Navegando pelo Sul - Vendaval
De Montevidéu ao Rio Grande
José Cândido Pimentel Duarte
Transcrição por Carlos Altmayer Gonçalves
Manotaço
Revista Yachting Brasileiro nº 20
Junho – 1946

 

Eram 23h30m do dia 24 de Fevereiro de 1946 quando movimentamos o “Vendaval”, a motor; Francisco Alvarez, pilotando a lancha do Yacht Club Uruguayo, mostrava-nos o caminho para sairmos do porto do Buceo; em terra, na ponta do molhe, poderoso holofote nos auxiliava também a tarefa, enquanto pequena multidão ovacionava, em despedida, o nosso barco. Fric, frics dos brasileiros foram erguidos em resposta aos hurrahs dos orientais; a seguir rumamos para a ilha das Flores, tocados por forte vento do norte; íamos a todo o pano fazendo uns 9 nós. À 1h25m do dia

25 de Fevereiro de 1946
montamos o farol da ilha das Flores, deixando-a uma milha ao norte e a seguir soltamos o rumo verdadeiro de 90° para passarmos entre Punta del Este e a ilha dos Lobos. Céu estrelado, temperatura de 23°C, barômetro alto, tudo propicia ótima viagem. Às 4h40m tínhamos o farol de Punta Negra pelo través, e a marcha continuava esplêndida; lá pelas 6 horas da manhã o vento foi arrefecendo até ficar reduzido a uma ligeira brisa de força 1, da escala de Beaufort. Às 11h40m encontramo-nos com o cúter argentino “Altair”, de propriedade e comando do Sr. José Adair, que partindo de Punta del Este vinha trazer-nos os votos de boa viagem. Pouco depois um lobo marinho aproxima-se de nós fazendo as suas gatinmanhas; corremos a apanhar a máquina fotográfica, mas o malandro deu um mergulho e sumiu-se, deixando apenas gravado em nossa memória os seus longos e hirtos bigodes, a cor negra do pelo e as alvas e salientes presas. Aliás, constituem eles uma riqueza do Uruguay; na ilha dos Lobos, juntam-se aos milhares, e em determinadas épocas do ano os uruguaios caçam-nos para aproveitar a pele, extrair-lhes o azeite, e obterem um grande número de utilidades outras. Às 13h45m marcamos o farol da ilha dos Lobos por 152° e o de Punta Del Este por 257° tomando assim a nossa posição; depois de montarmos a Punta Del Este, viração fraquíssima de ENE, vento de proa, portanto obrigava-nos a bordejos constantes; junto da costa a corrente era fraca, mas assim que amarávamos umas 6 milhas sentíamos que aumentava na direção do sul e que pouco caminho fazíamos; por isso procuramos navegar cosidos à costa, dando bordos curtos para fora e longos para terra, de modo que aproveitássemos, em algumas ocasiões, a revessa. À proporção que entardecia, o vento aumentava bastante, sempre, porém, de NE. Quando entramos no dia

26 de Fevereiro de 1946
As estrelas brilhavam num céu sem nuvens. Sempre em bordejos fomos marcando os faróis de Punta José Ignácio, Punta Santa Maria, Cabo Polônio, cujo través atingimos às 16h e 40m; nessa ocasião bordejando mais longamente para o mar, pudemos observar o vigor da corrente sul. Às 18h30m marcamos a nossa posição com o auxílio da agulha – Cabo Polônio 222°, Cerro dos Defuntos 328° e Fortaleza de Santa Tereza 14°, quando navegávamos no rumo verdadeiro 19°. O invariável vento de NE, apenas fazia ligeira variação: à noite vinha para o norte, era o NNE, pela manhã calmava um pouco, voltando novamente a NE; à tarde soprava de ENE, E não havia nada a fazer senão continuar bordejando. Assim entramos no dia

27 de Fevereiro de 1946
Pouco antes de clarear o dia, montamos o farol do arroio Chuí, às 10h e 40m marcamos o de Albardão por 358°; ao cair da tarde observamos em terra forte trovoada, que quando se dissipou, permitiu que víssemos o farol de Sarita, exatamente no ponto em que o esperávamos marcar; nesse dia tínhamos tomado a latitude meridiana, fazendo a seguir uma série grande de observações antes de escurecer o horizonte, a fim de termos absoluta confiança na aterragem sobre a perigosa barra do Rio Grande.
Como o vento soprava a um largo, resolvemos arriar a giba para reduzirmos a marcha do barco, a fim de chegarmos à bóia dos práticos, na entrada daquele porto, de madrugada; não teríamos assim que esperar muito pelo dia para investirmos pelo canal. Na verdade logo após havermos entrado no dia

28 de Fevereiro de 1946
avistamos o farol da barra do Rio Grande, e pouco depois as luzes de Cassino, pequena povoação balneária que fica na orla do Atlântico e aonde vão veranear as famílias gaúchas.

O vento de proa, que nessa ocasião rondou mais para o N, obrigou-nos a dar um bordo para fora, o que aproveitamos para ganhar tempo, como dissemos, e passar por fora da barra, que fica fronteiro aos molhes. Depois de nos termos aproximado da bóia dos práticos, ao norte do canal, aproamos sobre ela, aproveitando então o vento de popa para nos facilitar a manobra de montarmos com bom seguimento o molhe de E, onde se espetara o “Araraquara”, há anos passados.

