Das Ilhas Baleares, no Mediterrâneo, até Saint Marten, no Caribe
(De Outubro a Dezembro de 2000)
O diário, as histórias e os versos do Comandante Aderbal Torres de Amorim
Direitos autorais doados ao Asilo Padre Cacique


Quatro Mil Milhas Além
Uma travessia, o Homem e o Mar
Aderbal Torres de Amorim
(9º capítulo)

Domingo 26 de novembro (continuação)

Esta madrugada, quando saí do quarto, às duas horas, fui para a cama pensando nos tais remédios e sua evolução na vida atual. Há remédio para tudo; desde a impotência sexual até a gravidez não desejada. Há remédio até mesmo para algo que sempre flagelou o ser humano: a feiúra. Pílulas anticoncepcionais, pílulas para engravidar, pílulas para abrir o apetite, pílulas para tirar o apetite, para engordar, para emagrecer, para evitar o infarto. Há remédios para tratar a AIDS e até com relação ao câncer, a Medicina está fazendo milagres. E como também já inventaram remédio contra a hipocondria, eu acho que deveriam arrumar um remédio para curar os carecas. Como diria o Adão Vargas, quem me dera…

O que realmente me encafifa as idéias é que grande parte dessa evolução deve-se a um dos piores sinais denunciadores da involução humana: a guerra. Ela mesma. Aliás, muito do progresso da ciência, da técnica e da economia deve-se à guerra. Pobre ser humano…E isso também no Brasil: à sangrenta e nojenta Guerra do Paraguai (haverá alguma que não seja?), deve-se, aqui, o rápido desenvolvimento do telégrafo e da via férrea.

O primeiro computador eletrônico da história foi construído no serviço de correio da Inglaterra com o propósito de decifrar os códigos secretos alemães usados na II Grande Guerra. Para manter sua fantástica máquina de guerra, os Estados Unidos, volta e meia, inventam uma guerrinha qualquer. Precisam exercitar os músculos da indústria bélica e de seus soldados… E, principalmente, de sua economia, eis que as fábricas de armamentos não podem ficar ociosas. Dessas fábricas saem muitos inventos que acabam por melhorar o nível de vida de muitos, o que leva alguns a sustentar que a guerra traz…progresso!

E ainda se fala em Moral! E até isso é explicado.

Com o advento do serviço militar obrigatório, iniciou-se uma profunda mudança no tratamento dispensado aos soldados em todo o mundo. Antes, os exércitos eram compostos de voluntários, muitos deles mercenários, de nacionalidade estrangeira. Bem por isso, não havia grandes peocupações com a saúde nos quartéis. Mas as guerras, além de muito caras - todos os militares tinham de ser bem pagos, mesmo em tempo de paz -, tornavam-se um risco terrível, pois nada assegurava que haveria suficientes “peças de reposição” para cada soldado morto. Isso explica, ao menos em grande parte, a freqüência com que se celebravam acordos pondo fim às hostilidades, já no seu início. As guerras eram caras. E, também, mais perigosas pelo risco de afetarem o contigente de soldados disponíveis.

A Rússia, por exemplo, sempre teve um dos maiores exércitos do mundo. Hoje, a despeito da brutal crise econômica que vive, ainda sustenta uma legião de três milhões de soldados. Nos seus primórdios, isso não era, obviamente, obtido com voluntariado. Em seu reinado, Pedro, o Grande, determinou que, de cada grupo de vinte famílias, um jovem deveria ser anualmente recrutado para o exército. E mesmo assim, ao menos em Leningrado - antes, e agora outra vez, São Petersburgo -, não vi quem tivesse mais estátuas nos parques e ruas do que Pedro; nem Lênin, nem o Czar Nicolau.

A Revolução Francesa foi ainda mais longe: determinou que todos os franceses, homens e mulheres de qualquer idade, estivessem permanentemente convocados para o serviço militar. Os jovens solteiros lutariam nos campos de batalha; os casados trabalhariam nas fábricas de armamento; as mulheres costurariam os uniformes dos soldados ou trabalhariam em hospitais; as crianças organizariam as roupas de cama dos soldados, bem como suas roupas brancas. Os velhos iriam para as praças públicas vender o peixe de que a guerra era justa, era necessária, era uma beleza. Era o começo da propaganda de guerra.

