De Brasília a Buenos Aires em um caiaque
Trecho Chuí - Pelotas
André Issi

Depois de descer rios e atravessar barragens, de Brasília a Buenos Aires, o navegador André Issi navegou a Carmelo no Uruguai, de onde rebocou o caiaque, de bicicleta, até o Chuy. De lá, foi até o Arroio São Miguel, afluente da Lagoa Mirim, na fronteira com o Brasil, de onde remou até Pelotas, com destino a Porto Alegre.

Pelotas,4-12-05

É isso aí xiruzada, o pelotão mais estropiado dos farroupilhas ainda segue lutando. Acho que já enjoaram, né?
Eu não, estou adorando estar podendo ver e ouvir os sons do banhado, as imagens de cada amanhecer ou por de sol. Acabei de chegar aqui em Pelotas com o rosto todo queimado e inchado de sol, mas feliz de ainda estar na luta.
As coisas nunca foram fáceis e quando eu mesmo achei que seriam, a natureza e a Mirim me mostraram que não é bem assim.
Foram vários sufocos, mas foi bom para aprender que nada acontece antes de se fazer, de percorrer cada passo ou remada, no caso!
Nao consegui baixar as fotos, tento mais tarde. Vou continuar o diário desde o Chuy, no Uruguai.

Chuy 23-11-05 dia 155

No dia que cheguei, deu o maior temporal enquanto estava no ciber, chegou a faltar luz e no noticiário falou na possibilidade de um tornado...
Termino de escrever tarde, não dá tempo de viajar hoje.
- Cara, quantas vezes tu fostes para um hotel em 5 meses?
- Acho que uma vez, em Guaíra...
- Bueno, acho que chegou a hora de ires de novo.
É verdade, não adianta ir para o arroio San Miguel sem víveres. Preciso ficar por aqui para comprar os víveres.
Sigo pelas ruas e descubro que atravessando a avenida estarei no Brasil...
Deixei a bici no ciber, pois o cara falou que cuidaria para mim. Procuro um hotel no Brasil, mas tu não sabes quem é brasileiro, uruguaio ou árabe. É uma miscelânea de línguas e de gente.
Achei um com garagem fechada, difícil foi explicar que a garagem é para uma bicicleta com um caiaque de 5,20 m no reboque...
É de rir!
Busco a bici e volto com chuva forte. Depois vou fazer um lanche ali perto e conheço Sandra. Ela fica maravilhada com a aventura e quer saber o que vou fazer com a bicicleta. Digo que queria dar a uma criança que nunca teve uma, tem que ser pobre. O reboque custou mais caro que a bici, mas nao tem valor para mim.
Ela diz que seu marido me leva até o local de carro e que eu deixe aqui a bici e o reboque...
Eu só ri, ela nao tem noção do que eu passei para chegar até aqui e pegar carona a 10 km do destino é até gozado!
Volto pro hotel e não consigo dormir, amanhã novas aventuras virão e eu tenho que me adaptar novamente, estarei navegando... Que loucura!

24-11-05 Quinta dia 156
Acordo, vejo os noticiários e descubro que fez 42 graus em Porto e 38 graus por aqui, por isto que quase "derreti" no asfalto. Deveria estar entre 60 e 70 graus por ali, só de calção e chinelo de dedo empurrando mais de 100 kg...
Vou falar com a recepcionista e depois de uns 15 min fiquei vermelho de vergonha, foi aí que me dei conta que estava no Brasil e eu falando meu "portunhol"!
A guria riu, mas tudo escrito em espanhol... os donos são uruguaios.
Resolvo desocupar o quarto, aproveitar que a bici está bem guardada e voltar para o ciber no uruguay e responder os e-mails dos amigos, pois sei lá quando escreverei de novo.
Fico no ciber até `as 17 h e depois vou na Sandra. Seu marido irá mais tarde para me encontrar na ponte sobre o arroio San Miguel.
Volto para o lado Uruguaio e fico intranquílo de novo, tudo pode terminar mal se encontrar alguma autoridade, afinal nem dei saída oficial do país. Se fizer isto, podem perguntar pelo caiaque, querer saber como vou sair, etc...
Evitei até a aduana brasileira, pois os burocratas de plantão em Foz do Iguaçu pediram tantas coisas que desisti de sair legalmente.
Então, se eu não saí, não preciso voltar, né?
Peguei raiva de autoridade, tivesse seguido meus instintos, talvez tivesse conseguido fazer remando o que queria, embora, talvez, tivesse perdido tudo, "confiscado" como contrabando, para não dizer "roubado" se entrasse ilegalmente no Uruguay.
É brody, decisões tem que ser tomadas e eu fui pelo conselho dos amigos e já está feito!
Sigo pela estrada por 10 km até que vejo o forte de San Miguel no alto de uma colina. Antes dele está a ponte e o riacho. Quase ao mesmo tempo chega Roberto, esposo de Sandra e Edson. Eles tem um reboque no carro para levar meus dois soldados que foram leais companheiros nesta campanha.

- Senhor, o resto do pelotão vai sentir saudades...
- Soldado, isto aqui é uma batalha, eles foram contratados para nos ajudar até a fronteira!
- É que ficamos amigos...
- Faça o seguinte: finja que é uma namorada antiga, cole a figurinha e vire a página!
- O senhor tem coração de pedra!
- Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!

