Cruzeiro de férias
Quando tudo sai errado
Nelson Ferreira Fontoura

31 Dez 2007
Anos atrás eu tive uma namorada muito mística. Na verdade, se achava quase uma bruxa, embora fosse bem bonitinha. Eu, ao contrário, sempre fui muito cético com relação às coisas do além. Mas era início de relação e resolvi encurtar as distâncias. Comecei a ler os mesmo livros: ela lia Paulo Coelho. Em algum dos livros, não lembro mais em qual, o Paulo Coelho insistia em uma idéia: quando realmente desejamos alguma coisa, o Universo conspira para que ela se realize.

Pois bem, faz meses que eu estava acalentando a idéia de fazer um cruzeiro mais longo no Tiza, meu veleiro 27 pés. Agora com mastreação completa, queria conhecer mais de perto a Laguna dos Patos: o Porto do Barquinho, Tapes e Bojurú. Já havia cruzado a laguna uma vez, mas em um cruzeiro muito rápido, fazendo um translado para Florianópolis. Também já havia estado na Lagoa do Casamento, braço nordeste da Laguna dos Patos, mas a trabalho, coletando amostras de sedimento. Na verdade, quase todas as vezes que dormi no Tiza foi a trabalho, coletando amostras para o meu laboratório na PUCRS.

Agora seria diferente: sairia somente para descansar, no meu ritmo e sem agenda definida. Mas infelizmente parece que o Paulo Coelho errou desta vez... Errou feio: o Universo estava conspirando contra mim.

Havia acertado com um colega da PUCRS, que gosta muito de fotografia, que sairíamos em dezembro, pois ambos iríamos tirar férias no mesmo período. Para ele seria uma oportunidade única para fotografar ambientes quase intocados. Para mim valeria a companhia, além de ter alguém para dividir as fainas de bordo, já que o Tiza, ainda meio espartano, sem piloto automático ou enrolador de genoa, dá um certo trabalho no manejo.

A conspiração; 1o ato: a maldita agenda. Sairíamos no domingo, 16 de dezembro para voltarmos nas vésperas do Natal. Pelo menos era isto o que estava na minha cabeça. Poucos dias antes, o colega me disse que teria que estar em Porto Alegre na quinta, pois participaria de uma banca de mestrado em plenas férias. Sem problema, o deixaria em Tapes e terminaria o cruzeiro sozinho.

A conspiração; 2o ato: as amarras do casamento. A minha esposa precisava fazer uma pequena cirurgia eletiva, coisa simples. Marcou para a quinta-feira... Disse-me que eu poderia ir sossegado, que não precisaria de mim. Tudo bem, continuava liberado, mas...

A conspiração; 3o ato: a Lei de Murphy. A previsão do tempo para domingo estava boa, com exceção da direção do vento, que vindo de Sul viria bem na cara. Talvez houvesse chuva bem leve, poucos milímetros. Domingo pela manhã caía um verdadeiro caldo. De qualquer forma preparamos tudo, assim que melhorasse o tempo sairíamos. Estávamos no clube aguardando a melhora da chuva quando tocou o celular: havia falecido uma tia do meu colega.

A conspiração; 4o ato: o vento Sul. Saímos na segunda-feira após o almoço. Como o vento continuava de Sul, velejamos calçados no motor, para melhorar o ângulo de orça. Mas a navegação estava molhada, com respingos das marolas. Sem pressa, fomos apenas até o Tranqüilo. Foi uma noite ótima, vislumbrando Porto Alegre toda iluminada. Na manhã seguinte o vento continuava Sul. Os puristas que me desculpem, mas o meu lado lancheiro falou mais alto: lá foi o motorzinho trabalhando novamente, empurrando o Tiza até Itapuã.

A conspiração; 5o ato: o retorno. A quarta-feira pela manhã estava fantástica, com tempo firme e um ventinho bem bom, mas ainda de Sul. A alternativa seria ir até Tapes, onde poderia largar o meu colega para voltar de ônibus a Porto Alegre. Só que para Tapes o vento continuaria na cara e seria uma navegada bem longa, sem horário de chegada. E o meu colega com banca para a quinta... Enchi o saco: bota conspiração nisto! Pelo menos foi uma ótima navegada de volta a Porto Alegre.

Realmente a vida de cruzeirista é difícil; são inúmeras as amarras que nos prendem nos trapiches. Estou começando a entender o Amyr Klink: quanto mais gente envolvida, maiores as chances de problemas. Para navegar mais liberado, acho que vou ter que voltar aos tempos do império e comprar um escravo. Recomendaram-me o escravo Raytheon... Dizem que é meio franzino, desdentado, mas que dá conta do recado, o que vocês acham?