A maré corria violentamente, mas com a vela e com o auxílio do motor conseguimos entrar ao clarear do dia sem grande dificuldade, indo amarrar no cais do Porto Velho, por volta das 8 horas da manhã. O Comandante Coimbra, capitão dos Portos do Rio Grande do Sul, a quem, aliás, já tivemos a honra de ser apresentados, por ocasião as primeira viagem do “Vendaval” a Santos, em 1942, ali se encontrava agitando o seu boné e dando-nos as boas vindas. O prático do porto, Sr. Gonçalves, mostrou-nos com grande gentileza o lugar no cais velho onde deveríamos amarrar. Logo depois de amarrados chegou o “Pingüim” com o Sr. Bromberg, o nosso Leopoldo Geyer, que nos deixara em Montevidéu e que nos viera receber no Rio Grande, além de outros companheiros onde se incluía o Dr. Altmayer, comodoro do Rio Grande Yacht Club. Soubemos então que deveríamos almoçar na “Gruta Baiana”, famoso restaurante da velha cidade do Rio Grande; antes do ágape visitamos esse clube e a Capitania, onde o Comandante Coimbra nos aconselhou a tomar prático para a nossa viagem a Porto Alegre, coisa que não fizemos por haver muitos “práticos” a bordo. Pouco depois das 13 horas terminamos o opíparo almoço e às 13h30m desse mesmo dia 28 de Fevereiro iniciamos a nossa viagem para Porto Alegre, verificando logo a seguir que tínhamos de fazer a praticagem de um canal que nos era absolutamente desconhecido.

A carta americana que levávamos era deficientíssima, mas felizmente o Dr. Duprat da Silva, Engenheiro Chefe da Administração do Porto, brindara-nos com uma coleção delas, levantadas pela Secretaria de Viação e O.P. do Estado do Rio Grande do Sul, mas ainda assim eram elas mais propriamente plantas que cartas apropriadas à navegação. Não pregamos olho, íamos marcando com um lápis bóia por bóia; passamos incólumes pelo perigoso canal da Feitoria e entramos na Lagoa dos Patos, já noite fechada. À 0 hora do dia

1º de Março de 1946
navegávamos aproados sobre o farol Capão da Marca, cuja pouca luminosidade nos chamou a atenção. Às 7h45m marcamos o farol de Cristóvão Pereira por 45°, que ficou pelo través às 8h15m. A lagoa é uma imensidão, havendo necessidade de uma navegação perfeita, pois de outro modo os iates de maior calado poderão ver-se em dificuldades; o fundo de areia dura pode provocar sérias avarias.

Lá pelas 3 horas da tarde vimos formar-se uma trovoada pelas bandas de SW; parecia ser coisa local. Às 4 horas, quando nos aproximávamos do Farol Itapoã, com a lagoa já apresentando a cor barrenta do rio Guaíba, aproximou-se de nós o Guanabara “Marat”, de propriedade do Sr. Luís Antunes da Cunha, que o tripulava juntamente com pessoas de sua família, o qual nos levava correspondência e telegramas enviados para Porto Alegre por pessoas de nossas famílias.

A seguir cruzamos com o “Orion” e ainda com o “Miraguaya”.

Estávamos em dúvida se deveríamos fundear no Sítio, enseada formada pelo rio Guaíba a NW do farol de Itapoã, para seguirmos viagem no dia seguinte, ou se continuaríamos imediatamente para Porto Alegre.

A nossa dúvida provinha da falta de conhecimento local, uma vez que a carta silenciava sobre a profundidade e perigos existentes nessa enseada do Sítio; o nosso era ficar ali, mas sem aquele conhecimento e na ausência de indicação no roteiro, que aconselha tomar prático, seria temeridade investirmos por um remanso de rio.

Mais tarde o mestre do “Camaquã”, com quem travamos conhecimento, informou-nos que ali há várias pedras perigosas que quase afloram à água e que não estão marcadas na carta. E por isso enveredamos pelo perigoso canal dos Juncos (enveredar é o termo, pois que o canal dos Juncos é uma verdadeira vereda, com a vantagem apenas de ter fundo de lama) onde o Guaíba faz um cotovelo bem fechado. Redobrando a cautela, íamos passando junto às bóias de luz, pois supúnhamos que navegando os navios à noite deviam estes por elas guiar-se, e, portanto, o caminho por ali deveria ser mais safo; um dos nossos “práticos”, entretanto, achou que estávamos muito próximos da ilha do Junco, na margem direita do rio, onde já uma vez encalhara, e que deveríamos ir para o outro lado do canal, junto das bóias cegas; assim fizemos, mas não havíamos caminhado uns 40 metros quando encalhamos na tabatinga. Veleiros do “Orion”, do “Miraguaya”, do “Marat” e de inúmeros outros iates tentaram safar-nos; espiamos o nosso ferro bem distante procurando arrancar o barco com o auxílio do guincho, mas foi tudo em vão.

Felizmente o tráfego aí é intensíssimo; vimos, por exemplo, um navio argentino passar pertinho de nós, calando 14 pés (o “Vendaval” cala menos de 10 pés) com o prático na ponte de comando; pelo seu calado evidentemente que não nos poderia auxiliar; acrescendo ainda a circunstância de que logo após montar o farol de Itapoã também encalhou e necessitou auxílio de um rebocador do Estado. Mas a nossa demora à espera de socorro não foi muito longa; depois surgiu um iate a motor, o “Camaquã”, que da lama nos safou. Aconselhou-nos a pernoitar na enseada do Sítio, onde iríamos fundear.