É verdade, nossa batalha segue em frente e a Sandra e o Roberto vão dá-la a uma criança pobre, confio neles.
O reboque e todos os acessórios ficam com eles, inclusive ferramentas.
Roberto e Edson perguntam se o que levo é pesado, digo que tentem levantar uma roda do reboque e eles nao conseguem. São litros e litros de água, comida extra, ferramentas e repuestos, mais a carga que já tinha, só se firmar bem as pernas e levantar com as duas mãos:
- Como é que tu trouxestes isto até aqui?
- Com raiva!
Eles ajudam a levar para a beira do riacho. Roberto diz que a casa branca depois da ponte é a aduana...
Tiramos fotos, eles levam as coisas para o reboque do carro e eu entro no caiaque... Que coisa mais estranha, 13 dias pedalando como um louco no asfalto quente e de repente, 21 dias depois, estou na água de novo!
Não dá para descrever, eu me sinto fora da realidade! Fiz o que não achava possível e agora, já ao final do dia, estou remando num riacho que nunca vi em minha vida e que termina na Lagoa Mirim.
Crazy!
Well, let´s go!
A tempestade de ontem trouxe um vento sul que chega a ser frio, são 19 h e eu tenho que arrumar lugar para dormir.
Sigo em frente, parece que fugi de uma prisão!
Fico extasiado com a diversidade de pássaros e plantas enquanto o caiaque desliza rápido a favor do vento. São lindos campos repletos de verde, banhados e pequenos bosques de árvores nativas.
Vejo colhereiros cor de rosa, todo tipo de marrecas(caneleiras, pés vermelho, piadeiras, marrecões), maçaricos, garças, frangos dágua, pássaros silvestres e tarrãs.
Vou filmando e fotografando sons, imagens e cheiros...
É um delírio!
Passa já de 20 h e tenho dificuldade de achar local seco e abrigado. Passei bons locais achando que adiante encontraria outros.
Finalmente, na curva do rio, encontro uma parte um pouco mais alta e parcialmente abrigada do vento gelado. Tive que parar um pouco antes e colocar o casaco de neoprene que comprei em Rosário.
Estou gelado e com frio, mas feliz por ter iniciado mais uma aventura. Foram 21 dias fora dágua, 13 na bicicleta com reboque. Tudo ficou para trás, agora vamos em frente!
Não ouço mais o ranger da corrente, não tenho mais "neuroses" de pneu furado, solda partindo ou bomba que não enche nada...O asfalto quente onde era difícil até para respirar!
É só o murmúrio da água que resmunga pelo roçar do remo e a certeza de que o espírito ninguém aprisiona.
Essa eu devo aos meus amigos que me aconselharam e que por causa deles eu não fiz besteira maior!
Obrigado!

BROTEI NO VENTRE DA PAMPA,
QUE É PÁTRIA NA MINHA TERRA.
SOU RESUMO DE UMA GUERRA
QUE AINDA TEM IMPORTÂNCIA!
E DIANTE DE TAL CIRCUNSTÂNCIA,
SEGUI OS CLARINS FARROUPILHAS
E DEVORANDO COXILHAS
ME TRANSFORMEI EM DISTÂNCIA...

25-11-05 Sexta dia 157
Bueno, foi uma noite fria, mas não chega nem perto das noites que passei por aqui, no inverno.
Quase não tem abrigo contra o vento, há muitos banhados e pouca terra alta onde possa colocar uma barraca sem umidade.É rezar para não dar vendaval e curtir o lugar lindíssimo que é isto aqui.Agora são 7:33 h, tenho que reorganizar as coisas para viajar melhor. em dois dias, tudo estará no seu lugar. é isso aí, vamos à luta!
Vou seguindo em frente (9:30 h), o arroio São Miguel é muito bonito e já não tem o vento favorável de ontem. é uma infinidade de pássaros e curvas, mas às 11 h chego no final do arroio que abre um pouco.
Atravesso para o lado brasileiro e vou seguindo com forte vento de través e ondulações razoáveis.
Está até divertido, mas estou encharcado e começa a ficar frio. Aponto para um alvo, mas descubro que Sta.Vitória é bem antes e sigo para a construção do porto onde saí duas vezes, ambas no inverno, frio e vento de repartir o bigode! Uma de windsurf(85) e outra com o wind e o caiaque pequeno( 2000) duas "toras". Quase tão difícil de rebocar como foi com a bici e o caiaque, sofri muito, ainda mais que estava me recuperando do acidente de carro.
Às 15 h, já com o vento fortíssimo, chego no porto. Como o xis que Sandra me deu ontem e depois falo com seu Antônio que tem um trailer de lanches ali.
Resolvo visitar meu amigo, Dilson Mespaque, que me ajudou nas duas viagens anteriores. Será legal revê-lo!
Deixo o caiaque aos cuidados de Mário e "cabelo", pescadores dali.
Sigo a pé para a city, depois pego carona na boléia de um caminhão.
Na praça central estão homenajeando Moacir Scliar, escritor gaúcho.
Encontro d. Léa e dona Alice.
Os Mespaques tem ramificações no Uruguai e na Austrália, dona Delfa veio de lá e está na casa de dona Alice. Seu Dario e Hermes aparecem para tomar um chimarrão.
Dilson mostra sua horta super bem cuidada, flores, galinhas, gatos e cachorros. É muito bom estar revendo um amigo de mais de 20 anos, quando estive aqui na primeira vez, de windsurf.

26-11-05 Sábado dia 158
Seu dilson me deixa no porto de Sta. Vitória e ali reencontro Mário e Cabelo.
Dei uma bússola de presente para Mário colocar em seu barco e parti às 7:05 h com fraco vento de NW.
Que contraste com o vendaval de ontem e as ondas. Agora está calmo e a beira da Lagoa Mirim está com sua margem original fora dágua.
Vejo bandos e mais bandos de cisnes brancos e cisnes de pescoço negro.
Há maçaricos e frangos dágua que alçam vôo num estardalhaço incrível de asas batendo na água ao mesmo tempo que parecem "pedalar" sobre a superfície.
Tchê, como isto tudo é lindo!
É por isto que desde o começo da viagem planejei vir por aqui, caso conseguisse chegar. Eu queria chegar até aqui com uma filmadora, pois nas vezes anteriores não pude trazer.
Meu sonho é chegar com a filmadora no recanto das capivaras e poder filmá-las.
Assim vou seguindo até parar na entrada do canal de irrigação da Granja Minuano, às 11:45 h. Vejo um bando de emas no campo, colhereiros cor de rosa, alguns tarrãs e aproveito para almoçar.
O forte vento nordeste entrou com tudo e vou xingando o corno de tudo que é nome. Menos mal que meu curso pega ele de través.
Acho que se tivesse um foguete, o corno do vento daria um jeito de soprar de cima para baixo, só para continuar sendo corno e contra, que troço irritante!
As horas passam, estou apostando corrida com a viagem de windsurf, pois utilizo os mesmos mapas da época. Estou perdendo feio!
A costa fica desolada e sem barreiras contra o vento que fica cada vez mais forte.
Chego na ilha dos Afogados e penetro no meio do juncal em busca de terra firme e, se possível, com abrigo contra este forte vento.
Encontro uma pequena elevação com grama alta, mas no sufoco não dá para ser exigente. Só não gosto de caminhar em capim alto, sem enxergar o solo onde pode haver uma jararaca. Se for picado aqui, dará apenas tempo de filmar minha despedida e escrever alguma coisa no diário, pois chupar o sangue com veneno...só em filme de Tarzã!
Bueno, encontrei um arbusto alto e ali abrigava bem do vento.
Foram 9,5 h remadas com sacrifício, fora os descansos e só avançei pouco mais de 40 km...
Os dois dias de "apresentação" da Mirim já mostraram o que vai ser navegar para o norte com esse nordeste. Lembrei de mis hermanos de Rosário que fizeram o mesmo pelo mar.
Isto só aumenta ainda mais minha admiração por eles, os caras eram "feras"!

