Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(14º capítulo)


Quarta-feira, 06 de dezembro (coordenadas das 22 h-GMT de terça-feira: 18.07 N e 053.34 W).
Agora, é meia-noite no horário do sol. Vamos no rumo 287, com ventos fraquíssimos de cinco nós. Foi um dia de muito vento, de pouco vento e de nenhum vento. Como tem sido há varios dias, o que nos obriga a negociar o sério problema do diesel. Não queremos empacar sem combustível próximos à chegada. Podem surgir mais correntes, o trânsito de embarcações pode ter-se incrementado; é bom poupar algum para o final. Toda a região da Corrente Norte-equatorial do Atlântico está com o mesmo fenômeno: calmarias, ou ventos fracos, ou ventos fortes. Parece até aquela história de que, no futebol, se ganha, se perde ou se empata…

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Depois do Bóris e do Nelson, veio o Alexandre Rosa. O Tande é o Stradivarius dos veleiros. Conhece e toca barcos como poucos. É um estudioso. Certamente não seria por nada que, com sua estatura bem longe de grande, fazia e desfazia dos grandalhões do Madrugada.

Madrugada…oh Madrugada, por onde andarás? Com quem andas, Madrugada? Quando cometeram a insensatez de me admitir na turma daquele maravilhoso veleiro, entrei de cabeça. Não sei outro jeito. Aprendi demais. O Madrugada era um estado de espírito; era o útero em que se abrigavam aqueles endoidecidos tripulantes da nave multi-campeã. Parece mentira que, sabendo, à época, pouca coisa de vela, cheguei a ser campeão brasileiro junto com com eles.

Em função do Madrugada, quantas churrascadas fizemos na casa do Serjão. Era uma turma sadia, com uma só idéia: o grande barco campeão. O Madrugada era o elo que nos ligava a todos e que, de alguma forma, até hoje nos liga. Estávamos sempre juntos, unidos. Não é por nada que alguns dos maiores velejadores que conheço eram seus tripulantes, no tempo em que eu também era. O barco só podia mesmo ser dos mais premiados da história da vela de oceano. Que saudade...

Já conhecia o Tande antes de ser iniciado naquele time. Ele é o padrinho de um dos meus amores, o Molecão. Aliás, comprei-o por sua causa. Na verdade, eu estava prestes a adquirir Talismã, um Main 34, no qual, inclusive, corri uma regata Volta da Ilha de Florianópolis, exatamente para ver se gostava. Nisso, o Tande se atravessou. E eu vou dever esta para ele até o fim dos tempos.

Tande é um animal que veleja. Como em um barco ele é diferente do que é em terra! É um gentleman, um cavalheiro, na acepção da palavra. No barco, ele se transforma: berra ordens, esbraveja, blasfema, sapateia no convés, reclama, xinga, diz horrores. E todos ficam do mesmo modo: calados e obedientes. Aquele feroz trimmer sabe o que está fazendo.

Fiz várias navegadas com o Tande. A mais memorável, para mim, foi quando, sob seu comando, levamos o Madrugada para Ilha Bela a fim de correr o Circuito da Ilha, a Regata Santos-Rio e, depois, a parte carioca do Campeontado Brasileiro. Passamos ele, o Tatu, o Joca e eu uma semana nesse percurso. Eu cozinhava para aqueles ogros e dava tanta risada do Joca contando seus causos que, às vezes, me sentia mal. Como agora, aqui, com esses alemãezinhos hilários.

O clímax ocorreu em uma de nossas escalas, Caixa d’Aço, da qual partimos debaixo d’água. Levantamos ferro rumo a Santos, fizemos a volta no morro e ... fomos para o outro lado, em Porto Belo. Para que andar por aí com chuva, não é mesmo? E lá ficamos mais uns dois ou três dias, com um dilúvio daqueles. E o Joca de plantão, o dia inteiro sentado dentro do barco, na frente do mastro, bebendo só mais um pouquinho. E dando risada.

Tande, o padrinho do Molecão, é o cara que sai de quarto, desce, deita direto no chão, no paineiro mesmo, sem travesseiro nem nada, com a roupa do corpo, de papo para o ar, e imediatamente adormece. Parece que está morto. É o próprio Ramsés. Ao cabo de sua folga, simplesmente acorda por si, na mesmíssima posição imóvel em que adormecera, como se nada houvesse; levanta-se e está novinho em folha.

