Navegada a Tapes
A Aline no Capão da Lancha
Danilo Chagas Ribeiro

Há meses planejávamos subir o Jacuí, o principal afluente do Guaíba, até Cachoeira do Sul. Seria uma empreitada e tanto, dada a extensão e a falta de informações dessas águas. Seríamos 6 tripulantes desatracando no dia 21 de dezembro de 2003.
Um telefonema para a concessionária da hidrovia dias antes acabou com nossos planos. O rio estava tão cheio lá em cima que as eclusas (encobertas) nem estavam operando.

O plano alternativo foi São Lourenço do Sul, na Lagoa dos Patos, 30 milhas* ao norte de Pelotas. Como o tempo estava feio e com previsão de temporal, o horário de saída foi sendo postergado até as 9:20h quando finalmente o comandante Adroaldo Mesquita da Costa, Joel Schroder e eu, desatracamos a Aline (CarbrasMar 32) do Veleiros do Sul, em Porto Alegre.

Coisa de navegador

A tripulação inicial acabou reduzida à metade. Ao confirmar a ida, um de nossos amigos havia esquecido do batisado da neta. Bem coisa de navegador! Quando se trata de embarcar, tudo o mais fica relevado a um segundo plano. "Navegar é preciso" é um bordão que jamais ouvi entre navegadores, mas é só nisso que pensam.

Joel, como sempre, providenciou na comilança. Estava excelente, como de hábito.
No notebook conectado ao GPS rodava o Ozi com a carta da Lagoa.
Outros preparativos incluíram telefonemas à pessoas da região para saber das condições meteorológicas.

Mudança de rumo

Em uma hora de navegada cruzamos pelo Farol de Itapuã, 24 milhas a sudeste de P. Alegre, onde o Rio Guaíba se espalha na Lagoa. Ela estava tranqüila, com uma brisa bem suave, ótima para navegar de lancha.

Apesar da previsão ruim, havia sol. No rumo de São Lourenço cruzamos pelos

restos do navio Álvaro Alberto soçobrado em 1.992 no meio da Lagoa.

Como o horizonte ao Sul não era dos mais promissores, resolvemos entrar em Tapes para mais tarde decidir pela continuação ao destino.

Com a mudança de rumo, passamos a observar a paisagem à nossa direita (costa oeste da Lagoa).

Identificar o Pontal Santo Antônio de longe para quem desce a lagoa no rumo de São Lourenço, é algo confuso. Como a região é descampada, a sobreposição da vista do pontal e a da costa da enseada, e ainda as tênues diferenças de relevo tornam a navegação visual um tanto difícil para quem não conhece a região. Nestas horas, a carta digital a bordo com a posição do barco plotada a cada poucos segundos é de muita utilidade.

Capão da Lancha

O pontal de Santo Antônio, apontando para o sul, forma a Enseada de Tapes.

Na extremidade deste pontal de umas 10 milhas, há uma bifurcação. Dentro da forquilha está o lugar denominado Birú, com reflorestamento não nativo, o que tira um pouco da importância turística do local.

Afastando-se da extremidade do pontal (indo para o Norte), este istmo tem um estreitamento um pouco ao sul do local denominado na obra de Knippling, de Capão da Lancha, com uns 200 metros de largura.

Fundeamos a Aline aí, dentro da enseada: S30º45,110 W051º17,817 (carta anexa). O desembarque foi feito por um inflável.

O local é deserto e a praia, de areia, tem vegetação escassa. De um lado das dunas baixas, a lagoa, e de outro a enseada (veja cena de vídeo de 360º mostrando a lagoa e as dunas).

O sol estava pegando. Tomamos banho na lagoa, e na enseada: as águas são limpas e têm tonalidades e temperaturas diferentes.

Peixes de bom tamanho, provavelmente tainhas, conferiram nosso desembarque, passando rente ao inflável.


Tapes e o declínio da navegação comercial no RGS

No município de Tapes, a umas 60 milhas de P. Alegre, o cultivo de arroz exerce papel econômico importante. Conta minha mãe que já nos idos de 1942, quando meu avô foi prefeito naquelas bandas, carretões puxados por búfalos levavam o arroz para embarque no porto.

