De navio, da Antuérpia a Porto Alegre
O depoimento de uma imigrante*
Madame van Langendonckem


Creio que, quando me decidi a emigrar para o Brasil, as combinações de interesses materiais eram apenas pretexto para ceder à atração pelo desconhecido, pois eu pensava menos no que íamos fazer no Brasil do que naquilo que íamos ver.

No dia 30 de abril de 1857, saímos da enseada da Antuérpia, no brigue Amanda, comandado pelo capitão B..., com destino ao Rio Grande do Sul.

Para quem nunca viu um transporte de emigrantes alemães, é impossível fazer uma idéia deste.

A coberta do navio continha cento e cinqüenta indivíduos de todas as idades e de todos os sexos. Todos colonos livres, ou seja, tendo pagado sua passagem. Alguns carregavam consigo uma pequena fortuna, seja em espécie, seja em mercadorias. Outros haviam sido embarcados às custas de suas comunidades. Os primeiros estavam munidos de amplas provisões culinárias, os segundos, reduzidos às rações de bordo, recebiam apenas o suficiente para não morrer de fome. Todos tinham em comum uma sujeira sem nome, além de costumes que ao mais indulgente teriam parecido de uma licenciosidade bastante evidente.

A cabine do capitão, excessivamente pequena, estava situada no mesmo nível da coberta . Entre as duas, haviam nos reservado um espaço, contendo duas camas e o lugar necessário a nossas bagagens, de maneira que estávamos perfeitamente à vontade.

Nossa cabine improvisada recebia luz por dois globos de vidro, incrustados na ponte. Sós, quando o desejávamos, fazendo nossas refeições em família, inicialmente não achamos a travessia sem conforto nem sem encanto.

Ai de nós! Chegamos às regiões quentes, sufocávamos na cabine, forçoso nos foi ir buscar um pouco de ar na ponte. Toda a população do Amanda lá estava permanentemente, não sabíamos onde nos enfiar. Os alemães continuamente faziam uns aos outros o favor mútuo de catarem os vermes que os cobriam. O nojo deste espetáculo era atroz, e como o capitão deixava a popa à disposição de todos, era, pois, impossível evitá-lo.

Este capitão era um homenzinho rechonchudo, inquieto, de uma irascibilidade extraordinária, duro até a crueldade para com sua equipagem. Conseqüentemente, esta, disseram-me, normalmente deixava o navio no primeiro porto de escala; e jamais o capitão B... havia trazido de volta a Antuérpia os homens com os quais partira...

Muito jovem, começara a navegar com um tio, capitão-de-longo-curso; a prática lhe ensinara apenas a arte marítima; em qualquer outra matéria, sua instrução era nula.

Eis um exemplo disso: um dia, seguindo sob a carta náutica a marcha do navio que ele me indicava, quis, a propósito da bússola, lembrar-me do nome de seu inventor.

— O inventor da bússola? Disse o capitão morrendo de rir, mas a bússola é velha como o mundo, foi criada com ele. A bússola inventada! Meu Deus, Madame, não diga isso a ninguém, as pessoas ririam da senhora.

No entanto, este homem era um marinheiro capaz, livrando-se perfeitamente das posições difíceis onde muitos se perderam. Homem infatigável, via tudo, participava de tudo: enfim, fazia seu trabalho com uma inteligência que a mais sábia teoria nem sempre oferece.

Uma manhã, urros de desespero que vinham da coberta me despertaram, vesti-me às pressas e fui me informar do que se passava. Ai de mim! Esses gritos pungentes eram emitidos por uma jovem mãe cujo filho de três meses morrera à noite e que não queria consentir que lhe arrancassem das mãos o pequeno corpo para jogá-lo ao mar. O capitão ordenou que o tomassem à força; ele foi envolvido em uma lona, costurada ao redor de seu corpo que foi depois lançado por cima da amurada. O pacote boiou durante alguns segundos, depois uma onda o carregou.

Uma bela menina de quatro anos também morreu no dia seguinte: o mar também engoliu esse cadáver.

Alguns dias depois, um ancião entregou sua alma a Deus: coisa triste de dizer, afirma-se que a total falta de cuidados havia, se não provocado, ao menos apressado a morte deste pobre homem, que no entanto tinha com ele quatro filhos adultos.