Quando comprei o Molecão, muitos queriam que eu trocasse o nome do barco. Imagina, Molecão. Isso é lá nome de barco? Onde é que já se viu um nome bagaceira desses que até depõe contra o próprio dono? Trouxeram-me uma lista com um número infindável de nomes; não lembro bem…Aí eu escolhi o nome definitivo: Molecão.

Veleiro não é uma coisa qualquer. Onde já se viu pensar que barco é como lancha, um produto da indústria automobilística que corre sobre a água? Lancha tem que ser emplacada e ter pára-choque. E guidon: são automóveis aquáticos, nada mais. Com veleiro é diferente. Há que se respeitar sua personalidade: eles são gente como nós. Quando mal tratados, vingam-se do que se faz com eles. Os velejadores ocasionais, de fim-de-semana, aqueles que jamais olham para seus barcos fora daqueles dias, sabem bem do que estou falando. O barco vinga-se da indiferença. Ele tem sentimento.

O barco é tão importante na vida do velejador que o médico do Laszlo proibiu-o de velejar, sozinho, no Ubá. O Laszo, imediatamente, resolveu o problema: trocou de médico...

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Agora são 7 horas no horário do barco, a mesma de Porto Alegre (09h-GMT). É noite fechada. Faz dias que não vejo o velho Cruzeirão. Aliás, só o vi uma vez até agora, embora o procure todas as noites ali por baixo, próximo do horizonte. St. Martin está a 478 milhas.

Estava há pouco sentado no recanto contemplativo, olhando para o céu, quando vi passar uma luz lá nas alturas. Satélite ou avião transcontinental? Fui ao GPS ver o rumo verdadeiro em que estávamos navegando. Assim, busquei a carta e verifiquei que a declinação magnética na área em que estamos é 15 W, com uma progressão anual de cinco minutos de grau - a carta é de 1992. Como a luz, em cima, marchava numa direção mais ou menos paralela à linha imaginária formada entre a alheta de boreste e algo entre o brandal e a bochecha de bombordo, pimba! Esse negócio está se deslocando no rumo aproximado de 210 graus. Pela distância que está de nós, acho que partiu da Europa para a América do Sul. Talvez seja o Paris-Rio da companhia…

Aí, parei de viajar. Se eu concluir, daqui desta vastidão, o que seja aquilo lá em cima e que saiu de tal lugar e vai para… aí sim: estou em surto outra vez. Mas que é bom brincar de navegar, lá isso é. Ainda mais para uma pessoa ocupadíssima e sem tempo, como eu aqui.

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Antes de sair do segundo turno do dia, sentei-me no recanto contemplativo e, munido de GPS, fui aguardar o maior espetáculo da terra. Estava programado para iniciar às 09h 56min-GMT, pouco antes das 8 horas do horário local. Momentos antes, como que anunciando o espetáculo, o céu começou a alaranjar-se para as bandas do leste. De um determinado ponto do horizonte, saíam raios ao contrário, isto é, de baixo para cima. Riscavam de laranja e cinza as nuvens mais altas, formando um leque. A luminosidade crescia rapidamente como se um grande timer ali houvesse sido acionado.

De olho no horizonte e no cronômetro do GPS, que reproduz o preciso tempo solar, às 09h 56min 09seg surgiu o minúsculo ponto de fogo que em seguida inundaria todo o céu, impedindo, em breve, que eu, ofuscado, o fitasse diretamente. E aos poucos, como a própria inexorabilidade do tempo, lá estava ele, altaneiro e absoluto, a exibir toda a sua onipresença. No altar do grande Mar, o sol era “a hóstia incendiada na manhã transformada”.

Não por nada, as grandes comparações se fazem a partir do sol. Não por nada, o prepotente Luiz XIV dizia-se ser ele o próprio. E até mesmo os pobres de espírito, do alto de sua arrogância, tomam-no como paradigma. Querem que o mundo gire em torno deles. Jamais conseguirão.

Hora de chamar o Graeff para me substituir no “quarto do cachorro”, como se diz na vida náutica. Não há como fazê-lo. O maior espetáculo da terra só acontece uma vez por dia e é muito pouco. Não posso perdê-lo. Para mim, a partir desta travessia, este passou a ser o turno da contemplação.

Aciono o GPS e lá está, em detalhes: 17.53.365 N e 054.46.155 W. Andamos a 6,92 nós. Se mantida essa velocidade, chegaríamos ao destino dentro de, precisamente, 78 horas e 11 minutos. Existe alguém por trás de toda essa imensa e precisa sinfonia.

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O sol vai-se pôr às 21h 07min-GMT, mais alguns minutos referentes a nossa singradura para o oeste. O dia está lindo. Já reservei a poltrona da alheta do boreste, o recanto contemplativo. O final é imperdível.

