Confissões de um Velho Marinheiro Velho
Destinos menos conhecidos
Geraldo Knippling

Chegou o fim do ano. Pela vigésima sétima vez consecutiva estamos prontos, minha mulher Regina e eu, para o nosso Grande Cruzeiro da Lagoa dos Patos. O “Magana” revisado e abastecido. O Ano Novo, como sempre, será a bordo.


Passando pela bela e escondida praia leste do Morro da Formiga

Saímos em 27-12-06, com bom tempo, rumo à Ponta Escura onde o Rio Guaíba encontra a Lagoa dos Patos. A vela e motor, com ventos fracos e muito calor. Chegamos cedo, muito cedo para pernoitar e resolvemos continuar até à Ilha do Barba Negra. Aí saímos da rotina, pois em vez de passar por onde todos passam, escolhemos um caminho mais pitoresco, entre os bancos de areia da Coroa do Morro e os ameaçadores rochedos do Morro da Formiga, conforme passagem explorada com o GPS em anos anteriores. A água estava baixa, os bancos de areia aflorados e escurecidos por biguás. O estreito canalete estava somente com uns 80 cm de profundidade em alguns pontos. Seguimos com todo o cuidado para não desviar dos rumos traçados. Então perguntam: porque toda essa mão de obra se existe um caminho mais fácil? Certamente para satisfazer o ego e usufruir uma sensação de dever “heroicamente” cumprido, além de apreciar a bela paisagem.

E assim chegamos à desabitada Ilha do Barba Negra. Fomos direto para a nossa já muito conhecida Lagoa Azul que muitos ainda desconhecem porque sua entrada (e saída) fica muito bem escondida entre os juncos. Este ano estava quase fechada devido à água baixa. Mal dava para ver uma fresta. Lugar calmo e lindo. Para não ficarmos entalados nos juncos, seria preciso entrar no embalo. De longe, deu para aproar o barco para o local onde deveria ser a entrada. 

- Porque entrar aí? argumentou a minha marinheira.
- Ora, se não conseguir entrar me sentirei fracassado!


Lagoa Azul, Ilha do Barba Negra

Com toda a quilha recolhida (menos 8 cm) lá fomos nós, o motor largando fumaça. Na hora de passar sobre o junco levei a manete para neutro a fim de não prejudicar a hélice no caso de haver algum galho no caminho. Entramos muito bem, com o benefício de uma limpeza de casco feita pelo junco.

Linda a lagoa: árvores grandes de um lado e vegetação rasteira do outro, evidentemente de difícil acesso às margens. E a água? Bem, dessa vez estava mais para marrom que para azul devido à pouca profundidade. O barco praticamente flutuando sobre o lodo que veio a tona com o movimento da hélice. Como "brinde", devido ao pouco vento, havia aquelas mosquinhas impertinentes, nossas conhecidas, mais uma ou outra varejeira tirando um fino das nossas cabeças e um calorzinho escaldante.

- Vamos sair daqui, falou a marinheira. Concordei logo, afinal, a "missão" estava cumprida.

Acontecia que não havia qualquer saída visível nesse ano. O junco fechou novamente após a nossa passagem. Tentamos, no local de costume, mas a proa esbarrou em vegetação intransponível. Dei ré. O barco ficou imóvel sobre o lodo. Pausa para colocar nova dose de bloqueador solar já que o sol ardia mesmo. Subi até à cruzeta para uma vista "aérea" do local e identifiquei logo a exígua saída. Fomos até lá, nos arrastando. O barco ficou atravessado; não dava para embalar. Mais uma manobra difícil tentando posicionar a proa com o croque que se enterrava no lodo. Mas conseguimos finalmente chegar lá fora. Ancoramos ao largo, próximo à margem. Logo começou a soprar aquele agradável SE do desequilíbrio térmico. Foram-se as mosquinhas e tudo ficou paradisíaco (depois de limpar o filtro de água do motor, cheio de areia e lodo).


Tentando sair

À noite, devido ao pronunciado desequilíbrio térmico, soprou um "lestão" que uivava nos estais e fazia estremecer o barco. Passei o cabo da âncora para a popa que deixou o barco bem mais estável. Estávamos de forma aconchegante abrigados pela ilha saboreando um maravilhoso jantar preparado pela eficiente imediata. Um maravilhoso pôr-do-sol, com todas as cores do arco-íris. Logo fomos dormir, com a intenção de levantar cedo, muito cedo, para prosseguir até ao Barquinho ou até Bojuru, dependendo do tempo e do vento. Preferimos não escutar as mirabolantes previsões do tempo oferecidas pela mídia a fim de não alimentar falsas expectativas. A luz do mastro deixamos acesa unicamente por uma questão de disciplina; seria totalmente desnecessária já que ninguém passa por este lugar; raramente de dia e muito menos à noite, nem pescadores (Piracema!). A tranqüilidade é de fato absoluta.