O canal no rio sofre alterações constantes na sua profundidade a todo momento, máxime naquela ocasião, em que a draga não estava trabalhando em conseqüência da greve nas minas de São Jerônimo e, por isso, desejava que a viagem só prosseguisse com prático a bordo a fim de não nos arriscarmos a novo encalhe.

Assim perguntamos ao Mestre do “Camaquã”, Sr. João Gil, que faz 6 viagens redondas por mês de Porto Alegre a Rio Grande, se ele poderia arranjar-nos um prático; depois de consultar a tripulação e de pedir-nos que procurássemos a Agência Veloz, de Porto Alegre, proprietária do barco, foi-nos cedido o segundo piloto Sr. João Pereira de Sousa. Guiado pelo “Camaquã”, fundeamos naquele saco chamado Sítio, onde pernoitamos, na placidez de um lago, dormindo um sono reparador de duas noites de vigília ininterrupta (a da aterragem a Rio Grande e da precedente no canal da Feitoria e na Lagoa dos Patos). E, na mais completa imobilidade, entramos tranqüilamente no dia

2 de Março de 1946
Pela manhã o nosso João Pereira de Sousa passou para o “Vendaval” e empunhando o leme levou-nos, com a segurança e a calma de quem conhece a zona, até o Cais do Porto onde atracamos. Nesse lugar estava amarrado o navio “Farrapo”, do Lóide, que desatracou especialmente para nos ceder seu lugar. Isso foi uma gentileza ímpar e que nos deixou sensibilizados.

No cais havia uma pequena multidão de veleiros, jornalistas, fotógrafos que nos saudaram. Entretanto desde Itapoã vínhamos sendo seguidos da quase totalidade dos iates de Porto Alegre, representando todos os seus clubes, pois nada menos de 38 barcos aproximaram-se do “Vendaval” e o vieram comboiando até o Porto.

A aproximação de Porto Alegre é realmente alegre; a cidade como por encanto surge radiosa, em uma volta do rio, dominada pelos cento e tantos metros da chaminé da Usina Elétrica, a resfolegar a sua fumaça negra.

Após o desembarque foi-nos oferecido um suculento churrasco à gaúcha pelo Clube dos Jangadeiros, de que é comodoro o nosso Leopoldo Geyer.

Às 20 horas houve uma “ceia de marinheiro” no Clube “Veleiros do Sul”, dirigido por Erwin Bier, comodoro, onde foi ofertada ao “Vendaval” lindíssima placa de prata com as bandeiras da Federação e de todos os clubes de vela de Porto Alegre, em esmalte, comemorativa da primeira visita à capital gaúcha de um iate nacional vindo do norte.
À noite – estávamos no sábado de carnaval – houve baile carnavalesco no Clube dos Jangadeiros, que se prolongou até alta madrugada. E assim, em plena festa, entramos no dia

3 de Março de 1946
Dia em que pensávamos regressar ao Rio Grande. Mas a gente põe e os amigos nos portos dispõem: por causa deles já levávamos um atraso de mais de três dias, 2 em Montevidéu, um na ida e outro na volta, e 1 em Buenos Aires, e tivemos de retardar de mais 24 horas a nossa volta.

Aliás não era possível partir; a rapaziada estava verdadeiramente entusiasmada pelas gaúchas, bonitas, inteligentes e esportivas; não havia remédio: tínhamos de ficar mais um dia às margens do Guaíba. Era já tarde quando nos fomos deitar no próprio Clube dos Jangadeiros. Pela manhã levantamo-nos e fomos examinar os dois novos iates que estão sendo construídos: o “Odin”, de que a nossa revista do mês de Abril dá notícia detalhada e o “Yara”, cujas fotografias relativas ao seu lançamento aparecem no número de Maio último.

A seguir fizemos uma bela excursão de auto no lugar denominado Vila Conceição (Paraíso), de onde se descortina maravilhosa vista de todo estuário do Guaíba, divisando-se ao longe o farol de Itapoã.

Navios, rebocadores, chatas, iates a motor, subiam e desciam o rio fazendo ressaltar pela esteira que deixavam a sinuosidade do canal. À tarde fomos recepcionados pelo Grêmio Esportivo Casa Masson, hoje transformado em Iate Clube Guaíba. CAIRU

Nessa noite não pusemos o olho em nenhum dos membros da tripulação; haviam-se sumido como por encanto. Com saudades do “Vendaval” resolvemos dormir a bordo.

4 de Março de 1946
terça-feira de Carnaval, era preciso partir sem mais tardança; mas só às 15 horas conseguimos desamarrar do cais; para tanto foi necessário convidar três gentilíssimas porto-alegrenses, as senhoritas Lori e Vera Tiedmers e senhorita Beti Koepcke para nos acompanhar até o Rio Grande, pois de outra maneira não víamos jeito de termos tripulação a bordo. Convidamos ainda Hamilcar Garcia, nosso colaborador, veleiro, escritor e jornalista de renome, e Túlio de Rose, o brilhante cronista do “Jornal do Povo”, para nos acompanharem até Florianópolis, convite que só pode ser aceito pelo primeiro. Com boa viração investimos pelo canal do Guaíba, em direção a Itapoã. É preciso que se diga que depois da tal trovoada de 1º de Março, soprou um rebojo (rebojo é o sudoeste) bem forte por umas 24 horas, que abaixou a temperatura e elevou o barômetro; um leste que depois rondou para nordeste começou a soprar, cada vez mais forte; mas ainda assim navegamos otimamente, tendo apenas um pequeno trecho com vento de proa, antes de entrarmos na Lagoa dos Patos. JANGADEIROS