Seria isso uma volta à barbárie? Ou, quem sabe, um movimento mais democrático, já que todos os franceses estariam submetidos ao serviço da pátria? Questão ideológica…

Com o serviço militar obrigatório, baratearam-se os custos dos exércitos. De outro lado, como os filhos de todas as famílias estavam sujeitos ao serviço militar, todos tinham o maior interesse em que os soldados em geral recebessem o melhor tratamento possível. E isso incluía, por óbvio, os cuidados com a saúde: melhores hospitais, melhores médicos, melhores enfermeiros, melhores remédios, muito embora o profundo desinteresse de Napoleão pela saúde de seus soldados. Para ele, graças à convocação obrigatória para o exército, os milhões de perdas poderiam ser facilmente repostos por outros convocados. Fico a imaginar o que devem ter pensado desse descalabro homens como Voltaire e Rousseau, companheiros de ideologia de Bonaparte na conspiração revolucionária, quando se encontravam com os demais conspiradores no ainda hoje famoso restaurante Le Procope, em Paris...

A partir dessa fase da história da guerra surgem os primeiros corpos de saúde. Os médicos são oficiais; os enfermeiros, sargentos. De um modo geral, vai-se qualificando a assistência médica nos exércitos; a pesquisa farmacêutica ganha o maior impulso; morre-se menos de ferimentos recebidos nos campos de batalha.

Desse modo, até mesmo a farmacologia deve muito à guerra. Definitivamente, o homem é um ser complexo…

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Chegou o domingo: sol de domingo; comida de domingo; papo de domingo; ventos de domingo; navegada de domingo. Domingão do Molecão. Para que mais? Saudosos, porém felizes, aqui vamos nós. Hoje, vagarosamente.

O dia não poderia estar melhor para se navegar. Sem pressa. Hoje é um daqueles domingos pelos quais os velejadores esperam a semana inteira para navegar, ancorar por aí, comer a massinha domingueira de sempre, tirar uma torinha, voltar para casa. Tudo bem devagar, quase parando. Na maciota, como diria minha santa mãe.

Pronto, acabou a barbada: até os lancheiros, com seus possantes e barulhentos motores, procuram fazer a mesma coisa. Sair por aí. Só que eles têm muita pressa. O programa deles acaba logo. Segundo dados estatísticos do Departamento de Assuntos Não Sei Bem Quais do Governo norte-americano - e de quem mais seria? -, os passeios dominicais dos lancheiros duram, em média bem poderada, 39 minutos e 27 segundos.

No que me toca, prefiro sempre sair e não voltar no mesmo dia. A Magra e eu adoramos dormir no barco, bem longe da cidade. Às vezes, até vamos dormir no Molecão, nosso segundo lar, durante a semana. É um hábito que se entranhou em nós a tal ponto que não me lembro de ter, nos últimos anos, saído de barco e voltado no mesmo dia. Parece jantar sem sobremesa. Ou sem vinho, o que ainda é pior.

Baloneando na boa, estamos a seis nós de velocidade, mantendo o rumo em 257 graus, com um vento em torno de 10/12 nós. E o melhor de tudo: aqui jamais tem lancheiro. Há pouco, comemos uma saborosa carbonara feita pelo Tatu, embora ele deteste cozinhar. Mas, se não aceitasse, nós o expulsaríamos do barco. Aceitou. Estava dos deuses. Se pudesse, comeria massa todos os dias. Só faltou o indispensável Cabernet. Afinal, hoje é domingo e vamos ficar até quando sem ele?

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Essa coisa de que os trade-winds são estáveis, jamais variam e estão sempre dentro de determinados limites de velocidade e direção não é bem assim. Por aqui, há uma fortíssima tendência dos ventos soprarem de leste, na velocidade entre 15 e 25 nós. Mas isso não é sempre. Hoje, desde a manhã, por exemplo, sopra um vento de sudeste. Nossa proa é bem próxima do oeste; estamos amurados a bombordo, com o vento entrando pela alheta a fim de encher o balão. E isso é assim mesmo: temos que negociar com o vento. Mesmo aos domingos, nosso balcão de negociações jamais fecha. Nesse rumo, estamos correndo sobre o paralelo 20 graus norte.