No dia seguinte.
Disciplina rígida. Restaurados (bem, quase!) levantamos às 4:30, noite escura, na iminência de uma longa etapa pela frente. O vento acalmara; apenas uma leve brisa do setor E. Sentindo o "saudável" frescor da madrugada, o barco coberto por sereno. A capa da vela pingando. Enquanto a recolhia e dobrava a marinheira preparava um quentíssimo café. A pesada âncora Bruce só soltou a motor. Era preciso contornar a ilha bem para o lado W a fim de evitar o extenso banco de areia que se projeta para SW. Para ganhar tempo, achei que daria para passar por um atalho, em rumo mais direto para o waypoint no extremo sul da ilha. Céu estrelado, madrugada linda. Foi quando observei que o ecobatímetro estava marcando menos de 1 pé, exatos 15 cm abaixo do casco. Sim, meu ecobatímetro é dos antigos "shallow water" que indica até ½ pé de profundidade. Infelizmente não fabricam mais. Para não dizer que uso somente estas peças de museu, estava também ligado o outro ecobatímetro com sonar, um "maravilhoso" aparato que faz leituras também para a frente com a fantástica tecnologia do primeiro mundo, só que não funciona no nosso mundo; muito menos em águas rasas e quando indica, a projeção não vai além de um comprimento de casco. Não dá tempo para parar o barco havendo um obstáculo pela frente, só para dar um grito, desde que seja monossilábico. Logo adiante os indicadores do eco se encontraram e sentimos aquelas batidinhas características: bum bum bum do casco roçando o fundo nas oscilações das ondinhas. O barco parou. Achando que se tratava apenas de uma elevação maior do banco de areia, dei uma forçadinha para passar por cima. Foi aí que empacou mesmo. Marcha à ré, marcha para a frente, nada. Pela escada de popa fomos para a água, pouco abaixo da cintura. Andando em círculo em torno do barco, constatamos o que era óbvio: tudo raso. A única opção seria tentar sair exatamente no rumo oposto ao que encalhamos. Para isso seria preciso girar a embarcação 180°. 

Fui para a proa e com uma força para mim descomunal tentei move-la. Minha mulher, com estatura mais baixa não conseguia ajudar muito. Subiu para bordo para auxiliar com o motor e o leme no batente. Finalmente a proa ficou quase na direção desejada. Toda a força para a frente. Aquela fumaça saindo pelo escapamento. Nos movimentamos apenas alguns metros (ou foram centímetros?). O barco parou. Voltei para a água. Um pouco para o lado havia um local com um pouco mais de profundidade. Novamente aquele esforço hercúleo para posicionar a proa, calçando-a com as costas. Lúgubre madrugada. Foi aí que pensei comigo mesmo:
- Pô, que é que estou fazendo aqui?

O tempo foi passando e o dia amanhecendo. Repetimos esta seqüência várias vezes, até que, metro por metro, conseguimos flutuar novamente. Por sorte não foi preciso usar o último recurso que seria levar a ancora bem para a frente, enterra-la no mergulho na areia dura que nem cimento (nada fácil) e puxar com a catraca. Voltamos então para perto do nosso local de partida e evidentemente fizemos um contorno bem maior que necessário para chegar no waypoint desejado.

Levantou um vento fraco do setor W, mas as ondas do "lestão" da véspera ainda não tinham amainado; estavam presentes em forma de swell, tornando a navegação bastante desconfortável. Achamos melhor encurtar a navegada e seguir para o Porto do Barquinho, umas 7 horas na nossa frente. Lá certamente poderíamos contar com toda a segurança, proteção e conforto. Mas isto é outra história.

Em tempo:
Esclareço a quem possa interessar que a Lagoa Azul nem sempre tem as características pejorativas aqui relatadas. Com água um pouco mais alta (ao lado) e os bancos da Coroa do Morro submersos, o acesso é bem mais fácil para quem não se importa de deixar o junco limpar o costado nem queira caminhar em terra firme. No inverno, com água alta é uma barbada.

Ao contrário dos outros alagados da ilha, que não oferecem muita proteção para ondas do setor W, que passam por cima da vegetação, esta lagoa é toda fechada e totalmente abrigada. A entrada fica no través da posição NEG3, para o norte, frente ao alagado mais aberto na direção sul que consta no mapa (O Guaíba e a Lagoa dos Patos). A profundidade na entrada é de 0,6 a 1 m. Lá dentro de 0,7 a 1,2 m. O fundo logo no início é de lodo e a âncora segura muito bem, desde que não seja impedida por uma raiz ou galho submerso. Mais para o lado norte a profundidade vai diminuindo. E por favor, memorize bem o local da saída.

Geraldo Knippling


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