Vínhamos, é claro, com o nosso prático João Pereira dos Santos, o 2º piloto do “Camaquã”, no leme; isto importa dizer que tínhamos direito a dormir tranqüilamente. As meninas entretanto disseram que queriam ficar no convés, Pois desejavam apreciar até o último minuto aquela viagem pela Lagoa, a primeira que faziam em iate; e assim aconteceu na realidade. Às 20 horas montamos Itapoã, onde “Pingüim” nos fez sinais luminosos, tocando sirenes, apitos, etc; reconhecemos o amigo Bromberg, já de volta de Pelotas. Às 21 horas entramos na Lagoa dos Patos com um vento formidável que nos fazia andar cerca de 9 nós. Marcamos o farol da Barba Negra e a seguir o de Cristóvão Pereira; e no dia

5 de Março de 1946
quarta-feira de cinzas estávamos de novo com forte NE. Resolvemos armar a genoa em asa de pombo para aumentar a velocidade, e para chegarmos o mais cedo possível à cidade do Rio Grande, a fim de deixar as moças e seguir viagem imediatamente para Florianópolis, saindo a barra ainda com a luz do dia.

Mas nessa ocasião sucedeu o que há muito era por nós esperado; o destempero do nosso alucinado. Os nossos leitores devem ter estranhado a insistência com que a ele nos referimos no primeiro capítulo dessa narrativa; essa insistência tinha entretanto a sua razão de ser; queríamos chamar a atenção para uma coisa: nós amadores não devemos nem podemos confiar nos marinheiros profissionais por maior confiança que nos mereçam. Tanto na Marinha de Guerra, como na Marinha Mercante, há regulamentos que disciplinam a responsabilidade deles.

Às suas faltas correspondem crimes punidos com penas severas. Na marinha de desporto que é a nossa não há lugar para eles; somos nós mesmos que devemos fazer tudo, e por isso não há também regulamento para eles, que, conseqüentemente não assumem nenhuma obrigação; podem desertar à vontade. No nosso caso particular, tratava-se de um profissional que fora admitido ainda quando possuíamos o nosso primeiro iate de oceano, a iole “Procelária”. É verdade que nunca viajara nela, pois era um barco de pequenas dimensões que ia sempre carregado de amadores nos seus cruzeiros nas proximidades do Rio de Janeiro (Cabo Frio, Ilha Grande, São Sebastião); mas descera conosco no “Vendaval” no dia de seu lançamento ao mar, e nos acompanhara em todas as nossas viagens; quando debruçados sobre a carta íamos fazendo a navegação, aparecia sempre para fazer perguntas sobre o modo de fazer uma marcação, por ângulos dobrados, como se obtinha o rumo verdadeiro, etc., enfim adquirindo os rudimentos da navegação costeira.

Havia 6 anos que estava conosco; em muitos temporais o vimos calmo e sorridente; mas havia uma coisa: o homem não queria mais navegar; o que lhe apetecia era fazer a limpeza do barco, no fundeadouro, na enseada de Botafogo, e depois ir para casa, sentar-se ao lado da família. Quando soube que íamos fazer esta viagem fez tudo para ficar em terra; não nos opusemos, até facilitamos a satisfação de seu desejo; mas o homem ainda tinha um resto de pudor profissional e não teve coragem para ficar; mas de outro lado também não teve coragem para suportar a viagem; logo no primeiro temporal que apanhamos na saída da Guanabara, foi o que vimos, o homem transformou-se em um alucinado. Durante toda a viagem só pensava em desertar; no Uruguai como na Argentina tentara mesmo desembarcar, mas não o conseguiu por lhe faltarem os papéis legalizados.

Aquele nordeste forte, a soprar pela alheta de bombordo, e a nossa observação feita em voz alta de que o barômetro elevado era sinal de que esse vento deveria durar vários dias e que a nossa travessia do Rio Grande a Florianópolis ia ser duríssima; diante desa perspectiva tormentosa, o homem tratou de achar um pretexto qualquer para dar o fora de bordo, o que aliás não era nada difícil; bem sabia como somos exigentes em matéria não só de segurança da manobra mas também do material; fazemos questão de ter a bordo tanto os cabos fixos como os de laborar no mais perfeito estado; pois bem na hora de armar o pau do spinnacker, foi só apanhar um perno imprestável, com um perno arrebentado, e os outros dois coçados, para servir de gaio; a nossa repreensão foi imediata, como imediata foi a sua resposta: vou ficar no Rio Grande! Já contávamos com isso, e mesmo desejávamos que assim acontecesse, pois nada pior, principalmente a bordo de um pequeno barco, do que uma pessoa de má vontade, contrariada e a resmungar por dá-cá-aquela-palha.