Por todos os cantos do Rio Grande do Sul, da Lagoa Itapeva à Mirim, e do Rio Taquari ao Palmares, e por onde quer que se navegue, ouve-se a história da importância da navegação comercial pelas águas interiores do estado. Hoje em dia, são estas histórias praticamente o que restou desta navegação tão intensa. Um sistema de transporte econômico, ainda tão utilizado no mundo todo, e que aqui sucumbiu drasticamente, sabe-se lá por interesses de quem... Dá pena ver o investimento vultuoso em eclusas e portos, praticamente sem aproveitamento.

CNT

O Clube Náutico Tapense é bonito e bem cuidado.
Há algo como 50 barcos, na maioria veleiros, atracados nos trapiches bem construídos: observei que os postes para as amarras de atracação não são os mesmos que sustentam o trapiche, evitando que os trancos em dias de vento afrouxem a estrutura.

Bem ajardinado, o clube oferece também cais com rampa, canchas de tênis, piscina, campo de futebol e banheiros em ótimas condições. Há praia de areia clara e recantos com churrasqueiras, com direito a canto de pássaros, incluindo casais de pica-pau.
As três primeiras diárias são por conta da casa.

Os Cavaleiros do Meio da Lagoa e a Virgem do Trapiche

Com a final do dia chegando, pensamos nos mosquitos. Não havia vento e com certeza teríamos uma noite danada. Comentamos sobre a falta de mosquiteiros na Aline.

Alexandre Hagemann é um velejador que sabe da cultura da região. A bordo da Aline, à tardinha, comentou sobre a lenda dos Cavaleiros do Meio da Lagoa: antigamente os marinheiros que navegavam pela região de Tapes diziam ter visões de cavaleiros montados, no meio da Lagoa dos Patos.

Logo ao sul da enseada de Tapes está a Ponta Dona Helena. Do outro lado da lagoa, 20 milhas a leste, está a Ponta São Simão. A partir da Ponta Dona Helena, forma-se o enorme Banco dos Desertores, que avança mais de 7 milhas lagoa adentro, indo portanto até quase ao "meio da lagoa".

Na verdade a visão dos marujos era uma realidade inacreditável. Os peões de fazenda conheciam o longo e extremamente raso banco de areia, e aventuravam-se lagoa afora à cavalo.

A noite já havia chegado quando o Adroaldo e eu, jogando conversa fora no cockpit da Aline e certamente impressionados com as histórias do Alexandre, e ainda naquele silêncio absoluto, também tivemos uma visão.
Vimos o que nos pareceu ser uma virgem caminhando lentamente pelo trapiche (o Joel não viu porque tinha ido buscar o mosquiteiro no Odim, o veleiro da filha dele).
"Sem alegria o homem é muito pequeno", diz o dito popular francês.

Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come

Na manhã seguinte partimos em direção ao Pontal Santo Antônio onde, em função dos ventos, decidiríamos sobre a continuação do passeio. Não só o vento já estava fazendo ondas, como via-se chuvas isoladas ao sul. A decisão foi voltar a Porto Alegre, deixando São Lourenço do Sul para outra vez.

O vento aumentou ao longo do percurso de volta. Sul que era em Tapes, o vento já havia rondado para o Norte, e pouco depois já vinha do Oeste com uns 10 ou 15 nós. A Aline foi recentemente equipada com flaps de comando elétrico independente, permitindo o giro em torno dos eixos longitudinal e transversal da lancha. Mesmo na melhor regulagem, a velocidade teve que ser reduzida, de tanto que a proa batia nas ondas.

Quase com a Ilha do Barba Negra no través, percebi um temporal poderoso pela popa que, embora longe, causava certa inquietação a bordo. Pela proa, driblávamos incontáveis troncos e galhadas que desciam pela lagoa. Do oeste, o vento crescendo cada vez mais, e a leste a imensidão da lagoa.