27-11-05 Domingo dia 159
São 7:35 h, estou "moído" de ontem. O vento está pior ainda.
Não vou mais traçar objetivos, remarei 8 h no máximo e procurarei abrigo.
Aqui é muito difícil de achar uma árvore que seja, há uns arbustos que protegem bem do vento, mas tenho minhas dúvidas em caso de temporal.
O local é um verdadeiro jardim do banhado e há flores lindíssimas de aguapés e outras plantas.
O vento está muito forte e se der temporal a coisa ficará muito difícil. Sempre foi assim, eu já sabia, mas achava que por ser próximo do verão seria mais fácil... Esqueci que aqui é o Rio Grande e com essa terra não se brinca.
Para sobreviver e seguir em frente tem que ser na base do respeito e muito, muito esforço!
Essa coisa de planejar o quanto vai percorrer por dia não existe por aqui, é na base de quanto a Lagoa vai permitir que tu avances ou não.
Aqui onde dormi está seco, mas no inverno estava tudo embaixo dágua, vento forte e frio abaixo de 5 graus... Dureza, brody!
Acabo partindo só às 10:05 h e sigo costeando a ilha, pelo menos sigo contra o vento mas sem as ondas.
Quase uma hora depois chego na ponta da ilha, é bem mais comprida que pensava e tem terra firme mais alta. Inclusive uma solitária figueira entre as dunas onde tem um resto de rancho onde as folhas de zinco rangem e quebram o ruído do vento na vegetação.
Êta lugarzinho, desolado, solitário, frio e ventoso... É muito bonito, mas morar aqui deve ser dose.
Alguns joões-de-barro fizeram suas casa por ali e piam ao me observar.
Fui!
Atravessei por duas horas no rumo E-NE com ondas médias de través até chegar do outro lado e parar para almoçar junto a um bosque de chorões.
Estendi o plástico, ficou muito quente e o sol está forte.
Peguei a mania de fazer a "siesta" por causa da bicicleta, mas logo logo vou tirar essa frescura do corpo.
Fiquei por ali até perto de 16 h e depois rumei para a ponta das Canoas.
Dali mais uma travessia de 2 h com ondas de frente e que me encharcaram e irritaram bastante. Vento aumentando de novo ao final da tarde e parece que o cara rema e nunca chega. Pior é que a água que escorre pelo corpo vai passando pela capa e enchendo o caiaque. Não dá para largar o remo e esvaziá-lo. Agora não tenho mais a bomba nos pés e tenho que seguir com água balançando por dentro e os óculos funcionando como para-brisas.
Havia um lugar bonito onde acampei, mas agora a margem ficou longe do mato e só me resta entrar no canal de irrigação da Granja Mirim e montar a barraca ao lado da barranca onde estarei um pouco mais protegido do famigerado NE!

28-11-05 Segunda dia 160
Pelas minhas contas, ontem passei do km 5000, legal!
Pensei que estava chovendo, mas o vento está tão forte que há uma "tempestade de areia" em curso. Só falta o camelo!
Esse vento NE não dá folga e cada km é conquistado através de duras remadas e pouco avanço, uma média de 4 a 4,5 km/h.
Tentei apostar corrida com a viagem de wind, mas mesmos com os dias bem mais curtos de inverno, de wind era muito mais rápido, aliado ao fato de que entrou uma frente fria e peguei vento sul.
Também não dá para comparar com a viagem de 2000, pois mal fazia 1 ano que voltara a caminhar e estava remando um caiaque que era um "toco", tinha só 3 m e 50 kg vazio. A velha Windglider tinha perto disto. Mais carga e eu, com mais de 83 kg, um conjunto de mais de 200 kg para deslocar.
Ali em Chuy subi numa balança, estou com 68 kg...
O vendaval ficou insuportável, tenho que sair daqui!
Guardo as coisas e antes de desmontar, o vento arranca a barraca e quebra uma vareta.
Sigo mais para o interior do canal, onde fica a casa dos motores.
Encosto na cerca ao lado da construção e vou na casa mais adiante pedir água potável. Há uns patos tri mansinhos que nem se importam comigo.
Dona Mara é muito legal, diz que se eu quiser ir na vila telefonar, seu marido, Elci, vai para lá daqui a pouco no caminhão.
Já que não posso seguir, é melhor fazer alguma coisa, senão fico doido.
Sigo com Elci até a vila, mas o telefone público está mudo.
Os matos de eucalipto se vergam com a força do vento, não dá seu André!
Vou esperar para ver se muda depois do meio dia.
Voltamos para o "levante" e lá encontramos um dos donos e Pedro, seu filho.
O capataz, Mano fala que o Grêmio, com 4 jogadores a menos, dois pênaltis contra, conseguiu ganhar do Náutico lá em Recife, no fim da partida.
Mais heróico impossível, o time desfilou em carro de bombeiros na chegada em Porto Alegre. Mais um título nacional...
Falo para Mano que brinquei muito com o pessoal durante a viagem, dizendo que era "promessa" para o Grêmio voltar a Elite.
O inter foi "garfeado" num campeonato que marca o poder do dinheiro nos resultados. Morreram na praia (hi,hi)!
Os filhos de Elci são super legais. Robson passa o tempo confeccionando uma rede de pesca, assim como Elci e Mara. Rodrigo e as meninas, Lucimar e Thiely brincam no pátio de areia onde tem de tudo: uma gata e dois filhotes, uma cadela e oito filhotes, galinhas, perus, patos e outros cachorros.
Ao lado tem uma horta. Tomamos um mate abrigados do vento enquanto Thiely (4 anos) faz estripulias sem parar. É uma menina linda, de olhos cinza-esverdeados. Como dentista, dou uns conselhos para a turma, mas a realidade e a experiência já me dizem que para mudar coisas tem que se mover o mundo. Eu sou apenas um sopro de vento na rotina deles.
Depois vou ajudar Elci e os meninos a cortar grama. Assim o dia passa. Espero uma calmada no vento que não dá folga.
Mara diz que no rádio a previsão para amanhã é de chuvas, raios e tempestade, que o vento está entre 25 a 30 km/h.
Depois ajudo Elci a fazer manutenção nos possantes motores elétricos (3) que puxam água da lagoa para os canais de irrigação das lavouras de arroz.
Foi um dia muito especial, almoço com eles, tomo café da tarde com pão feito por Mara, depois vamos no campo buscar a vaca leiteira e seu bezerro, damos comidas aos porcos e aves e assistimos ao por de sol enquanto tiram o leite da vaca que está amarrada a um poste da cerca. Fico o tempo todo com Thiely no colo enquanto os vagalumes iluminam o campo. Show!
Depois fomos jantar filé de traíra e viola, que família legal, parece que os conheço há uma semana, obrigado por me deixarem participar de suas vidas.
Até fico triste de partir, mas assim é minha vida!
Durmo na casa dos motores enquanto o vento sopra lá fora.