Daí por diante o homem meteu-se em seu alojamento e não mais o vimos. Mas, como dizíamos, armado em asa de pombo atingimos pelas 11 horas o perigoso canal da Feitoria, tendo na proa um ceboleiro que navegava a pano e a motor; assim que pegamos o vento mais pelo través conseguimos passa-lo indo fundear no porto velho do Rio Grande às 15h50m, tendo feito portanto as 160 milhas que separam Porto Alegre de Rio Grande em pouco mais de 24 horas. Íamos prosseguir viagem, não sem antes consultarmos o Sr. Gonçalves, o prático do porto; este, entretanto, desaconselhou-nos por completo a partida àquela hora, informando-nos que o banco da barra estava quebrando, com o forte vento do quadrante de E, e que seria conveniente aproveitarmos a madrugada do dia seguinte quando a viração estaria mais fraca; além disso o rebocador da Praticagem, indo apanhar o prático que conduziria um navio da Costeira, poderia rebocar-nos e deixar-nos ao largo, de modo que pudéssemos içar os panos e iniciar a velejada inteiramente safos dos molhes.

Sentada sobre a cabine, a srta. Helga Altmayer.
Aceito o conselho, ficamos com uma noite em terra e assim combinamos então, não só com as senhoritas que nos acompanharam, como também com a senhorita Helga Altmayer, irmos até o Cassino para jantarmos.
Morro do Osso

Em dois automóveis, como sardinhas em lata, chegamos a esse balneário, à beira do Atlântico, a uns 26 quilômetros ao sul do Rio Grande, e jantamos lautamente; após o jantar começaram as danças que se prolongaram até a meia-noite, quando a nosso pedido a orquestra tocou a “Valsa da despedida”, e “com lágrimas nos olhos” toda a turma tornou à realidade. Estávamos já no dia

6 de Março de 1946
Voltam os automóveis, os rapazes vão para bordo e as meninas para o Hotel Paris. Jangadeiros

Pela madrugada estavam elas de novo junto ao cais para se despedirem; nesse momento o rebocador “São Gonçalo”, da praticagem, liquidou com o patético passando prosaicamente o cabo no “Vendaval”, arrancando-o sem cerimônias do cais, enquanto a tripulação toda a postos atendia à faina da manobra; mas, se os adeuses foram curtos, tivemos a bordo grande choradeira nos momentos de calma.
Já em viagem verificamos que se positivara a deserção do alucinado; lançamo-la no Diário de Bordo e mais tarde comunicamo-la ao Capitão dos Portos de Santa Catarina.
Todos aqueles que pretendem empreender um cruzeiro mais ou menos longo devem levar amadores desportistas, preparando-se o capitão convenientemente.

Os amadores que levamos foram incansáveis nas piores horas; nunca tiveram um momento de enfado, trabalharam e trabalharam sempre com firmeza; neles é que deve repousar exclusivamente a confiança do comandante.
Pelo reboque do “São Gonçalo” iniciamos a nossa travessia até Santa Catarina; eram 5h30m quando se desamarrou do cais; à saída da barra havia enormes ondas levantadas pelo vento forte da véspera, que apenas amainara ligeiramente; o banco não estava quebrando, mas a arrebentação devia começar logo que o vento refrescasse um pouco mais; às 7h30m junto à bóia dos práticos recolhemos o cabo do reboque, já com os panos em cima e com o vento de ENE demos um bordo longo para fora, no rumo de 130° para ganharmos o necessário barlavento de modo a permitir que no bordo de terra montássemos o saliente da praia do Bujuru, um pouco ao norte da qual fica o farol de Mostardas; o vento era um nordestão legítimo e o “Vendaval” em bolina cochada ia abrindo caminho no meio de densa carneirada, que lhe espadanava água por toda a proa.

Navegávamos bem mareados com a jiba 3, a bujarrona, o grande e a mezena, fazendo apesar de todo o mar de proa 71/2 nós; às 11h30m tínhamos feito 30 milhas, evidentemente sem terra à vista, pois que apenas 7 milhas depois de largarmos o reboque não a víamos mais. Nessa hora iniciamos o bordo de terra no rumo de 30°; nesse mar de vagas de proa só podíamos sustentar um ângulo de 50° com a linha do vento; poderíamos forçar os 45° mas cada onda que vinha apanhava o barco mais de proa e lhe tirava o seguimento; ora, arribados esses 5° obtínhamos mais 3 nós, o que dava para compensar folgadamente o caminho perdido para barlavento. Nesse bordo navegamos até as 20 horas, quando vento veio mais para ESE, permitindo-nos melhorar o nosso rumo por mais de 2 horas de navegação, conseguindo manter 40°, mas isso foi de curta duração pois de novo o ENE voltou, obrigando-nos aos bordejos de 130° para fora e 30° para terra. No bordo de terra entramos no dia

7 de março de 1946
Noite estrelada, vento rijo de força 6 assoviando nas enxárcias, sem certeza de posição pois que, doentes e com febre alta, preferíramos o descanso ao trabalho de nos expormos ao vento e à água salgada; no dia seguinte começaria a trabalhar cedo e ao meio-dia teria a posição segura do navio. Por isso sempre que estávamos em dúvida sobre a proximidade da costa dávamos um bordo para fora. Poderíamos ter prumado, mas isso nos daria apenas uma posição relativa.

