Vagando pelo Guahyba
À vela e a remo, com destino à ilha Barba Negra
João Hugo Altmayer, 1935
Transcrição: Cmte Carlos Altmayer Gonçalves (Manotaço)

21 Mai 2004
[popa]: A transcrição foi fiel, mantendo a ortografia da época. O diário relata navegada pelo Rio Guaíba, de Porto Alegre à Vila de Itapuã, Viamão,RS

"Diário de Hugo"
Escrito por João Hugo Altmayer.

CUPIDO - 1935
Vagando pelo Guahyba, com destino a ilha Barba Negra
Tripulação:
Comandante: João Hugo Altmayer
Marinheiros: Henrique Schmitt
Breno Bohrer

Ponta Grossa, 17 - 1 - 1935. Seis da manhã.
Sahimos esta madrugada, a 1 h, de Ponta do Cachimbo. Fizemos o percurso até Ponta Grossa, parte a remo e parte a vela. O luar esteve maravilhoso. Às três horas lançamos ferro. Dormimos na canôa, até o raiar da aurora, remamos então até além da chácara Wiedespan.
Agora, estou compilando estas notas enquanto Breno e Henrique preparam o repasto matutino. A noite esteve frigidíssima, tendo eu me acordado várias vezes devido à temperatura.

Penosos do delegado aptos para a caçarola
Belém Novo, 17-1-1935; 11 horas

Depois de abundante "breakfast" em Ponta Grossa, remou-se até a olaria do Peixoto. Levantamos panno e assim fomos até em frente a Ponta da Cuíca. Baixamos a vela e entramos na Bahia de Belém Novo, deixando as Cagarras a estibordo, estando nos remos Henrique e Breno.
Agora estou sozinho na canôa, enquanto os companheiros compram xarque e pão; igualmente Breno está providenciando acerca de caninha. Dentro em pouco seguiremos, talvez até Francisco Manoel.

Maior das Cagarras, 17-1-1935; 13 hs.

Ao contrario do que pensávamos, não fomos até Francisco Manoel, devido ao forte vento contrario.
Paramos na maior das Cagarras. Faço estas notas com água na bocca, olhando as panellas dirigidas magistralmente por Breno. Nesta ilha encontramos três frangitos duma criação que o delegado de Belém Novo nella mantinha. Henrique, intitulando-se veterinário-amador, verificou o estado sanitário dos "penosos" declarando-os aptos para a caçarola.
Breno exclama: "Estamos perdidos no Paraizo".

Actividade venatoria
Maior das Cagarras, 17-1-1935, 21 hs

Escrevo sob a luz da padroeira dos amantes. De facto, estamos perdidos no Paraizo. A água refece a luz da lua, parecendo-se a um mar de prata. De todos os lados as ondas vem quebrar-se, com doce marulhar, nos rochedos que cercam a ilha. Tudo inspira poesia. Sinto não ser um Bilac para cantar em harmoniosos versos, a beleza desta noite de estia.
...olhando, porém, para a praia, sou chamado à realidade. Contemplo com satisfação de gastrônomo, Breno e Henrique limpando os franguinhos obtidos pela actividade venatoria de Breno. É meu dever tomar parte na faina e deixo por hoje este diário.

Largo de Itapuan, 18-1-1935, 11 hs.

Saimos hoje de manhã, às 6,30 hs de Cagarra Maior. Velejamos até Ponta do Arado. Fizemos chocolate abordo. Pouco depois parou o vento. Remamos até "Olaria Difini". Velejamos novamente até P.das Canoas, deixando Francisco Manuel a estibordo. O vento calmou novamente, e remamos até em frente a P.do Cego. Começando a soprar vento N, levantamos vela, e agora estamos andando com muito bôa marcha, em direção à ponta de Itapuan. Procuro lobrigar a villa do mesmo nome, mas não consigo, porque o sól está de frente. Breno está se submetendo à heliotherapia de corpo inteiro. Schmitt, em trajes menores, timoneia. Vestido com roupas idênticas, ponho em dia a escripturação de bordo.

Histórias 'ao pé do fogão', em noites de chuva
Villa de Itapuan, 18-1-1935, 22 hs.