29-11-05 Terça dia 161
Dormi sobre uma lona e, depois de tomar café com eles, fomos para o caiaque tirar uma foto de despedida. Mara me dá um saquinho com filé de peixe para o almoço. Adeus amigos, que a vida permita que a gente se reveja, obrigado por tudo!
Parto às 9 h e quase não tem vento, aproveito para remar forte, não sei quando o chifrudo desperta.
Bandos e mais bandos de cisnes brancos, alguns cisnes de pescoço negro e algo familiar no pasto da beira. É um ratão do banhado, está tão distraído que não me vê aproximar. Vou filmando enquanto o bico do Maktub quase encosta no traseiro dele. Vejo as compridas barbichas que se movem sem parar enquanto ele roi as gramíneas. é um silêncio tal que escuto o barulho da grama sendo arrancada e mastigada, momentos especiais de uma viagem...
Depois passo pela sede da faz. Figueira Torta, falo com o sr. Adelar e peço que dê um abraço no sr. Nairon Chelin, que conheci em 2000.
Estou indo na direção do pontal das canoas, devo atravessar dali para o Uruguay de novo, mas só amanhã, pois seu Adelar reforçou o alerta de tempestade. São 14 h, resolvo seguir até uma ponta mais adiante para avançar um pouco mais e tentar a travessia amanhã.
- Então tá, tudo combinado comigo mesmo!
- Cara, pra que horas tá prevista a tempestade?
- PQP, nem vem cara!
- Sério, eles não disseram que horas vem a tempestade, pode ser daqui há 1, 2 ou 3 h...
- Tá, se tu vais fazer porcaria, então não precisa chegar na ponta das Canoas, já vai atravessando em diagonal. Não esquece que tem um povoado uruguaio e tens que ir mais para o norte. Só falta ter um chifrudo da prefectura e eles me virem cruzando.
Juro que se chegar do outro lado e um marino de mierda aparecer na margem e nao estiver armado, saio no "braço" com o corno e ele vai apanhar por todos eles. Não fico mais nas mãos desses cornos!
Agora eu não tenho o Uruguay todo para atravessar, a fronteira está perto. Isto se ele quiser me deter.
O vento está aumentando, mas eu já decidi e não tem mais volta.
Estou todo borrado, lembro de Deus. Eu não sei o que pode acontecer num vendaval, se o caiaque vira, se eu aguento. Tu estás mais só do que nunca, sabes que não terá ninguém para te ajudar e o corpo vira um suco de adrenalina.
É aquela estória de ter farinha no saco, de ter coragem de ir, sem saber se vai chegar.
Acontece uma mistura de nervosismo, medo, pavor, angústia e outras coisas que só cessam quando chegas.
Para piorar, o vento começa a ficar forte, vejo nuvens no horizonte.
Cara, esse vento está batendo na minha orelha direita, quase na nuca...
É mesmo!
- Pelotão, todos a seus postos de combate, vamos invadir o Uruguay!
- Senhor, o inimigo percebeu nossa manobra e milhares de soldados deles(ondas e ventos fortes) avançam por boreste.
- Agora é tarde para recuar, preparem as baionetas, essa luta será corpo a corpo!
- Igual eles vão nos vencer, parece que além do exército de Eolos, está chegando o exército de Thor, o chifrudo do martelo!
-Isto se ele chegar a tempo, temos que decidir esta batalha antes da chegada de reforços deles.
- Preparem o plano "V"!
- Senhor, nunca utilizamos ele, não sabemos se vai nos desestabilizar na tempestade...
- Agora saberemos!

É isso aí, coloquei a vela para tentar chegar do outro lado antes que chegue o pior da tempestade. Será a primeira vez que vou utilizá-la na viagem e agora vamos saber se funciona.
As ondas começam a passar por cima, ficam mais altas e me pegam de través. A velinha está me ajudando, é pouco maior que uma camiseta, mas ajuda. Essa eu ganhei de Lenírio, das velas Oceano, de Floripa. Obrigado amigo!
Isso foi invenção do Nelson Picollo, que adaptou uma vela morcego no caiaque velho e eu só tive que adaptar uma menor para o novo.
O Henrique e o Cristian do Iate Clube Veleiros da Ilha adaptaram as ferragens e aqui estamos nós, em pleno campo de batalha, ajudado por muitos soldados invisíveis.
Não estamos tão só, como o inimigo pensa.
O tempo passa, vejo o povoado uruguaio e não consigo sair dali, parece que estou sendo jogado para lá e isso me irrita mais ainda. Já não basta as ondas furiosas de través, o perigo iminente de virar e ainda tenho que me preocupar se algum chifrudo da prefectura está me vendo.

- Senhor, será que o inimigo não virá do Uruguay também?
- Não acredito, aqueles covardes não terão coragem de entrar neste "mar" com aqueles barcos cenográficos.
- Isso aqui é peleia para homens e não para crianças que brincam com espadas de madeira.