A tarde, devagarinho, já vai caindo e o vento amainando. Mas bastou eu entrar de manhã para tirar uma soneca, e o vento voltou. Os alemães içaram o balão e eis-nos, até agora, num balonaço para ninguém botar defeito.

Hoje até parece domingo: almoço na mesa, pernil de ovelha e um arroz soltinho como só o Graeff sabe fazer. Ficamos à mesa um pouco mais. O vento está torcendo lentamente para o sudeste. Além de indicar o início da curva da borda ocidental do grande arco, isso nos permite receber o vento mais orçado, acelerando a velocidade.

Depois, o dia virou segunda-feira: para variar, fui lavar a louça. O Tatu bem que começou a fazê-lo, mas eu tirei os pratos da mão dele e o corri porta a fora. Boa média com a chefia não faz mal para ninguém...

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Pois em matéria de casas de espetáculos, sempre podem ocorrer problemas de acomodação, reservas. Eu havia reservado a poltrona nº 1 do recanto contemplativo para assistir ao segundo espetáculo do dia, o pôr-do-sol. Reserva feita, ninguém previu o que acabou acontecendo: da alheta de boreste, não se podia assistir ao grande evento. Nosso rumo era de cara para o sol (RM 258) e, nessas condições, a vela grande encobria totalmente a visão; somente da proa seria possível assistir ao programado.

Velejador não se aperta: peguei o GPS e o caderno de anotações, e lá me fui para a rede de proa. Queria conferir a precisão da mecânica celeste. A previsão, como havia dito, era para as 21h 07min GMT, naquelas coordenadas tomadas às 18 horas. Agora, seria para as 21h 08min. Assentei-me na “poltrona” reservada e cronometrei: conforme a previsão astronômica, o sol encostou sua extremidade inferior, no plano do Mar, às 21h 06min 17seg, precisamente; o derradeiro ponto visível de seu tope desapareceu, exatamente, às 21hs 08min 49segs.

Assim, mesmo considerando-se que havia algumas nuvens no horizonte que de certa forma confundiam a observação - e que esta foi feita a olho nu -, pude confirmar: o astro-rei levou exatos dois minutos e 32 segundos para ser engolido pelo Mar, contados desde o instante em que tocou no horizonte com sua parte inferior, até esconder-se totalmente. Sem palavras…

Estávamos a 392 milhas de St. Martin, nossa velocidade era de 7,7 nós. Nessa singradura, chegaríamos dentro de 76 horas e 37 minutos ao destino, um pouco mais, portanto, que a anterior tomada de tempo. Ah os números… Isso quase corresponde à distância entre Rio Grande e Florianópolis. Parece ser logo ali. Velejamos de balão o dia todo e a idéia é continuar assim. Cachorro ovelheiro…

O tempo está firme, o vento está muito bom e não deverá ocorrer variação sensível na direção do que está soprando. Como diz o Tatu, vai que é um tanque. Eu olho para ele, e fico pensando...

Tanque. É interessante o significado que certas palavras acabam tomando na linguagem comum. Como é curioso que, muitas delas, terminem consagrando-se com um sentido que nada tem a ver com sua origem. A palavra tanque é um dos casos. Em verdade, ela nasceu, no significado de arma de guerra, de um segredo militar, um código.

Os americanos haviam inventado o arame farpado para uso nas fazendas de gado do oeste, os barbed wire. Os alemães passaram a usá-lo como obstáculo intransponível, comparável às próprias fortalezas de terra. E com duas vantagens: era muitíssimo mais barato e rapidamente instalável. Além disso, não há infantaria que possa ultrapassar tal obstáculo. Daí a genial invenção de uma arma de guerra blindada, que corresse sobre lagartas de trator, para superar a moderna arma defensiva.

Para que não fosse descoberta a fabricação do blindado antes de sua utilização no campo de batalha, a contra-informação aliada espalhou a notícia de que a grande demanda de chapas de aço que entravam nas forjarias era para fabricação de tanques de combustível. Com isso, o segredo da futura arma estava preservado. O que estariam fabricando seriam tanques para armazenar combustível. Ninguém desconfiou.

Por isso o nome tanque (tank, no original inglês). Coisas da guerra que, felizmente, não temos. A invenção nasceu de um comum esforço dos franceses e ingleses. E aí criou-se uma outra guerrinha entre eles: os franceses dizem até hoje que o invento foi de Etien; o ingleses sustentam que tudo foi idéia de Churchill. Coisas de guerra...

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