Atravessamos o largo de Itapuan, e chegamos à ponta da Lage. Fui à procura de pão e batatas. Não encontrei nada disso. Um agricultor presenteou-me com várias espigas de milho, negando-se a acceitar pagamento. Agradou-se dos meus "Tufuma" e deixei-lhe alguns.
Almoçamos pelas três da tarde.
Breno encontrou um barril na praia, e, apezar dos meus protestos, pó-lo na canôa.
Remamos até o porto de Itapuan. Refizemos o rancho, a maior parte dos comestíveis foram adquiridos em troca do tal barril.
Encontramos o ferreiro da villa, que conhecia o pae do Henrique. Convidou-nos a posar em sua casa. Nella é que faço estes apontamentos. Parece que somos membros de uma mesma família, tal a camaradagem que reina entre nós. O filho do ferreiro, pescador, dá ao Breno lições de arte culinária, quanto à preparação da "caça" da ilha Cagarra. O cheiro que vem da cozinha é de dar água na bocca. Mas não dá, porque acabamos de beber um formidável café, com todo o reforço de costume.
Arynos, o pescador, nos dá indicações preciosas sobre a navegação em canôa, na Lagoa dos Patos, e sobre a localização da Ilha Barba Negra. Arynos e seu pae, contam-nos interessantes histórias de contrabando , de naufrágios, de raptos e outras cousas.
Essas histórias, contadas ao pé do fogão, em noites de chuva, por velhos como aquelle ferreiro, têm um sabor que lhes é característico.

Aprontando: limão contra o escorbuto
Villa de Itapuan, 19-1-1935, 14 ½ hs.

Passamos a noite estirados na sala do nosso hospedeiro. Pela madrugada levantou o rebojo, que estávamos prevendo desde a véspera. Nunca se sabe quantos dias dura o rebojo. Devemos dar por encerrada, por esta vez, a excursão rio abaixo.
terça-feira, 24 de janeiro, queremos estar na Alegria, pois há lá um anniversário, ao qual prometemos estar presente. Promessa é dívida.
O gozado de nossa estadia em Itapuan foi o seguinte: Comemos as galinhas; depois de estarmos fartos, Breno e eu, não havia geito do Henrique parar de comer. Breno teve uma idéia genial. Abriu uma articulação e cheirou.
-"Menina! Schmitt! A galinha está podre". Schmitt, assustado, cheirou:
-"Não está cheirando bem não!"
Diz o Breno: "Schmitt! Isto dá escorbuto".
(Decerto ele leu esta palavra em algum livro do Salgori.) Acrescentei:
-"Dá mesmo. Remédio contra isso só limão."
E Schmitt fazendo imensidade de caretas chupou uns cinco limões. Mas estava salvo do escorbuto!
Talvez hoje mesmo levantemos vôo. Tudo depende do vento, de sua direção e de sua força. Si houver luar, talvez saiamos à noite, será mais romântico (ai!).

Exposição de especimens zoológicos quase microscópicos
Arroio Chico Barcellos, 19-1-1935; 21,30 hs.

Resolvidos a voltar levantamos vela, as 16 horas; saccamos panno pois o vento era muito forte, tempestuoso. Poucas vezes andei tão ligeiro sobre a água. Estava sensacional. Ondas agigantadas, como iguaes só conhecia da praia do mar. Difícil de timonear. Nunca cansei tanto no leme de um barco. Breno e Henrique deitaram-se no fundo do barco para augmentar a estabilidade. Entrava, apesar disso, água pela proa, pela popa e pelas bordas. Para evitar naufrágio, paramos atraz do Morro do Côco. Resolvemos acampar. Jantamos galinha com café e pão em abundância. Armamos a barraca. O chão, no nosso acampamento parece uma exposição de especimens zoológicos quase microscópicos. Que nos reservarão elles para a noite? Veremos.

Praia Chico Barcellos, 20-1-1935; 4 ½ hs.

É madrugada... Faço o meu quarto de vigia, ao pé do fogo que arde desde o anoitecer do dia 19. De quando em vez dirijo-me até a orla da matta, verificar algum ruído suspeito. A lua illumina o acampamento com seus raios prateados, dando a tudo um aspecto fantástico. A alguns passos, pequenas ondas vêm quebrar-se na areia, com doce murmúrio. Estou de guarda desde 3hs ¼ e saboreio alternativamente um chimarrão ou uma excelente cachimbada. Breno e Henrique dormem profundamente, como dous innocentes. Não é por serem innocentes, mas estão cansados das fadigas do dia anterior.