Grito de raíva, dizendo toda sorte de palavrões contra as ondas que me pegam no ouvido e contra esse vento irritante.
- Desgraçado, tu vais ver só se eu não chego onde quero!
Eu não tenho um ponto de referência confiável, apenas aquelas linhas de espuma que se formam. Eu passo por elas, mas parece que não saio do lugar, nem para a costa, nem para a frente.
Tenho que chegar no pontal onde acampei duas vezes, ali tem um banhado e algumas árvores.
Quase chegando, percebo que a tampa de um dos compartimentos está aberta, é bem onde está a filmadora.
Deve estar cheio dágua, não vou mais poder filmar as capivaras, o que eu queria desde que sai de Brasília.
GRRRRRRRRRRRRR!
É BRINCADEIRA!
Três horas depois chego do outro lado, no local que queria!
Esvazio o caiaque cheio dágua, está muito pesado!
O compartimento da filmadora está cheio, mas por milagre ela estava dentro de um pote e o nível de água não chegou na tampa.

- Soldado! Relatório!
- Senhor, lembra do soldado PH (papel higiênico) que se alistou lá perto de Asunción?
- Não, ele não... Esse era valente, tinha mais de 60 m e ainda aguentaria mais uns dias...
- Até haviamos contratado mais um recruta...
- Os dois morreram afogados, senhor!

Pois é, além destes dois soldados, molharam alguns negativos, o diário, lanternas e outros. Acho que estes dá para recuperar.
Coloco o caiaque na pequena enseada que tem ali na ponta e vejo um barco de pesca. Um dos caras está com camisa do Grêmio, devem ser brasileiros.
Eles são legais, Albiar pergunta de onde venho e digo que acabei de cruzar:
- Tu cruzou nesse mar?
- Tá louco?
Aviso da tempestade, eles nem sabiam. Rodrigo e Carlos também são legais.
Albiar me oferece um recruta para substituir os que morreram, batalhas são decididas com pequenos detalhes.
Despeço-me deles, tenho que providenciar um local antes que chegue a turma de Thor!
Achei um pequeno chorão em local que não é o ideal, mas quero ficar próximo do caiaque. Enfiei ele pelo meio de um banhado e ali estará seguro.
Para ajudar a atacar o vento, coloquei um plástico de obra entre o remo e um pau atravessados nos galhos.
Depois armei a barraca e ficou mais ou menos. Agora são 20:43 h, o vento está aumentando mais ainda, espero que a tempestade não destrua a barraca.

30-11-05 Quarta dia 162
choveu muito, o vento foi muito forte esta madrugada, mas isto foi o que meus amigos pescadores disseram, pois dormi profundamente.
Acordo tri cansado, arrumo as coisas aos poucos, despeço-me dos meus amigos de Jaguarão que estão saindo para revisar as redes.
Fotografo outras flores de banhado e desmonto tudo.

- Soldado, avise aos recrutas dedos para tomarem cuidado com esse novo recruta PH. Ele parece muito fraco e os recrutas podem acabar cheios de lama...
- Em tempos de guerra não podemos ser muito exigentes.

O vento está contra, mas não tão forte.
- Senhores, quero todos alertas!
- Vamos sair definitivamente do Uruguay rumo ao pontal do Junco.
- Marquem o curso na bússola, pois não é visível daqui.
- Acho que ele quer acabar conosco, é uma peleia depois de outra.
- É verdade, acho que ele está querendo testar nossos nervos...
- Soldados, chega de conversa!
E assim segue o pelotão em frente, para bombordo, ao fundo da baía, vejo os marcos fronteiriços e a foz do Rio Jaguarão. Cruzo com outro barco de pesca que vai para o lado uruguaio, agora é defenso no Brasil e eles vão tirar um peixinho para comer no Uruguai.
Calculo a travessia em 2 h, mas a distância é grande. Dá um nervoso lá no meio, de entrar vento forte, tempestade, etc...
Tu ficas olhando o alvo e não se aproxima nunca, chega a ser irritante!
Quase 2,5 h depois, chego na ponta, já com vento forte e aumentando.
Resolvo tomar banho, pois a casca passou dos limites, os soldados começam a olhar, desconfiados, uns para os outros.
É nestas horas que o comando tem que tomar atitudes enérgicas para manter a ordem e a disciplina.
Tomo banho, faço a barba, lavo as roupas e ponho para secar o que molhou ontem.
Agora são 14:35 h, entrou um vento fortíssimo. Estou abrigado no meio deste brejinho, sentado no caiaque e escrevendo. Não dá para sair assim, vou aproveitar e passear um pouco pelas dunas que vi mais adiante. Havia um bando de emas quando cheguei, mas já se foram.
Em 2:20 h fiz o que demorei 2 dias com o caiaque e a prancha em 2000; aquela viagem foi muito dura e difícil.
Bueno, vou passear e ver se este vento diminui mais tarde.
Brody, estava procurando a boca do arroio Juncal, mas nuvens polares e azuladas fizeram eu voltar correndo e desistir de ir em frente, onde não terei abrigo.
Tenho que dar um jeito de enfrentar esta tempestade em local pior ainda que ontem.
Pego o facão e abro uma clareira entre os arbustos. Faço a primeira defensa com o plástico de obra apoiado pelo remo entre os galhos e depois armo a barraca.
Ficou um barulho ensurdecedor de ondas e vento que é brincadeira!

- Senhor, alguns homens não estão aguentando esse bombardeio um dia depois do outro...
- Avise esses maricones que o primeiro que fraquejar eu mesmo irei dar cabo.
- Que morram peleando, mas não de medo.
- Fresco no meu pelotão tem vida curta!

