, ao anoitecer de sexta-feira (17/01/2003), indo até a praia do Birú, em Tapes, sem escalas. Este percurso tem aproximadamente 60 MN (112 Km), ou seja, aproximadamente 12 horas a uma velocidade média de 5 nós; passar o sábado descansando e aproveitando a praia; voltar para Porto Alegre, ao amanhecer de domingo, novamente sem escalas.  

Não foram necessários grandes preparativos. O percurso já era familiar. As cartas foram previamente re-estudadas e foi feita uma lista de “waypoints” para a Lagoa dos Patos e o Guaíba. Uma passada no supermercado para completar as provisões, comprar gasolina, dois sacos de gelo e pronto. O Parceria, um Marbe 24, já estava em condições de navegação.

 

I – Do ICG ao Farol de Itapuã

 

 

Nesta parte, irei transcrever as anotações que fiz no diário de bordo, durante a viagem:

_ Saída à 19h40min. Tentei avisar a portaria pelo rádio, mas ninguém respondeu. Isto quase sempre acontece. O céu está limpo, com nuvens somente no W, bem no lugar onde o sol se põe. Tem um temporal lá. Provavelmente ele está puxando este lestezinho: 10-12 nós. O Parceria está a uns 5 nós, em média.

_ 20h33min. O vento aumentou para uns 15 nós. Continuo com todo pano. O Parceria está andando bem, levemente adernado. Não deu para ver o sol se pôr, mas a cor do céu, no oeste, está esplendida. Nem precisava tanto, já que a lua cheia, nascendo pelo leste, dá um espetáculo à parte. Estou conseguindo deixar o Parceria navegar sozinho, com o leme fixo, deixando a genoa um pouco mais caçada que a grande. Isto me dá um tempo para fazer outras coisas, inclusive escrever neste diário.

_ 21h. Passando a Ponta Grossa. Ainda tem um resto de claridade do sol. O vento continua o mesmo.

_ 22h16min. Través da Chico Manuel. Estou escrevendo com a iluminação da lua. Aqui tem um pouco mais de ondas que estão batendo um pouco. O Parceria continua navegando sozinho, a uns 6 nós.

_ 24h. Entrando no canal do campista. Um cheiro forte de fumaça vem de Itapuã. Espero que a queimada não seja na reserva ambiental. Está um pouco frio agora, mas eu só vou pegar uma roupa mais quente quando entrar na lagoa, depois de passar o canal do campista e o canal de Itapuã.

 

II – A Lagoa

 

A partir da entrada na Lagoa dos Patos não foi mais possível escrever no diário de bordo. As mudanças na direção do vento e do rumo do barco não permitiram que ele seguisse navegando sozinho. O rumo 215º M e o vento nordeste. Assim, o vento e as ondas, agora, vinham praticamente da popa. Aí é que faltou o tal do piloto automático.

Após a excelente e tranqüila navegada pelo Guaíba, vieram muitas horas de trabalho junto ao leme. Qualquer coisa que exigisse sair do leme por algum período mais prolongado (uns 30 segundos, por exemplo), significaria um sufoco. Um deles foi quando resolvi armar a asa de pombo, com o pau do balão. Antes tive que alterar o rumo, mais para o sul, para que o navio que vinha pela popa passasse a boreste. Depois disso, recomecei a armar a asa.

Para montar o pau do balão eu deveria largar o leme, correr para a proa, fazer uma parte do trabalho e voltar rapidamente para corrigir o rumo. Na teoria está tudo certo. Na prática, não foi bem assim. Nunca dava tempo de fazer as coisas, pois o barco saia do rumo muito rapidamente. Para complicar, eu estava com a ponta da escota da vela grande amarrada ao pulso, como precaução. Este cabo de segurança teimava em engatar em tudo. Resultado: um jibe involuntário; cansaço; alguns chutes em coisas pontudas e, finalmente, a asa de pombo.

 

Mal deu tempo para descansar, ainda timoneando, e o vento quase parou e virou mais para Norte. As ondas, no entanto, continuavam vindo e a cada passada da onda as velas panejavam e a retranca vinha para trás e depois ia para frente, fazendo um barulhão. Tirei a asa e liguei o motor.