Mais tarde, com alguns dias de intervalo, três crianças nasceram a bordo. As mulheres se ajudaram entre si, e tudo se passou a contento. O decano do navio batizou provisoriamente as três pequenas criaturas: uma, nascida na altura das costas brasileiras, entrava em sua nova pátria cidadã de direito.

Enfim, em uma quinta-feira, 9 de julho, chegamos diante da barra do Rio Grande do Sul. Para alijar o navio, descarregou-se toda a água potável, o que não o impediu de ter a proa presa nas areias da barra. Para soltá-la, transportou-se da proa para a popa as grossas correntes das âncoras e toda a ferragem que se encontrava a bordo. Fez-se os passageiros correrem de uma extremidade a outra da ponte até que finalmente o brigue flutuasse novamente e que pudéssemos, com a ajuda de um piloto, entrar no porto.

O aspecto do Rio Grande é triste; do porto, não se percebe nenhuma vegetação; nada a não ser areia, areia por toda parte. A cidade é bastante animada: mas dessa agitação mercantil que só é simpática aos traficantes. Poucas ruas são inteiramente pavimentadas. O conforto do interior doméstico deixa muito a desejar: a vida é cara e vive-se mal.

Um navio a vapor esperava os emigrantes. Em vinte e quatro horas, ele nos desembarcou em Porto Alegre, onde fomos recebidos pelo Senhor Conde de Montravel e onde, por sua ordem, nos foi preparado um quarto em seu hotel.

Porto Alegre é uma bela cidade, inteiramente nova, construída em um terreno acidentado, perto do confluente de quatro rios, que formam uma quase ilha. O ar é salubre, as ruas, direitas e bem pavimentadas. O alto comércio é reservado aos alemães e aos portugueses: estes representam os judeus da Europa. Entre eles, tudo o que produz um ganho qualquer é justificado por suas relações. Por conseguinte, todos enriquecem. Chegando ao Brasil geralmente com uma mão atrás e outra adiante, eles começam por vender aguardente de cana (cachaça) aos negros, cujos roubos compram ou receptam. Agentes de loterias incitam os escravos a furtar a seus donos com o que tentar fortuna. Inútil dizer que o negro nunca ganha, obrigado que é, por não saber ler, a confiar na boa fé do agente, que, único confidente destas transações clandestinas, quase sempre se apropria dos lucros. Além da receptação, do abuso de confiança e do empréstimo a prestação, o indivíduo pratica a usura em larga escala, sem prejuízo do infame ofício com que ele se põe, nos portos marítimos, à disposição dos capitães.

A aristocracia é representada, em Porto Alegre, pelos verdadeiros indígenas, os brasileiros puro-sangue. Povo um pouco indolente porém dócil, benevolente e de uma boa-fé incontestável. Hospitaleiro com tato e delicadeza, ele se esmera em tornar seu país agradável aos estrangeiros, cujos elogios lhe dão prazer. No entanto, não lhe aponte melhoras a introduzir em seu governo ou em suas administrações; ele lhe escutará sem acreditar em você e lhe responderá sorrindo: Paciência.

Os alemães que, pela perseverança e o trabalho adquiriram, no Brasil, um grande conforto ou fortuna, permanecem simples e dignos, muito unidos entre si, e educam perfeitamente seus filhos.

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(*) O texto aqui publicado é o primeiro capítulo de "Uma Colônia no Brasil", escrito por Madame van Langendonck em 1862 e divulgado na Internet. MME. VAN LANGENDONCK. Uma colônia no Brasil. 1ª ed. 1862. Tradução de Paula Berinson. Intr. Augusto Meyer. 2002. (Tiragem 500 ex.) Co-edição Edunisc.

A sinopse da obra diz:
Uma ilustrada dama, já com livros de poesia publicados, com mais de sessenta anos, abandona, em 1857, sua culta Europa pelas selvagens matas do Rio Grande do Sul para aí construir uma nova vida. O resultado: uma narrativa que traz uma bela aventura, contendo até lances fantásticos. Numa época em que as mulheres se contentavam, em geral, com a vida familiar e que as sexagenárias ficavam de preferência ao pé do fogo costurando e bordando, a corajosa Madame van Langendonck prefere tecer sua história e atira-se para o Brasil em um navio de emigrantes. Além da coragem demonstrada, era também uma mulher muito inteligente e perspicaz e suas conclusões a respeito do que viu e ouviu nessas paragens, suas idéias a respeito da imigração tornam essa narrativa bem singular.

 

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