Entre correr do temporal e evitar uma topada de proa nos tocos, o jeito foi reduzir a velocidade. As ondas obstruíam a visão dos tocos, visíveis somente quando bem de perto. Nunca vi tanta madeira espalhada na água, desde galhos com meio metro a toras inteiras com mais de 5 metros.
O comandante não tinha sossego no timão, fazendo um zigue-zague entre os obstáculos. O posto de comando da Aline está a bombordo, de onde levantavam as ondas que batiam no parabrisa. A visibilidade do comandante era garantida pelo limpador que fazia um barulhão incomum.

Pororoquinha em Itapuã

Junto ao Farol de Itapuã, com o vento comendo do Oeste já a uns 20 nós, via-se uma faixa de ondas na direção leste-oeste. Como uma porteira para entrar no Guaíba, a água estava muito escura e bem revolta. Fez lembrar da pororoca, que ocorre quando o Rio Amazonas encontra o mar.

Tem alguma coisa queimando a bordo!

Resolvemos entrar na Vila de Itapuã, para almoçar. Havíamos recém deixado a Ilha das Pombas por bombordo quando o cheiro de algo queimado recendeu na cabine, apesar do parabrisa dianteiro de boreste estar aberto. Desci à cabine de proa para verificar. Nada... Tampouco no banheiro.

As janelas foram fechadas para facilitar a identificação da origem do cheiro, mas nem assim tivemos sucesso. Adroaldo sugeriu que se localizasse o extintor de incêndio. Procura daqui e procura dali, e nada de se encontrar. Nem o que queimava, nem o extintor. Começou a atucanação. Finalmente o extintor foi descoberto bem posicionado, bem visível, e carregado, na parte traseira da cabine.

O que queimava continuava fedendo não se sabia onde, até que começou a vazar óleo do motor do limpador do parabrisa.

Knippling "a bordo"

Mais uma vez ressalto a importância da obra do Cmte. Geraldo Knippling a bordo nas navegadas pelo Rio Guaíba e Lagoa dos Patos.

O livro tem tudo o que um navegador possa querer saber, a não ser se chove ou se venta no destino pretendido no momento da leitura. Mas ainda assim, indica os ventos predominantes em cada lugar, e aponta refúgios para este e para aquele vento**.

Quando os deuses estiverem contra a navegação digital...

Cartas náuticas convencionais, livros do mestre Knippling e a previsão impressa do CPTEC.
Plotter com a carta da região.
GPS contendo os waypoints mais importantes e a rota planejada.
Eliminador de pilhas do GPS e pilhas de reserva.
Notebook rodando software de navegação com cartas digitalizadas.
Inversor de corrente para fazer o notebook funcionar
Cabos de alimentação e conexão GPS-Notebook para plotar continuamente a posição da embarcação na tela.
Ecobatímetro.
Radar.
Antena externa para telefone celular.

Este aparato todo tem sido o padrão nas navegadas com a Aline.
Só há uma desvantagem em dispor de tudo isso a bordo: fica-se mal acostumado e perde-se um pouco daquele prazer de descobrir as informações de forma mais primitiva, como eu navegava na região da Lagoa da Pinguela. Se algum dia faltar parte deste kit, poderemos passar um pouco mais de trabalho para descobrir as informações necessárias. Por isso, mesmo com todo este aparato a bordo, não me canso de ir plotando sobre a carta impressa, a cada 1/2 hora mais ou menos, o ponto por onde passamos. Assim, quando todos os aparatos tecnológicos amotinarem-se, ainda vou ter a bússola, a lapiseira e a velha carta impressa para fazer a navegação estimada.

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(*) a milha aqui referida é a náutica = 1,852km
(**) à venda na secretaria do Veleiros do Sul (fone 51.3267-1733)

 

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Vídeo

Imagens gravadas em 21/Dez/2003, a bordo da Aline e no Pontal Santo Antônio
Duração do vídeo: 80 segundos
Stream publicado em 320 x 240 pixels @ 100kbps.

Assista o vídeo: Navegada a Tapes

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