Este paralelo significa, para nós, estarmos navegando em uma latitude bem adequada à corrente e ao vento predominante. Entretanto, afasta-nos do equador. Quer dizer: quem estivesse andando no paralelo 18 norte, com a proa em St. Martin, seguindo portanto nosso mesmo rumo, estaria em uma rota paralela à nossa situada cerca de 120 milhas mais para o sul. Nesse caso, estaria indo mais direto do que nós para o porto de chegada. Faltando ainda cerca de 2.000 milhas, isso não é nada. A diferença pode ser tirada, mais hoje, mais amanhã. Sem pressa. Conforme os humores do vento, pode ocorrer que tenhamos de nos afastar ainda mais da rota ideal. É a tal “negociação” de que venho falando. Vou terminar a travessia e montar uma loja de qualquer coisa: agora virei homem de negócios...

Dizem os manuais que esta é uma boa época de se ir para o Caribe, porque se aproveita mais tempo do inverno de lá. Além disso, já se está fora, ou quase fora, da temporada dos furacões e os ventos, se ainda não são os melhores, são bem razoáveis. É bem verdade que, às vezes, há as intoleráveis calmarias. Mas inexiste inconveniente qualquer - muito pelo contrário - de se fazer a travessia em janeiro ou fevereiro quando, aí sim, os ventos são cada vez mais fortes e sensivelmente mais constantes. E dizer que Colombo saiu das Canárias em 31 de agosto, em plena temporada de furacões!

Nesse caso, quem sai da Europa em janeiro ou fevereiro para o Caribe terá uma temporada curta: em maio ou, no mais tardar, junho, já se encontrará deixando a região porque estará por iniciar-se nova temporada de furacões. Quem, nessa época, já não estiver na Corrente Norte-atlântica pode se dar muito mal.

De qualquer forma, estamos na zona dos ventos predominantes, e também de formação dos furacões, situada, aproximadamente, no paralelelo 20 norte e meridiano 030 oeste. A zona de navegação mais favorável encontra-se entre os paralelos 10 e 25 norte. Além disso, temos sido acompanhados por nuvens brancas, pequenas e algodoadas, características dos alísios. Indicam tempo bom.

A regra geral é deixar as Canárias tomando o rumo sul-sudoeste, seguindo até cerca de duzentas milhas do Arquipélago de Cabo Verde. Dali, após passar o través deste em mais outras duzentas milhas, toma-se o rumo oeste. Já se estará navegando a cerca de outras tantas duzentas milhas ao sul do limite norte dos trades. É o que estamos fazendo. Contra calmaria, porém, ainda não inventaram remédio. E elas também são previstas nos manuais.

Nesse longo caminho, constantes são os “algodoais” que os guias de navegação, muito apropriadamente, denominam puffs of steam from a old-fashioned railway engine (os chumaços de fumaça e vapor que saíam das velhas locomotivas ferroviárias). A comparação não pode ser mais precisa…

Segunda-feira, 27 de novembro (coordenadas das 22 h GMT de domingo: 19.59 N e 028.13 W).

Boca santa, para que fui falar? Estamos numa calmaria danada desde às cinco horas da tarde de ontem, domingo. Era mesmo muita barbada aquele passeio dominical. Ventinho maneiro de sudeste nesta região? Era muita sopa. E pensar que não roncava motor nesta nave desde a tarde de quinta-feira. De qualquer forma, ainda bem que essa mudança não significou furacões. Benditas sejam as calmarias…

Sempre me pareceu que contra elas não há remédio. Estava enganado. Há remédio também contra as danadas: motor! Ou melhor, motores, porque nós temos dois, embora não possamos atravessar o Atlântico só a motor. Por isso, seguimos com um, apenas, porque temos de economizar combustível. Não sabemos o que virá por aí e queremos voltar para casa antes do fim do ano. Eu não tenho nada a ver com o fato de seu Colombo não ter tido um bom motor. Nós temos.

Com velocidade de apenas cinco nós, estamos numa calmaria geral. As informações ontem à noite obtidas na roda do SSB indicam que, desde as Canárias até próximo do Caribe, tudo está parado. Pela manhã, certamente, o Mar Oceano dormirá profundamente, exibindo aquele espelho imenso onde se refletem o céu e as nuvens. É meio exasperante. A pulsação do alto-Mar faz com que, por vezes, uma certa náusea se instale no marinheiro. Não aquela do Sartre, mas náusea física mesmo. Aquele negócio de parecer que tem um sapo aqui dentro. Uma coisa esquisita e chata como esta minha que, às vezes, tenho sentido enquanto escrevo estas mal-traçadas. Daí aqueles terríveis motins de que nos fala a história, com tripulações rebeladas jogando comandantes ao Mar. Motins famosos como o do Bounty, de triste memória.