Quem viaja deve munir-se de bastantes remédios para resolver as complicações alimentares; a nossa esplêndida viagem do Rio a Punta Del Este, não obstante os resmungos dos comilões, foi excelente; a comida era simples, com pouco tempero, mas era sadia, e a ela estávamos habituados; mas quando começamos a tocar nos portos apareceram perturbações gástricas a mais não poder, e isso em toda a tripulação; quando saímos do Rio Grande já havia dias que estávamos passando mal; agravando-se ainda mais o nosso estado de saúde, resolvemos não comer nada, absolutamente nada, e tomarmos chá preto, carvão mineral e dessas vacinas que se tomam pela boca; mas víamos que, se por exemplo tivéssemos tido uma desinteria amebiana, não tínhamos a bordo o específico, e isto apesar de ter pedido que o nosso médico no Rio de Janeiro nos fizesse uma relação dos remédios de urgência; escapara-lhe da memória, ou talvez tivesse pensado que a bordo não deveria haver desinteria amebiana; mas possivelmente esqueceu que teria sido possível contraí-la em terra explodindo em alto mar, longe de qualquer auxílio.

Tínhamos a bordo quem pudesse trazer o navio; o Schmidt e o José Luís eram ambos capazes de tomar as latitudes e mesmo as retas de altura, estas últimas em caso emergente, pois que a latitude eles a tomavam regularmente comigo, a fim de se exercitarem e podermos ver o grau de precisão da observação. Esse negócio de moléstia é um caso que todos aqueles que pretendem fazer uma viagem mais ou menos prolongada, devem meditar; enfim, fechando este longo parêntese, pouco antes do meio-dia, navegando no rumo 40°, com o vento E e o barômetro a 770, viramos de bordo soltando o rumo de 140°, a fim de termos o norte por barlavento inteiramente safo de escotas e velas. Poderíamos, assim, tomar a altura do sol, comodamente recostados à cabine, fracos que nos achávamos. Encontramos a latitude de 31°13’4 Sul, marcando o odômetro 179,5 milhas, contadas da bóia dos práticos do Rio Grande; logo a seguir viramos de novo por davante, continuando nos 40°, com o mesmíssimo vento de força 6; navegamos assim a tarde toda, toda a noite, entrando pelo dia

8 de Março de 1946
Só alteramos (já dia claro) o rumo quando o vento veio mais para NE; como contávamos montar o farol de Santa Marta Grande pela tarde, as observações astronômicas vinham-se sucedendo desde a manhã; tomamos ótima meridiana; tínhamos o ponto do navio praticamente em cada hora e, assim, tivemos o prazer de, quando limpou uma cerração nas bandas de NW e fomos perguntados sobre uma pequena elevação que se via exatamente a NW, podermos responder ao nosso interlocutor: marque-a na agulha e plote-a na carta, partindo do ponto estimado do navio; e de fato na direção indicada lá estava na carta nº 90 o “Morrete”; isso depois de dois dias sem vermos terra deu-nos uma satisfação íntima muito grande.

À proporção que íamos avançando no rumo 25°, notamos uma corrente Sul de 1’ por hora, que nos fazia aproximarmos da Laje do Campo Bom, parcel submerso a SW do farol de Santa Marta e exatamente no saco formado pela ponta em que se acha o farol, a 15 milhas a SW deste. Às 17h25m tivemos de dar um bordo para fora a fim de podermos montar o farol; a corrente aumentou e o vento diminuiu, de modo que com todo o pano em cima levamos das 19 horas até as 3 horas do dia

9 de Março de 1946
com o farol a vista, e sempre bordejando, navios passavam entre nós e o farol, para alívio dos que o viam ficar mais alto, quer dizer mais próximo; de fato houve um momento em que a correntada foi bem mais forte do que o caminho que se conseguiu fazer, e andávamos para trás.

Afinal o vento refrescou um pouco e conseguimos fazer uns 6 nós, no rumo norte, e, assim, fomos costeando até que tomamos a nossa posição, às 3h40m, marcando os faróis da ilha das Araras e o da entrada de Imbituba; para evitar uns cascos soçobrados existentes na nossa proa demos um bordo para fora e pouco depois para 30°, pois o vento melhorara consideravelmente. O dia clareou e já estávamos com as montanhas altas da costa catarinense à vista, percebendo-se nitidamente a entrada da barra Sul, na ponta dos Naufragados, em cuja entrada há vários perigos, inclusive a laje da Pinheira, onde se pruma 2,7 m e o banco que arrebenta fortemente, variando a profundidade aí de 2 a 5 metros.

Se o canal norte de Santa Catarina é fácil de ser navegado, o mesmo não se dá com o do sul, que é sinuoso e muito depende das marcações em terra; o canal sul é de apenas 10 pés; o “Vendaval” tem ligeiramente menos de 10 pés; ora isso nos obrigaria a uma navegação com seguro conhecimento local a fim de evitar os aborrecimentos de possíveis encalhes; demais o roteiro diz textualmente que é indispensável o auxílio do prático; tínhamos, de outro lado, dúvidas se encontraríamos alguém no farol de Naufragados; esses os motivos que nos levaram a entrar pela barra norte; e agimos acertadamente, como depois se comprovou; pesados aguaceiros de leste começaram a cair cerrando por completo o tempo, tornando a visibilidade má; não se distinguia coisa alguma a distância maior de 100 metros; se tivéssemos investido pela barra sul, teríamos sido obrigados a fundear perto da Ponta de Naufragados, e se caísse tempo do sul, como estava prenunciando a baixa do barômetro, estaríamos em maus lençóis, pois a entrada do canal sul com tempo de sudoeste é alguma coisa de desagradável, como lhe atesta o nome que lhe deram. A barra norte é bem larga e protegida de modo que se pode investir por ela sem receio, mesmo com tempo cerrado, uma vez que se faça uma navegação estimada com bastante cautela. Já noite, o tempo abriu e pudemos ver exatamente na proa o farol de Anhatomirim; e ao norte o de Arvoredo. Pretendíamos investir pelo canal, dirigindo-nos aos Ratones, mas com a bomba de alimentação do motor falhando não nos parecia conveniente tentarmos a travessia, de modo que resolvemos fundear um pouco a SE de Anhatomirim, tendo um navio da Companhia Siderúrgica nas proximidades. Em pleno sono passamos para o