Calças bem frizadas para desembarcar na Barra do Ribeiro
Largo do Jacaré, 20-1-1935, 16,30 hs.

Sahimos de Chico Barcellos às 6hs30. Remando e velejando, quando o vento permitia,despontamos sucessivamente a P.do Cego e a P. das Canoas, chegando às 10hs30 a ilha Francisco Manoel.
Fomos recebidos com a gentileza já nossa conhecida, pelo snr. Escobar e seus filhos. Os rapazes ajudaram-nos a preparar o nosso café da manhã. Ensinaram-nos manobras de vela que conhecíamos mal. Depois de alguns momentos de agradável palestra, levantamos vela para Barra do Ribeiro, cobrindo o trajecto em duas horas.
Vestimos trajes de sport, e todos de branco, calças bem frizadas, etc., desembarcamos. Compramos pão, porque o stock estava quasi esgotado. Visitamos a família Hubert. Foi nos offerecido um café reforçado, muito a propósito, pois já eram 2 hs da tarde e não tínhamos ainda almoçado.
Contamos nossas peripécias e palestramos demoradamente com as pessoas dessa família, que há dous annos nos hospedou, por occasião da nossa primeira excursão àquella localidade.
Despedimo-nos. Com vento ¾ de proa, veçejamos até P.da Ceroula. Despontamo-la, e agora navegando com vento de ré, por frente da ponta do Jacaré, onde há dous annos passamos uma noite que será sempre lembrada por todos nós, pois que quasi fomos devorados por uma variedade de insectos, entre os quaes destacavam-se os taes "mosquitos pólvora".

Tiroteando no Petim, de madrugada
Ponta da Figueira, 21-1-1935, 9hs45.

Paramos, hontem, na praia do Petim. À noite puzemos vigias, quarteando, Henrique, eu e Breno.
No meu período de guarda ouvi um ruído estranho, como o extertor de uma vacca moribunda. Passei a mão na espingarda e fui averiguar a causa do ruído. Guiado pelo som, fui dar na barraca. Approximei-me. Apurei ouvido. Era o Henrique que roncava a plenos pulmões.
Breno que esteve de vigia de madrugada, alvejou um animal que elle afirmou ser um gato do matto.
Partimos do Petim às 8 horas; atravessamos o juncal da P. da Figueira e nos dirigimos à vela, com vento cuja velocidade é de, mais ou menos, 10 m por hora. Ninguém quer remar. Não tem importância, porque não temos pressa. Estamos com a proa para o arroio Passo Fundo.

Saudades da 'excursão'
- Neste ponto termina o diário de bordo.
Descreverei, porem o resto da viagem.
Chegando no arroio Passo Fundo, fomos fazer a primeira refeição do dia, à 1 h da tarde. Constou de pão, pattê, salsicha, chá e melancia. Às 3 horas sahimos do arroio Passo Fundo e, numa magnífica velejada chegamos a P.do Cachimbo, as 4 hs. Tomamos café em quantidade, pois a ultima refeição havia sido muito parca.
É este o último capitulo dum dos mais bellos passeios que tenho realizado. As impressões que se recebe de um tal passeio são daquellas que se gravam fundo na memória. Hoje, que passo a limpo estas notas, passados 8 mezes lembro-me ainda das menores occurrencias.
Sinto saudades de outra excursão como esta.
Tristeza, 22 de Agosto de 1935
João H. Altmayer

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Notas do Manotaço:

1 : Chácara dos Wiedespan - atual moradia do iatista Ralph Gunter Hennig, "TATU".
2 : Olaria do Peixoto - atual Clube do Médico.
3 : Salgori - escritor de livros de aventuras
4 : "Soccamos panno" - rizamos pano.
5 : "Chico Barcellos" : arroio Chico Barcellos, fica ao NW do Morro do Côco, ao final E da praia do Lami, é a divisa dos municípios P.Alegre e Viamão.

Comentários recebidos

16 Out 2009
Leonardo Esch

Olá Manotaço,
obrigado por compartilhar conosco esse texto tão belo. Excelente para provocar uma reflexão sobre as modificações nesse ambiente em tão pouco tempo...


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