A motor, não chegaríamos nem perto da metade do destino. Não há combustível suficiente para uma travessia dessas. Espero, dentro de no máximo dois dias, sentir cheiro de diesel. É o sinal de que o vento retornou pela popa, que podemos desligar a engenhoca e voltar a fazer o que vale a pena: velejar. Já são quase 02h 30min e eu vou dormir. E sonhar que o vento voltou. E que não era furacão…

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Levantei antes das seis horas. Não dormi legal. Sei lá, não gosto de veleiro andando a motor. Parece uma traição. Eles não existem para isso. Eles não andam bem com essas geringonças roncando aí, nas costas da gente. Há coisas que não combinam entre si. Há pessoas que não combinam com outras pessoas; há cores que não combinam, o roxo com o amarelo, por exemplo; alimentos que não combinam, como a laranja e o leite; situações que não combinam, feito garçon de bigode. O ilustre passageiro já viu garçon de bigode? Eu também nunca vi. E bailarina gorda? Pois é: há coisas que não combinam. E algumas delas me tiram o sono. Como veleiro a motor, por exemplo...

No tempo do Noctiluca, era uma bronca só: eu nunca podia ligar o motor e voltar para o Clube, quando ficava encalmado. As baterias sempre estavam “na unha”. Eu teimava em sair e voltar respeitando a natureza do barco: velejando.

Com o Molecão, não começou muito diferente. Quando eu estava em Santa Catarina, velejando em solitário, conseguia chegar na poita da sub-sede de Jurerê do Veleiros da Ilha sem motor. Só na vela. Trimava direitinho os panos e ia na proa do barco, com o croque na mão, pescar o cabo da poita do Paulo Gil que ele me emprestara. O Paulo Gil, baita amigão, também já se foi; como tem ido gente boa…

Um dia, o Haroldo, da Marli - eles agora moram embarcados, perambulando entre Parati e Angra -, viu aquilo e, certinho como ele é, fez um comício: me deu uma tremenda e pública bronca. Lá da praia. Eu não podia fazer aquilo; estava pondo em risco os demais barcos que estavam apoitados na baía; que isso é proibido, que é uma irresponsabilidade, tu não sabes o que estás fazendo…

Eu nem olhei para a cara do Haroldo. Deixa falar sozinho, pensei. Isso é coisa de alemão xarope; esse cara não sabe fazer nada e não quer que os outros façam; deve ser um incompetente, um invejoso. E continuei a proceder do mesmo modo: pescar o cabo da poita, sem ligar o motor; só no pano.

O Haroldo é mais maluco do que se pensa: um belo dia, ele foi me esperar no dingue e, quando cheguei, ele fez outro comício. Só que, desta vez, me aplaudia e vivava a grande “perícia” daquele intrépido velejador... Tornamo-nos grandes amigos e ele me ensinou a velejar de marcha-a-ré. E me ensinou também um monte de outros macetes da vela. Eu, realmente, não sabia com quem estava me metendo: o Haroldo é um dos maiores velejadores que conheço. E de navegação astronômica, quando ele nasceu, já veio sabendo tudo.

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Orion está pela proa, ligeiramente por bombordo. Sirius está mais para o lado, um pouco caída. Ainda não vi a estrela Polar, aquela que não se mexe no céu e que só é vista aqui no hemisfério norte. Para falar a verdade, eu nunca a encontrei no céu. Vi-a, uma vez apenas, no Planetário de Montreal, numa fantástica exibição acerca da mecânica celeste em torno dela.

É incrível que o firmamento todo gire em torno da Polar, imóvel e sobranceira, como se o mundo todo dela dependesse. Uma noite dessas vou pedir ao Haroldo que me mostre no céu a tal estrela polar. Tem que ser aqui, no hemisfério norte. Ela só aparece aqui. E se ele não a localizar, o Plínio Fasolo me diz onde ela está. Os dois sabem demais.

Era pela Polar que os fantásticos navegadores vikings se guiavam em suas longas velejadas até a América, antes, muito antes de Colombo e outro qualquer dos navegantes conhecidos. Quando fui visitar o Kontik, em Estocolmo (ou será que foi em Oslo?), vi uma inscrição no museu noticiando as incursões dos vikings pelo mares do norte, perto de Bering, ao redor do ano 1.000. No museu, há restos perfeitamente conservados das milenares embarcações daqueles heróis que, para fugirem dos invasores de suas terras, punham-se ao Mar sem saber bem para onde iriam. Ou será que sabiam? O importante é que jamais se entregaram para quem quer que fosse. Jamais um viking foi feito escravo.