Domingo, 10 de Março de 1946
Nos primeiros albores suspendemos o ferro e aproamos aos Ratones e depois com tempo cerrado entramos no canal que tem a direção norte-sul. No caminho observamos uma coisa interessante: até o meio do canal navegávamos com vento N, entretanto embarcações vinham em sentido contrário com vento sul, vento que depois tivemos de enfrentar.

Ao chegarmos à extremidade sul avistamos a ponte Hercílio Luz; nesse momento a lancha da Alfândega, tendo a bordo o Dr. Aderbal Ramos da Silva, Mário Nocetti, Moritz e outros distintos yachtsmen catarinenses, aproximou-se de nós. O Dr. Arnoldo Cuneo e muitos outros veleiros que nos tinham ido esperar no canal sul, só chegaram mais tarde.

Os catarinenses nos deram mais uma vez uma acolhida fraternal e calorosa; estivemos de visita ao capitão do porto, o Comandante Plínio Fonseca Cabral e à noite já com a boa e alegre companhia de Vitório Ferraz, o campeão brasileiro de sharpie 12 m2 que viera na ocasião de São Paulo, foi servido lauto jantar no Clube 12 de Agosto, onde o Dr. Aderbal nos fez entrega da placa comemorativa da nossa passagem vindos de volta de Buenos Aires.

11 de Março de 1946
Nessa manhã às 9h30m desatracamos do trapiche da firma Carlos Hoepke e rumamos para Santos; com muito pouco vento e auxiliados de quando em quando pelo motor montamos no dia

12 de Março de 1946
Bom Abrigo, pela manhã; à noite com um princípio de cerração conseguimos ver o farol da Queimada Grande, passando muito perto da Queimada Pequena, cujo vulto lobrigamos com dificuldades.

À proporção que a noite avançava, o tempo foi cerrando cada vez mais; uma calmaria absoluta obrigou-nos a ligar o motor com uma instalação provisória que fizéramos para fazer descer o óleo diesel por gravidade, já que a bomba de alimentação teimava em não puxa-lo. Isso forçava a turma de quarto a de hora em hora retirar o óleo dos tanques com uma vasilha e a coloca-lo no depósito improvisado.

Não conseguimos ver a laje da Conceição apesar de estarmos aproados sobre ela e por isso resolvemos aproximar-nos de terra, a fim de safar-nos daquela laje; o bordo para fora com aquele nevoeiro era perigoso por causa da laje Pedro II; mas com o mar tranqüilo uma aproximação cuidadosa na direção de terra poderia ser feita com segurança. Estávamos já no dia

13 de Março de 1946
quando chegou um ventosinho muito fraco, paramos o motor e então pudemos ouvir a arrebentação do mar na praia, isso nos servia de ponto de referência para continuarmos avançando paralelamente à costa. Nessa noite não enxergamos nem o farolete da laje da Conceição, como dissemos, nem o potente farol da Moela; mas quando amanheceu, o tempo levantou um pouco, e pudemos observar a ponta de Itaipu, bem na nossa proa.

Nesse momento cruzamos com o “Brasilmar” um iate a motor, tendo como porto de registro Santos, o qual se desviou especialmente de sua rota para vir saudar-nos. Aqui ficam nossos agradecimentos ao comandante e tripulação.

Às 8 horas da manhã já estávamos amarrados na ponta da Praia, em Santos, na bóia ali colocada especialmente para o “Vendaval” a pedido do Clube de Regatas Saldanha da Gama, e por nímia gentileza da Companhia Docas de Santos e da praticagem do Porto.
Edgard Perdigão, o denodado presidente daquele veterano clube dos desportos náuticos no Brasil, que em plena Guerra Mundial I levara um navio brasileiro a Nova York, foi de uma gentileza sem limites; enquanto estivemos naquele porto foi-nos passada a presidência do Saldanha da Gama; igualmente o Prefeito, Dr. Edgardo Boaventura, considerou a tripulação do “Vendaval” hóspede de honra da Cidade, reservando-nos lugares no Parque Hotel; a todos visitamos profundamente sensibilizados por tantas provas de carinho, manifestando o nosso agradecimento.

No dia 14 de Março de 1946
tivemos um almoço oferecido pelo Clube de Regatas Saldanha da Gama; a seguir embarcamos para iniciar a última etapa da viagem; demos uma olhada no barômetro, que estava a 761, e, observando o sul, vimos a formação perfeita de uma frente fria de sudoeste, que se aproximava. Não obstante, desamarramos da bóia e iniciamos a viagem; logo depois de montarmos a ilha das Palmas, umas 3 milhas a SE de Santos fomos envolvidos pelo mau tempo, uma chuva torrencial, acompanhada de vento violento de SW e de forte cerração; eram 17h30m; o vento aumentava cada vez mais de intensidade e os vagalhões começavam a se formar; a costa de Santos até o canal de São Sebastião não é boa para se navegar com cerração, pois há muitos perigos; se se vai amarado, há Alcatrazes ou a laje de Santos; se se vem mais aterrado, há o Montão de Trigo, Toque-Toque e uma porção de ilhotas junto da costa; à proa encontra-se o promontório formado pela ilha de São Sebastião em que a temida Ponta do Boi lhe dá perigoso remate.