Armei tudo e agora só me resta esperar que venha o inimigo, nossas defesas estão prontas e eles não nos farão recuar.
Resolvo ir até as dunas. Encontro lugares lindíssimos, dunas que são verdadeiras trincheiras contra o vento e lindíssimas figueiras fazem um manto protetor sobre tudo. Acontece que eu não vou deixar meu barco sozinho lá na beira. O nosso batalhão é muito mais forte peleando junto.Filmei uns ratões do banhado, outro colhereiro e achei um banquinho no topo de uma duna de onde pude ver o arroio Juncal.
Volto correndo, pois as nuvens polares vêm com tudo, trazendo tempestade e chuva.
Entro na barraca, tudo se torce, mas os arbustos estão protegendo mais do que pensei. As ondas estão enfurecidas do outro lado, tenho receio que passem sobre o pontal e me alcancem. Aqui na frente, do lado abrigado, está se formando ondas, mas o caiaque funciona como quebra-mar.
A água já está lambendo a barraca, mas não tenho como sair daqui.
Esta noite será longa.
Se eu pensei que chegando no Rio Grande seria moleza, a Mirim já mostrou porque eu penei aqui por duas vezes e estou penando pela terceira.
Seja inverno ou verão, aqui não tem moleza.
Andei 2:20 h e achei que iria até o farol Vista Alegre, no mínimo.
Entrou outra tempestade e até tenho que estar feliz por ter estes arbustos para me proteger um pouco.
Podia ser bem pior.
O temporal chega, chove forte, as ondas lá fora estão enlouquecidas.
Bueno, vou escutar rádio para não ouvir mais nada.

1º - 12 - 05 QUINTA dia 163
Acordo cedo, o vento não diminuiu. A chuva passou e molhou pouco aqui dentro.
Vou arrumando tudo sem saber se dá ou não para sair daqui. Não quero mais ficar aqui, nem que seja para entrar no arroio Juncal e procurar abrigo melhor.
Vou lá na beira, tudo parece igual a ontem, mas o vento parece estar mais de través, não está contra que nem ontem.

- Soldados, calar baionetas e preparar para a luta!
- Ih, o comandante enlouqueceu de novo. Não dá para sair daqui...
- Eu ouvi isto, tu vais ficar na linha de frente!
- Mas senhor, como vamos passar por este mar?
- Esqueceram do Maktub?
- Ele foi preparado para este tipo de peleia. O que a gente nem sonhava com o outro, esse aí encara!
- Ai meu Deus, quem nos livra desse cara?
- Estamos aqui, abrigados, é só esperar o tempo melhorar...
- Soldado, ninguém vence batalhas esperando...