Os vikings foram o povo mais indomável, mais rebelde à tirania, mais amante da liberdade que o mundo conheceu. Eram independentes e extremamente hábeis nas coisas do Mar. Quero um dia retornar aos países nórdicos, os lugares onde mais se veleja no mundo, proporcionalmente à população. No ano em que lá estive, Oslo tinha 400.000 habitantes e 120.000 barcos a vela. Lá se vê e se sente porque o povo, educadíssimo e simples como poucos, tem aquela superior qualidade de vida combinada com a humilde forma de encará-la. A Escandinávia é fantástica. Os vikings eram fantásticos. Jamais foram dominados. Eram velejadores...

Como a Polar encontra-se num emaranhado de outras estrelas, a única forma de identificá-la é pegar um mapa do céu e localizá-la. Mas sempre que tenho o tal mapa, o céu está encoberto, ou me esqueço de procurá-la; e quando quero procurá-la, não tenho o mapa. É o caso presente. Chamem o Haroldo…

Pois até nisso os habitantes do hemisfério norte têm mais sorte do que nós: alguém botou para eles no céu uma estrelinha que não se move. Assim, é fácil navegar pelas estrelas...

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Agora, são 07h 15 min. O barco parece uma poita. Coitado, está passando fome; está motoreando. Feito uma lancha.

Lentamente, pois veleiro a motor é lento, continuamos a marcha para o oeste. Literalmente, de arrasto. Uma tremenda e pesada rotina. Até o pensamento vai-se arrastando e vou pensando que nossa posição é 19.45 N e 029.06 W; que a velocidade é de pachorrentos cinco nós; que estamos a 1928 milhas de St.Martin; que o tempo é bom; que vai amanhecer às 08h 11min; que o nosso rumo-agulha é 276 graus; que o magnético é 263; que estamos a 903 milhas de Las Palmas, Gran Canaria; a 1591 milhas de Gibraltar, sempre em linha reta; que, pelo equador, a circunferência do planeta tem 40.000 quilômetros, que nos polos, ele é achatado; que essa medida, dividida pelos 360 graus da circunferência, resulta em 111 quilômetros; que esse é, então, o comprimento do grau; que, por sua vez, o grau é dividido em 60 minutos; que, para encontrar o comprimento do minuto, divide-se 111 por 60; que o resultado será bem próximo de 1.852 metros; que esse número corresponde a uma milha marítima; que o nó é uma medida de velocidade equivalente a uma milha por hora; que o sol é redondo (daqui a pouco sou capaz de pensar que o ângulo reto não ferve porque tem menos de 100 graus...).

Tudo se arrasta, quase não se avança. O index, lá no tope do mastro, aponta para o noroeste. Mas aquele é o vento aparente cujo rumo resulta do encontro da direção do vento com o deslocamento do barco. E como há uma leve brisa por aqui, presumo que o vento seja até mesmo de nordeste, o que não seria de todo mau. Como saber? Só aguardando o dia e ver, na água, para que direção vai o arrepio, as minúsculas ondulações que o vento fraco produz na superfície.

Veja-se que já estamos mais próximos do paralelo que leva a St. Martin, em torno de 18 N. Como, neste momento, encontramo-nos na latitude 19.45 N, estamos a somente 1,45 graus do paralelo 18. Isso dá, precisamente, 105 milhas de distância entre essas duas linhas paralelas imaginárias: 60 milhas equivalentes, como visto, a um grau, mais 45 milhas referentes a 0,45 graus - 45 minutos de grau.

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Mas como é difícil entender a previsão de tempo. São 10h da manhã, há bem pouco o vento vinha despertando e, agora, acabamos de pôr o balão para cima. Estamos voando baixo. O Haaviti está mais retosado do que moça solteira em festa de igreja; como diz o Graeff, está mais faceiro do que ganso novo em taipa de açude. Tudo se normalizou. É incrível como o tempo muda. Que sujeito de humor mais variado esse. A previsão tomada no weather-fax era esse vento entrar depois de amanhã. Mas vamos que vamos.