Ora isso à noite, com mau tempo e cerração, tendo a turma toda completamente encharcada, sobre ser perigoso, seria sumamente desagradável; por essa razão, depois de trocarmos idéias com o veterano Preben Schmidt, com quem já temos viajado um bocado de milhares de milhas, resolvemos arribar a Santos para aguardar a melhoria do tempo. Com bastante cuidado demandamos a entrada do porto, e 2 horas depois de termos desamarrado da bóia a ela nos amarramos de novo. É preciso que se diga que, não obstante a chuva torrencial, o “Moby Dick”, cheio de sócios do C.R.Saldanha da Gama, tendo à frente o seu presidente, nos acompanhou até a altura da ilha das Palmas, dali regressando. Resolvidos a esperar o dia

15 de março de 1946
para vermos se o tempo melhoraria, baixamos à terra. A noite inteira o sudoeste zuniu; o mar na praia do Zé Menino quebrava com violência; a cerração continuava.

Pela manhã a rapaziada nos enviava emissários, inclusive o imediato Mário Ramos, para nos convencer que deveríamos partir; uma coisa dizemos: o comandante nunca deve despir-se das suas prerrogativas; ele só deve fazer o que em sua consciência acha que deva ser feito; a sua cabeça é que deve governar, e não a dos rapazes, que desejam geralmente satisfazer os seus impulsos momentâneos.

Isso não é coisa fácil; porque a mocidade sabe pedir. Inflexíveis no nosso propósito, resolvemos permanecer mais um dia e uma noite em Santos, para só partirmos na madrugada do dia

16 de março de 1946
caso o tempo o permitisse. Felizmente a frente fria passara e pudemos desamarrar da bóia às 6 horas da manhã, iniciando a nossa última travessia. Ao aproximarmos-nos do Montão de Trigo, vimos um navio da Costeira passar por nós; depois soubemos que ele também ficara retido em Santos à espera que o tempo melhorasse; isso constituiu a aprovação cabal do que fizéramos.

Passando por dentro do canal de São Sebastião e depois demandando em rumo direto a Ilha Rasa, transpusemos a barra do Rio de Janeiro às 12h10m, tendo feito a viagem em pouco menos de 30 horas. Logo no Forte da Laje fomos recebidos com foquetes e vivas pelo pessoal do Guanabara, clube em que entramos na infância e onde fizemos a nossa carreira desportiva. Veleiros e remadores, entre os quais vimos velhos companheiros de lides náuticas, acompanhados dos novos e novatos, vieram trazer-nos as suas manifestações de carinho. A seguir deixamos o Preben Schmidt em Niterói, no Rio Yacht Club, do qual é Vice-Comodoro, regressando ao nosso fundeadouro em Botafogo.

Daqui reiteramos os nossos agradecimentos a todos os membros da tripulação, rapazes e homens dedicados, com um espírito desportivo largamente desenvolvido, prontos sempre para as mais difíceis e perigosas tarefas. Aí vai a lista, que é longa, pois houve um revezamento, conseqüência da impossibilidade de muitos deles se ausentarem pelo tempo da viagem redonda. Fizeram a viagem completa de ida e volta: Jorge Pires da Veiga, Roberto Coelho Pompeu, José Luís Pimentel Duarte, Fernando José Pimentel Duarte e a nossa pessoa.

Em Buenos Aires baixaram à terra Diocesano Ferreira Gomes, do “Correio da Manhã”, Georges Byron Watson, Álvaro José dos Santos Júnior, Gastão Fontenelle Pereira de Sousa, que foram substituídos em parte por Preben Schmidt e Mário Borges de Andrade Ramos, que fizeram a viagem de volta. No Rio da Prata navegaram ainda a bordo os nossos Francisco Alvarez e Leopoldo Geyer e as senhoras Álvaro Santos e Pimentel Duarte. Em Porto Alegre baixou Leonardo Álvaro Alberto, o radiotelefonista amador; entrando Hamilcar Garcia, que fez a viagem até Florianópolis, onde embarcou Vitório Ferraz, que nos acompanhou até o Rio. Em Santos baixou Josino Maia. Na Lagoa dos Patos tivemos as distintas senhoritas porto-alegrenses Lori Tiedmers, Vera Tiedmers e Betty Kopcke.
Às autoridaes argentinas, uruguaias e brasileiras, quer administrativas quer desportivas, que contribuíram para que essa viagem atingisse plenamente a sua finalidade – a nossa profunda gratidão.

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O objetivo maior dessa viagem foi plantar a semente da regata Buenos Aires – Rio de Janeiro, incentivando o intercâmbio entre os países da América do Sul, no tocante ao “yachting”. A primeira dessas regatas realizou-se em Janeiro de !947, sendo fita azul e vencedor em tempo corrigido, o iate argentino “Alfard”; cruzou a linha de chegada poucos metros à frente do “Vendaval”.

Transcrito em julho/2004 por Carlos Altmayer Gonçalves.

Artigo sobre o Vendaval na Revista Esso de 1952

 

19 jan 2006
Parabens ao Manotaço e aos webmasters do popa.;
Paulo Altmayer Goncalves

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