Coloco o casaco de neoprene, tiro o boné, pois as ondas e o vento vão arrancá-lo no primeiro momento. A temperatura baixou e vou passar o dia molhado. Amarro forte o remo reserva e guardo o que posso dentro do caiaque.
Não tem folga, o batalhão está ficando com stress de guerra mas é o que encontraríamos ao penetrar em campo de batalha.
Parto às 9 h, contorno a pequena enseada que dá proteção e saio para a rebentação que nem espera, avança como uma louca sobre nossos heróis que tem que lutar por suas vidas.
Toda ação causa uma reação e o valoroso pelotão farroupilha, depois de quase ir a pique por duas vezes, soube reagir e foi pinchando olas y mas olas que atacavam sem parar.
Tenente Issi grita " Avançar" e todos se unem na direção das mais grandes e galopeiam como deuses sobre as costas do inimigo que fica atordoado com um pelotão que ao invés de recuar saiu para a briga quando eles menos esperavam.
A platéia grita e bate os pés no chão, emocionada, ao ver aqueles tauras gaúchos pelearem como loucos em luta tão desigual.
E o mais lindo de tudo, eles estão conseguindo avançar!
Quase virei 2 vezes, não dá tempo de sentir medo, uma onda vem por cima e logo outra vem e me dá um chapoletaço no ouvido. E vem outra, outra e só me resta reagir, enfio o remo na paleta de uma, uso o corpo do inimigo caído para me apoiar e enfiar a lança sobre outra que cresce e se atira por cima.
- Vamos homens, não deixem virar, ataquem !
Consigo atravessar e ir mais para o fundo, o forte vento parece vir de W-SW, não tenho certeza de nada. Viro para E-NE, estou confuso com a bússola, mas não posso ver mapas para tirar a dúvida.
- Que houve soldado?
- Estou com medo de virar senhor!
- O quê?
- Não é por mim senhor, é que tenho uma filmadora para criar...
- Bueno, nesse caso eu te ajudo, também quero que ela viva para ver as capivaras!
Vou cada vez mais para fora, onde as ondulações são grandes, mas nao quebram tanto, só de vez em quando. Tem que ficar atento o tempo todo.
Tento me tranquilizar, sabendo que o vento leva para a praia.
Devagar, vou avançando, 20 min depois estou na frente do arroio Juncal.
E aí cara? Vamos entrar?
A vontade é de entrar ali, procurar um abrigo melhor e esperar...
- Soldados, homens livres fazem a sua hora; o vento não está totalmente contra como ontem. Se conseguimos vir até aqui, vamos até a Ponta Negra, lá existe um baita mato de eucaliptos que protegeria melhor.
É verdade, o pior já passou, que era enfrentar rebentação pela primeira vez. Está super difícil, pois as ondas pegam de través e vêm estourando por cima.
O interessante é que não viro; o caiaque suporta bem o ataque lateral, só que tenho que ficar atento e jogar o corpo para o lado que as ondas estouram e tentar estabilizar quando ele "corre" de lado. É um esforço a mais, mas eu tenho que me acostumar.
Outra coisa preocupante é que está cheio de água e eu não tenho como esvaziar no sufoco. Acho que estou magro demais e a capa deixa passar água demais. Uma bomba nos pés é fundamental.
Vou mais para fora ainda e navego paralelo a costa, afastando a cada vez que sinto que as ondas começam a estourar. Significa que estou em águas rasas ou me aproximando da costa.
Seria até divertido se houvesse alguém mais por perto, acontece que tu estás ali, sozinho,caso vire, não tem ninguém para te ajudar.
Agora eu não tenho mais medo por mim, não quero perder meu equipamento agora que estou tão perto.
Não se vê nem pescadores, pois no defenso eles não saem. Então é tudo comigo, o que eu fizer ou o que acontecer é tudo comigo, só eu mesmo para me ajudar.
Após o que parece uma eternidade(1:30 h), chego na Ponta Negra.
- Pô cara, se tu conseguistes chegar até aqui toca até o arroio Bretanha, lá tu já conheces e ali sim tem abrigo.
Percebo que o vento não bate mais no rosto, está batendo na orelha e um pouco na nuca.
- Soldados, preparar plano "V", essa peleia aqui no Rio Grande está mais furiosa que a campanha no Paraguay.
- Sabe comandante, nós aqui da tripulação achamos que isto tudo que está acontecendo é ciúme de mulher...
- Como assim?
- O senhor já passou duas vezes por aqui e jurou amor eterno pela Mirim...
- É verdade!
- Mas foi correndo para outras Lagoas...
- Porquê as mulheres tem que ser tão possessivas e imprevisíveis?
- Elas deveriam saber que o coração dos homens é como prédio de luxo, vários apartamentos decorados, em cada um deles vive um amor, mas a cobertura fica para aquela que conquistar seu coração para sempre!
- Acho que você tem razão, faltou sensibilidade da minha parte!
Bueno, foi uma briga, mas consegui armar a vela e pego um través quase popa e vou mais rápido um pouco. A vela só não tem força de levar o caiaque, pois é muito pequena, mas que alivia o peso na remada alivia.
- Senhor, será que vamos vencer o inimigo?
- Acreditem sempre em vocês, nossa causa é nobre.
- Não tiveram o exemplo de outro pelotão, esse tal de Grêmio?
- Foi lá em Recife, com 4 a menos, dois penaltis contra e ainda teve forças de vencer o inimigo...
- É verdade, eu quase chorei...
- Soldado, "menas", sem mariconadas!
É isso aí, com a vela fiquei mais confiante, o vento de través pegando pela alheta de boreste está ajudando. apenas não posso desconcentrar, pois as ondas não dão trégua.
Às 13 h chego na entrada do Bretanha, mas acho que posso aguentar mais um pouco.
- Senhor, os irmãos Glúteos estão furiosos e jogam bombas de gás em quem está em roda, nem as ondas atacam mais, fale com eles...
- Mais tarde, mais tarde!
Se a gente parar agora, ninguém vai querer continuar depois.
É certo que não vou querer voltar para este "sufoco" depois de entrar no abrigo, não consigo ficar tranquílo aqui, é aquela sensação de sobrevivência.
Esta parte é aquela que me detonou por duas vezes nas viagens anteriores. acho até que a Mirim é mais difícil que a Lagoa dos Patos pela dificuldade de encontrar abrigo, isto a margem Oeste, porque a Leste é até pior, a minha primeira viagem de wind foi por lá e comi o pão que o diabo amassou por lá.
Já tive que deixar de remar um dia, ontem foram só 2:20 h, hoje estou remando porque enchi o saco e de teimoso.
Odeio ficar parado, imaginem quase 8 dias em Carmelo...
Resolvo seguir até o local do temporal que desmanchou minha barraca em 85, é um capão de eucalipto, o último que se pode ver para NE.
Viajo mais duas horas, já são cinco sem parar nem para beber água, pelo menos consegui esvaziar um pouco o caiaque.
Cara, só mais 2 h e tu chegas no farol...
Estou naquela ânsia de tocar e não sei se o corpo aguenta, era só para entrar no arroio juncal...
Agora não tem mais capões de eucalipto e fica difícil de ver para onde a costa vai. andei boa parte sem vela, depois coloquei de novo.
Avisto o farol, mas quero seguir, na verdade tenho medo de virar indo para a beira. Resolvo que tenho que descer e filmar o farol, de que me adianta passar pelas coisas sem registrar?
Foi um sufoco surfar nas ondas, mas foi mais fácil que descer as corredeiras de Brasília. Chego na praia às 16:30h, foram 7:30 h remando sem parar, estou terrivelmente queimado no rosto por estar viajando sem o boné.
Caminho até o Farol Vista Alegre, faço um lanche abrigado do vento, subo as escadas até o topo e filmo o visual incrível dali de cima. Valeu a parada. Pena que tiraram o Chapéu do Farol, gostaria de pensar que não foram vândalos que fizeram isto. Parto às 18:15, o vento ficou mais forte ainda e só de raiva resolvi não acampar no banhado novo mundo, vou atravessar para o recanto das capivaras hoje mesmo, um dia destes, de sufoco, tem que terminar num paraíso ecológico que eu tanto sonhei chegar e filmar. amanhã tiro o dia para passear.
O vento ficou de SW e estou seguindo para NE, consigo sair, montar a velas e virar. Resolvo atravessar direto, desde o farol para a direção do outro lado.
Tá louco?
Vamos brody, é tudo ou nada!
Merda! Tá bom, se não fosse tua loucura, estaríamos no meio do banhado achando que não poderíamos ter feito o que fizemos.
Tu és louco, mas a tripulação tem verdadeira veneração por ti, depois de quase morrer tantas vezes, era para estar cuidando de uma horta, bichos, mas não, estás aqui batalhando como louco por aquilo que acreditas, não importa se é certo ou errado!
E lá vou eu de novo, atravessando no maior "pau" de vento para o local que eu tanto queria, um certo local perto do pontal da fazenda Uruguaia que chamo de recanto das capivaras.
Bueno, muito sufoco, caiaque surfando nas grandes ondulações e finalmente, às 20:15 h cheguei no local que queria.
Tive que entrar um pouco mais adiante para penetrar em um canal e ficar um pouco mais abrigado. a barra estava fechada, arrasto o caiaque por cima e remo pelo canal até o lado de uns chorões.
Ali tem um ratão do banhado bem mansinho e que me observa enquanto armo a barraca no capim fofinho, parece grama de ponta.
Já escuro, uma capivara, assustada com o caiaque, se atira nágua com estardalhaço, ouço outras, mas estou "moido", foram 9:30 h de sufoco num dos piores dias. Andei mais de 60 km em um dia que não deveria ter saído, arrisquei demais meu equipamento, mas eu sou assim, imprevisível até para mim mesmo.
Que entrada em Dezembro!