Vale a pena agora registrar tudo de novo: estamos com vento nordeste de 20 nós, velocidade ao redor de dez nós, balão em cima, o rumo 275 graus, St. Martin está bem na proa, a 1.909 milhas. A vida é boa, a onça é mansa e é muita sobremesa para uma pobre marquesa. Isso é que é viver. No entanto, apenas um senão: por que esse vento esperto não sopra de leste? Por que sopra de nordeste? Por que nordeste, mais para cima do que deveria?

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A festa foi muito boa. O astral da galera voltou com força. Já estávamos falando em almoço. Às onze e meia, pontualmente como veio, lá se foi o vento embora. Motor outra vez, agora o de bombordo porque eles também têm turno de trabalho. Aqui para nós: até não me importei muito. Esse ventaço de nordeste…Por que nordeste? Por que durou só uma hora e meia? Espero ardorosamente jamais ficar sabendo…

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Como a gente aprende na vida. Como a gente aprende na vela. O poeta-cantor tem razão: a vida é como o Mar, é um indo-e-vindo infinito. Não vê que, antes das 13 horas, o vento voltou na boa e retomamos a mesma velejada de antes? Estamos a toda máquina, de balão em cima e tudo que tem direito. O tempo não poderia estar melhor: o mata-borrão do céu não poderia ser mais azul, a nossa velha locomotiva resfolegando, lá em cima, os puffs brancos de fumaça e, embaixo, um marzão de almirante. Perdão: Mar de almirante; o Mar não tem diminutivo, nem aumentativo. E se escreve com maiúscula sempre.

A calmaria era total até à meia-manhã. Como acreditar nas previsões? Por isso, lembro o cancioneiro e constato a verdade verdadeira: tudo que se vê não é igual ao que a gente viu há um segundo. É como a hora do pôr-do-sol: cada dia tem uma cara diferente e ocorre sempre mais tarde do que no dia anterior. Cada milha para a frente representa alguns segundos a mais na duração do nosso dia. Como o Mar, a vida também vem em ondas, num indo-e-vindo infinito.

Bem no meio deste imenso Oceano, faz uma semana que só vejo céu e Mar. Aqui, a gente se dá conta de que não se é nada. Mas se é livre. Liberdade, o maior bem a alcançar. Aqui ela existe, até porque não se sabe o que acontece no mundo de lá: não se tem jornal, TV, rádio, telefone, contas a pagar. Sequer amigo chato. Nem internet para abrir o e-mail.

O Mar tem essa coisa doida de sedução. Não era a famosa sereia, posta na saída do porto de Copenhagen, que enfeitiçava os navegantes. Não. A lenda está equivocada. Era o Mar. É o Mar. Para entender de amor é preciso amar. Quem está no Mar, ama. Ou porque já amava, ou porque, estando no Mar, verá que é impossível não amar. É por isso que o homem do Mar entende de amor. E é incrível como qualquer verso romântico dos poetas românticos pode ser dirigido ao Mar. Para ele, o amor converge.

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Decididamente, os alemães uniram-se contra mim: faz quase cinqüenta dias que estou embarcado e eles ainda não me haviam dito que há, no barco, grande quantidade de feijão! Ora bolas, isso é coisa que se faça? Não basta o fato de eu olhar todos os dias para essas garrafas de Cabernet sem poder abri-las? Não basta o fato de que não mandaram construir, aqui, uma pista para a minha corridinha diária? Será que eles não sabiam que eu como feijão lá em casa, no mínimo, três vezes por semana? E que, junto com o feijãozinho, eu como arroz, peixe e salada, quase todos os dias? Isso é coisa que essa alemoada faça comigo?
Em compensação, o cardápio foi demais, com cinco pratos para três famintos marinheiros: salada, arroz, purê de batata (o Graeff é alemão batata), feijão e peixe, embora os entendidos digam que peixe não combina com feijão. Ora, os entendidos… Em qualquer restaurante, não tenho o menor pejo de pedir peixe com Cabernet Sauvignon, que alguns chamam de vinho tinto (como se houvesse outra espécie de vinho). Dizem que não é de bom tom …

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São 20h e aqui vamos nós, com uma velejada dos deuses, a proa bem na lua que se está pondo lá na frente e o balão em cima até essa hora da noite. O vento é maneiro, de 15 a 20 nós, nossa velocidade é bem satisfatória, entre 8 e 9 nós e uma singradura de 145 milhas. Se não fosse aquela calmaria, teríamos andado muito mais. Mas está folgado; tá como se quer. Vale a pena velejar devagar…e urgentemente.

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