O jaibe dos Passow
Uma família enfrentando o mar. Ou melhor, o convívio no mar
Jane Passow

Veleiro tecnicamente pronto para "ir à luta". Toda a família a bordo, roupas espremidas nos poucos armários e a emoção de finalmente encontrar o Caribe! E, cá entre nós, já não era sem tempo... Desde a saída de Porto Alegre, em dezembro de 2002, a lenga-lenga toda tinha consumido um ano e meio.

Primeiro, a costa brasileira que foi sendo alcançada devagarinho, como aprendizagem e adaptação. E que adaptação! Foi tão complicada que resultou no retorno de toda a família a Curitiba, de ônibus, menos o capitão.
Morávamos lá antes de embarcarmos e havia nossa casa pra nos acolher, apesar de estar sem móveis.
Pra acolher, mais exatamente a mim, que explodi. Os filhos aproveitaram este tempo e ficaram em terra, comigo,  mas de forma circunstancial.

Isto aconteceu na Ilha Grande, Angra dos Reis. Foi um verdadeiro motim! Mas o recado claro era que estava difícil naquele momento, impossível de aceitar o pouco espaço, a falta de privacidade, a falta de conforto, o calor, os enjôos a cada saída, as brigas. Enfim, dificílimo de fazer do mar o nosso jardim. Tudo aquilo era mais pra pesadelo que pra sonho dourado.

Pra agravar, o dinheiro (ah! o dinheiro...) pra nossa "empreitada" eram pouquíssimos recursos. Bem administrados, dariam para sobreviver até o final da costa brasileira e sair com uma reserva que poderia ser 
considerada bem uma piada. A família toda sabia disso mas parece que esquecemos de comunicar ao nosso sexto elemento: o barco. Não havia um dia que algo nao exigia ser reparado com "urgência".

Foram muitos novos rotores da bomba do motor (até se descobrir que havia uma imensidão de pedaços velhos  no cano), entupimentos de porão (refizeram a parte elétrica e deixaram os pedacinhos de fios ali mesmo, sabe...), as próprias bombas de porão (a automática e a de reserva estragando, entupidas), as catracas emperrando, o dingue totalmente miserável, o motor do dingue se autodestruindo sem controle, pela própria idade. A cruzeta precisando ser substituída. E mais grave que tudo: a pintura do costado começou a "cair".

Tendo estado em água doce, quando o Luiza foi ao mar e ficou, a tinta mostrou-se ineficaz. Vontade de "socar" a tinta, quem pintou, quem comprou a tinta. Vontade de levar de volta pra refazerem... Muitas " horrendas" e censuradas vontades!

...Então, dinheiro contado, material providenciado, foi ali mesmo na água que tivemos que agir. Com espátulas e removedores até alcançar o "primer" fomos, evitando mas sem conseguir, poluindo aquele fundo de água tão lindo, na frente do Restaurante do Lele. Revezamento, mutirão mesmo.Uns mais que outros naquela luta sob o calor e
diante da pressa em não deixar o costado exposto.

Cena cômica e houveram apostas (depois soubemos ) se conseguiríamos. Certeza que barcos por perto escutaram alguns gritos nesse período... Que stress!!!
Foram 35 dias e os derradeiros para culminar naquele motim que já falei (mas o Luiza teve seu costado inteiro refeito e lindamente pintado. Quem apostou contra, perdeu).

E perderam também os "fregueses" dos pães do Luiza, que se viram de uma hora pra outra, sem o pãozinho caseiro fresco. Mordomia total: entregue no cockpit de cada barco, quentinho, entre 6 e 7horas da manhã. Cada dia um tripulante nas vendas, outro no remo!

Mas com a mão na massa, sá nossa filha Débora, então com 19 anos, a dona da receita. Nos bastidores, nosso capitão e eu fazendo turnos para assar, de dois em dois pães, dado ao tamanho do forno do fogão de duas bocas (esse clássico, que você conhece). Vinte minutos cada: fica fácil imaginar quantas noites perdemos pra entregar 30 pães encomendados previamente...

E a sacanagem: os "fregueses" nem foram comunicados que a padaria fechou  em definitivo!!!!!!
Mas, no momento em que tivemos a idéia que seria uma forma de fazer dinheiro, ah! eles foram procurados. Um a um, com direito a prova de sabor e tudo! Enfim, isso também estava encerrado... O forninho do fogão de duas bocas trabalhou muito e agora poderia descansar....

Foram necessários, sem programar, 390 dias para que toda a tripulação do Luiza se reencontrasse. Para que aquela estória dos primeiros 5 meses, fosse digerida individualmente. Re-pensada. E assumida. Cada um de nós foi percebendo que num barco, pra uma família viver num barco, há que se separar a emoção da razão. E depois misturar tudo.

Há que se ver o pai como o capitão quando ele está atuando como um capitão.
Há que se ver o pai como pai, e descobrir por si próprio, a hora disso.
Há que ser capitão, tripulante, marido, filhos e esposa, de forma leve, bem humorada.
Há que se ver o barco, como um sanguessuga sim de dinheiro, fazer o que?...
E há que se unir, como nunca, na hora de erguer uma vela cujo carrinho enguiçou e a catraca não funciona.

E fazer muito turno de olho aberto porque não há piloto automático. E enjoar, que logo passa.
E trocar o dia pela noite pra aproveitar o ventinho que "HOJE está como os livros descrevem".
E procurar, lá no fundo do armário, por cima do fogão "o último" biscoito doce, com o barco todo adernado.
E passar com um sorriso no rosto a chave de fenda, a phillips, o jacaré mais uma vez e mais uma vez.
E limpar o fim de café que estava na xícara e caiu bem aonde a gente senta, no cockpit.
E manter o cachorro "aqui pertinho" pra não ser sugado  pelas bordas.
E arrumar as velas que o vento mudou de novo, ah!, agora acabou!
E arriscar em ler um livro, agora que se está melhor da náusea.
E fazer e conferir a rota, minuciosamente, quando se gostaria de estar dormindo.
E ficar atento. E conversar. E lembrar. E rir.
E então o mar começa a ser sim o quintal da nossa casa.

Guilherme, o filho mais velho, foi o primeiro a voltar pro barco. Saiu de Guaratuba - PR com o pai, dia 2 de fevereiro de 2004. Ambos fizeram a costa brasileira, sem piloto automático nem leme de vento.

Carlos Henrique, o mais novo, então com 18 anos, mudou-se em definitivo para o Luiza, em Fortaleza - CE. Mais um tripulante pra fazer turno. Mais um pra puxar vela.

Débora e eu embarcamos na Venezuela, em junho do mesmo ano. Tinha um jantar caprichado nos esperando, à mesa.
E também toda uma rotina de novo: viver a bordo. Absolutamente todos conscientes, desejosos e de mangas arregaçadas. Mas o retorno efetivo ao mar demoraria ainda mais seis meses, porque a estaçao dos furacões se faz presente e segue até novembro. Sem problema algum: vamos conhecer o que der deste povo, deste lugar e ter
paciência. Palavra chave pra quem veleja, aliás.

 

 

 

 

 

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