Duas horas depois, às 5h30min, entrou um sudoeste com 10 nós. Voltei a velejar. Como era orça, pude trimar o Parceria para ele navegar novamente sozinho e eu descansar. O rumo agora é 180ºM, na direção do navio afundado (Álvaro Alberto). Terminei de comer umas lascas de carne e uns bolinhos fritos, que eu trouxe justamente para comer durante a navegada noturna, e fui me deitar, com o visual do sol nascendo. De 10 em 10 minutos eu verificava a possível presença de outras embarcações. Meia hora depois, o vento virou para SW e começou a aumentar. Rizei a grande na segunda forra e não adiantou. A cacetada de vento veio a mil por hora e tive que baixar a genoa. Icei a tormentin para equilibrar a área vélica e tentar andar um pouco mais, pois ainda faltavam seis milhas até o pontal de Santo Antônio. O Parceria estava andando bem, cerca de uns 5,5 nós, mas as ondas estavam cada vez maiores. O balanço das ondas fazia o motor balançar no suporte, e então eu tentei amarrá-lo. Não teve jeito de firmar o motor, de qualquer modo decidi amarrar um cabo para diminuir um pouco o balanço. Ainda estava terminando de amarrar o motor quando ouvi um barulho de espuma e em seguida levei um banho. Já havia, até então, me molhado com as ondas que batiam na proa e respingavam para dentro do barco. Só que desta vez a onda veio por cima do barco e lavou tudo. Voltei para o leme a fim de “desviar” das ondas maiores. Deu para desviar da maioria, mas não de todas. Para piorar, o rumo do pontal era justamente de onde vinha o vento. Ou seja, as três milhas que nos separavam seriam bem mais longas do que o convencional. Depois de uma hora e meia de contravento duro, desisti.

Afinal, na praia do Birú, o meu objetivo inicial, não daria mais para ficar. Assim sendo, voltei. Mais cinco horas sem poder tirar a mão do leme. Das 8h até às 13h, controlando para não atravessar nas ondas, nem jaibear. Muito surfe. Afora a subida para Floripa, no barco Aporreado, nunca havia surfado tanto (de barco). O Parceria chegou a 9,6 nós nas surfadas. Este é o lado bom, que teve suas compensações negativas: era praticamente impossível pegar coisas dentro do barco. Ou seja, sem água, sem comida, sem chapéu, sem óculos escuros, etc. Depois de algum tempo e de várias tentativas, consegui pegar o GPS e o protetor solar que estavam na gaveta, embaixo do radio. Eu ficava na entrada da cabine, segurando o leme com a ponta da mão esquerda e quando o barco terminava uma surfada eu soltava o leme, metia a mão na gaveta, dando uma tateada e voltava para o leme.

Como a minha roupa estava completamente encharcada, até as cuecas, fiquei só de camiseta e estendi a roupa no cockpit, sobre a genoa ali embolada. Quando estava me aproximando do farolete da ilha Barba Negra, avistei um veleiro indo, também, na direção do Farol de Itapuã. Vesti a roupa, que já estava seca, para passar mais perto deste barco. Passei por ele no través da ilha, mas não reconheci o barco. Em seguida cheguei ao farol de Itapuã e entrei para a praia do Sítio. Já havia um veleiro lá ancorado, no canto direito, onde é mais protegido do vento (ou deveria ser). Ancorei por ali. Logo vi que a proteção era só para as ondas, já que o vento fazia a volta no morro, pelo lado e por cima, em rajadas que pareciam que iriam arrancar tudo o que havia pela frente. Em seguida chegou o veleiro que eu havia passado na lagoa. Era o “Gentoo”, um Ranger 22, com o Edgard e a Nice, vindo de Tapes.

Comi uma maçã e algumas bananas e fui tomar um banho. Nadei até o barco do Edgard para bater um papo. Conversamos um pouco e ele me disse que, dali, iria para a vila de Itapuã. Voltei para tentar dormir, mas o vento não permitiu.

 

III – Comer e dormir.

 

Na praia do Sítio, o vento sacudia tanto o Parceria que dificilmente eu conseguiria dormir tranqüilamente, o que eu mais desejava naquele momento. Olhei na carta, procurando outro ancoradouro próximo. Resolvi conferir a praia das pombas. Lá também haviam muitas rajadas. Assim, velejei mais duas horas até a praia das areias brancas. Estava um verdadeiro paraíso. Parei bem perto da praia, em frente a um coqueiro. Fiz um chimarrão e cozinhei umas salsichas, liguei o rádio, assisti o belíssimo pôr do sol e, finalmente, dormi.

Depois de mais de nove horas de sono ininterrupto, às 6h30min de domingo, acordei. O vento começou a entrar de ENE, fazendo algumas ondas. Arrumei as coisas e fui para o tranqüilo. Uma hora e meia de través, com 8-10 nós de vento. Passei o dia lá, e às 18h30min fui para o clube com vento leste de uns 20 nós. G2 e grande na segunda forra. Bela navegada.

 

 

 

IV – Mapa do percurso total: 122 MN.



[1] Joshua Slocum foi o primeiro homem a realizar, em 1898, a navegação solitária ao redor do mundo.