Não entre em fria!
Bebida alcoólica não esquenta
Danilo Chagas Ribeiro

30 Set 2005
No artigo "Uma vida de superação", publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, de 28 de setembro de 2005, o escritor Sergio Faraco conta a história de um sobrevivente do Titanic. Fiquei desgostoso com o final do artigo pela má informação passada.

Titanic
Não tendo conseguido lugar nos botes salva-vidas, o tenista Richard Norris II Williams e seu pai Charles ficaram na água gelada, diz Faraco. Quando a proa mergulhou, uma chaminé atingiu Charles, que pouco antes havia entregue ao rapaz um frasco com bebida alcoólica. Na manhã do outro dia, o vapor Carpathia salvou os sobreviventes, incluindo Richard. O médico de bordo resolveu amputar-lhe as pernas enregeladas e aparentemente mortas, mas ele se opôs. Exercitando-se intensamente nos dias seguintes, Richard recomeçou a andar e voltou a jogar tênis em alguns meses, tendo recebido medalha de ouro na
Olimpíada de Paris em 1924, 12 anos após o naufrágio.
É o resumo da história publicada pelo escritor.

O erro
Faraco termina o artigo dizendo: "Dick Williams morreu em 2 de junho de 1968, aos 77 anos. Um de seus netos conserva o frasco de bebida que ele recebeu do pai e o aqueceu na álgida noite sem lua do Atlântico Norte". Isso passa a idéia de que a bebida alcoólica salvou ou, pelo menos auxiliou, o náufrago. Não é verdade.

Raciocínio restrito
É falsa a afirmação de que a bebida alcoólica pode ajudar um náufrago. E para apresentar uma informação precisa, procurei um Comandante que domina o assunto. Segundo o Dr. Julio Ferreira, Cirurgião Vascular, 53 anos, navegador do Clube dos Jangadeiros, atuando dentre outras atividades, no Hospital Pronto Socorro de Porto Alegre por 29 anos (foto), a bebida alcoólica é um vasodilatador, o que faz com que uma maior quantidade de sangue seja direcionada até a periferia do corpo, aquecendo-a. Este raciocínio, no entanto, somente pode ser considerado depois que a pessoa estiver safa, e em ambiente com temperatura normal, porque haverá perda de calor no interior do corpo. O calor sai do interior para a periferia.

Radiador
"Em um ambiente frio o corpo defende-se da hipotermia com vasoconstrição, mandando menos sangue (calor) para a periferia.
O calor é reservado aos órgãos mais nobres, como o coração,
pulmões, e cérebro", diz o Dr. Ferreira.


H.E.L.P = Heat Escape Lessening Position, ou posição de menor perda de calor (BoatSafe)

A ingestão de álcool provoca vasodilatação com o conseqüente aquecimento da periferia do corpo, o que acelera a perda de calor e conseqüentemente a hipotermia. Um náufrago que tenha caído n'água após a ingestão de bebida alcoólica tem menos chance de sobrevivência. Andarilhos que morrem de frio nas ruas, geralmente estão alcoolizados.

"A pele comporta-se como um radiador. Ela troca calor. Se houver um gradiente de temperatura entre as extremidades e o meio externo, a tendência é as temperaturas se equilibrarem pela troca de calor", complementa o Comandante cirurgião.
Diz ainda que "o corpo humano é muito sensível para a perda de temperatura e quando esta chega perto de 30 graus centígrados as chances de sobrevida são remotas. Temperaturas centrais (internas) de 28 graus são incompatíveis com a vida. É por isso que, mesmo no verão, se um náufrago permanecer muitas horas na água, morrerá por hipotermia já que dificilmente a água estará a uma temperatura superior a 30 graus".

Quando a bebida alcoólica pode "aquecer"?
Uma vez eliminada a causa do frio, e estando-se já devidamente abrigado, tomar bebida alcoólica poderá ser confortante já que retirará a sensação de frio, mas não aumentará sequer 1 grau da temperatura central (interna) do corpo. Nesta condição, a vasodilatação poderá ser bem-vinda pois logo todo o corpo estará com a temperatura normalizada. A bebida alcoólica então poderá acelerar o aquecimento periférico, sem prejuízo da temperatura do corpo.
Isto não é uma recomendação para ingestão de bebida alcoólica contra o frio, ou em qualquer outra circunstância.

Navegadores que somos, estamos sujeitos ao naufrágio. A maioria nunca experimentou tal situação, e certamente não a experimentará, mas seguidamente estamos expostos ao frio a bordo, por várias horas continuamente. É melhor não se embebedar com crenças e com más informações sobre o uso do álcool no frio.

 

Artigo associado: Hipotermia a bordo

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