2/12/05 Sexta dia 164
Arrumo minhas coisas para o passeio e vou para os locais onde vi os bichos da outra vez. Primeiro encontrei um ratão morto, depois fui achando um crânio, depois outro, outro até um total de sete, apenas no curto espaço que andei. Todos de capivara!
Aquele local mágico virou palco de uma chacina, baixou meu astral demais.
- Viu seu merda, eu já te falei para nunca voltares em locais lindos ou que te marcaram muito, as coisas mudam e tu insistes em achar que tudo ficará para sempre.
Por isto não encontrei nenhuma, é certo que elas ficam perto dágua, que agora baixou, mas a impressão é de que elas foram embora para sempre, embora eu tenha visto uma a noite e escutado outras.
Penso que poderia ser pior, podia ter um condomínio de luxo e outras porcarias.
Filmo um passarinho vermelho, pequeno e com uma faixa preta no olho, parece que ele me diz que nem, tudo istá perdido.
Desisto de continuar passeando e de ficar aqui mais um dia.
Está na hora do pelotão ir embora. Arrumo tudo e parto às 12:45 h rumo ao final da Mirim. Deu seis horas de caiaque e quase o mesmo de prancha com vento contra.
Acontece que peguei vento favorável e faço o percurso em 3 h.
Paro já no começo do canal de S. Gonçalo e tento comer o queijo que comprei no uruguai. Fede muito, não desisto e tiro a casca para comer o miolo, o gosto está horrível e sou obrigado a cuspir fora, foi aí que vi que tinha vermes que se debatem na areia quente. Sheet!
Navego mais meia hora e desço em Sta. Isabel, onde faço um lanche depois de atravessar a praça da igreja de 3 sinos. fica ao lado do campo de futebol.
Como um xis para tirar o gosto dos vermes e tomo um café com leite. Conheço Cássio, de 13 anos, ele é muito legal e pergunta um monte. Agora, quando voltar, vou encontrar alguém vivo, pois Saul, o pescador que conheci de wind já morreu, assim como quase todas as pessoas anotadas em 83.
Vida de High Lander é triste!
Vou para a margem, converso com pescadores que me viram em 2000 e ao lado do caiaque tem um monte de piás. Converso com eles e sigo meu caminho.
Passo pela ilha pequena e logo em seguida acampo em lindíssimas barrancas do lado esquerdo.
São gramadas, o sol se põem e um casal de choronas (um mergulhão que nunca voa, está sempre dentro dágua)passa em frente da barraca om seus filhotes. Vejo bandos de maçaricos passando contra as nuvens douradas do sol poente e fico um pouco triste lembrando do meu lugar.
Apesar de só andar meio dia, fiz cerca de 30 km.

3-12-05 Sábado dia 165
Esta noite um graxaim chegou ao lado da barraca. Agora são 6:42, já comi os cereais e estou preparando uma sopa com massa enquanto escuto os pássaros e músicas nativas na rádio pelotense (a mais antiga do estado).
Aqui em frente o canal está calmo, passam bandos de biguás e marrecas para oeste. Isso aqui é lindo demais, eu adoro as Lagoas e o canal de S Gonçalo
Por isto planejei desde o início, se conseguisse chegar até aqui, de vir pelas Lagoas, não gosto de mar, não vejo nada bonito ali, principalmente o do rio Grande, mas isto aqui é cheio de vida, de cheiros e magia. Amo esse lugar!
Estou cheio de feridas na testa, saem pedaços de pele e as bolhas soltam água que gruda nos cabelos, ainda bem que não tenho espelho. Aquele dia sem boné me detonou a cara.
Saio perto de 9 h e paro duas horas depois, já na ilha Grande. Entrou um fortíssimo vento nordeste e meu plano de chegar hoje em Pelotas foi pro espaço.
Eu odeio vento, se pudesse mordê-lo, machucá-lo ou qualquer outra coisa, eu faria.
Sigo em frente e paro ao lado de outra capivara morta para almoçar.
Depois sigo em frente, remando contra esse forte vento só de raiva, não vou perder para esse corno.
Paro em outro local cheio de tufos de capim palha, espalhados pelos campos gramados que no inverno ficam siubmersos.
Dou uma volta para ver se encontro alguma parelheira ou jararaca para filmar, mas o máximo que vi foi uma cegonha comendo uma enorme cobra, mas não deu para ver direito, ele se mandou com a cobra no bico.
Resolvo seguir até a ilha do Pavão e parar mais cedo, esse vento de rajadas fortíssimo deve estar trazendo algo ruim.
Chego na ilha, escalo um barranco, abro uma clareira no alto brejo, pois ali é o único local abrigado que encontrei. Para frente parece haver só banhados.
Não gosto de lugares assim, são cheios de cobras, mas faz parte.
Consigo armar a barraca, tirar o barro cinzento e deito assistindo mais um por de sol.
Não demora muito e nuvens surgem no horizonte.
Chove forte, mas estou bem abrigado. O caiaque ficou meio perigoso lá embaixo, mas amarrei num toco aqui em cima.
Cheguei aqui às 18 h, remei 6 h contra esse vento violento, não avancei quase nada, mas melhor que ficar parado. Digamos que hoje foi sessão musculação.

4-12-05 Domingo dia 166
Parto cedo, com vento contra que vai diminuindo perto de meio dia.
Aproveito para tomar banho de novo e fazer a barba.
Perto de 14 h passo pela décima barragem da viagem e pego uma pequena corredeira ao passar entre as comportas.
Depois as pontes da BR 116 e a ponte do trem.
Às 14:30 encosto no Clube Náutico Gaúcho, já em Pelotas. Sou muito bem recebido por Márcio e sua esposa Suelen. Ele diz que posso dormir por aqui. Tomo banho e vou agradecer. Eles estão ali fora, a mãe dele , dona Celoi é muito legal e oferece café. Sua irmã, Ana Paula e as filhas Bruna e Milena ficam assustadas quando aparece um morcego perdido no dia. Filmo o bichinho e vou para a internet. Fico ali por 4 horas e volto de moto-táxi, pois o local do clube é meio barra pesada e certamente vou reagir, melhor evitar encrenca!

5-12-05 Segunda dia 167
Seu adão, pai de Márcio, abre o clube para eu sair para a internet.
Descubro que ele era o treinador de remo quando cheguei no clube de regatas Rio Grande, nas viagens de Windsurf de 83 e 84.
E agora sou recebido pelo filho dele aqui em Pelotas mais de 20 anos depois
Inclusive ele me deu uma flâmula do clube na época, que loucura!
Bueno, agora são 18 h, estou exatamente há 10 h escrevendo e meu plano de seguir hoje se foi. Some-se a isto as 4 h de ontem.
É isso aí amigos, depois tento baixar as fotos para mandar.
Acho que vou dar um " pulo" em Rio Grande e dali volto e sigo para Porto Alegre.
Tenho até medo de perguntar o que vai acontecer na Lagoa dos Patos, mas isto fica para o próximo capítulo.
Mais uma vez um abraço e obrigado pela força, só por isto estou podendo escrever mais uma parte.

 

-o-

 

 

 

 

 

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