O Quilombo da Ilha do Barba Negra
Moacyr Flores
(publicado no Jornal "Correio do Povo" de 07/05/1983)

No início de setembro de 1829, o iate de José Inácio Teixeira levantou ferros do porto de Rio Grande e velejou pela Laguna dos Patos, rumo a Porto Alegre. Ventos contrários não permitiram que entrasse no canal de Itapuã. O patrão do pequeno barco resolveu abrigar-se na Ilha do Barba Negra (veja carta), à espera de que o vento amainasse ou soprasse noutra direção. Mandou um batelão à ilha, com um marinheiro branco e quatro escravos, também marinheiros, para buscar lenha.

Quando estes homens estavam entregues à sua faina, surgiram mais de 30 negros armados de lanças e espingardas. Um dos marinheiros escravos se escondeu num monte de lenha e os demais, comandados pelo branco, fugiram no batelão. Os negros atacantes atiraram nos fugitivos, visando mais ao branco, mas não o acertaram.

Os negros correram para canoas escondidas nos aguapés e seguiram o batelão de perto. Vendo que os fugitivos se punham a salvo, os perseguidores tentaram a abordagem do iate que zarpou na direção de Bujuru, escapando dos quilombolas.

Depois de navegar pela Laguna dos Patos até conseguir vento favorável para contornar a ponta de Itapuã, José Inácio Teixeira tomou o rumo de Porto Alegre onde comunicou imediatamente às autoridades a existência do quilombo na Ilha do Barba Negra.

O vigário-geral Antônio Vieira da Soledade, vice presidente da província em exercício, em meados de setembro de 1829 ordenou ao tenente Luís Alves dos Santos Marques que preparasse uma expedição punitiva, com 160 soldados de linha e mais 30 artilheiros. Quase um mês depois a tropa estava distribuída na escuna "Doze de Outubro", em dois lanchões e um iate.

As embarcações aproximaram-se da Ilha do Barba Negra e ancoraram ao largo. Um dos lanchões dirigiu-se à terra e encontrou uma canoa grande tripulada por cinco escravos que, ao serem descobertos, remaram desesperadamente para a ilha, onde sumiram em desabalada carreira no meio da vegetação.

O lanchão continuou a navegar, costeando a ilha até o lado oposto, onde os soldados desembarcaram e bloquearam a fuga de seis machos e três fêmeas - conforme a linguagem da época - que escaparam para uma pequena canoa. Intimados a se entregar, continuaram a fuga. O comandante ordenou aos soldados que atirassem. A descarga violenta matou os negros e afundou a canoa.
A expedição desembarcou na ilha e encontrou apenas roças de feijão e de milho, quatro casas prontas e duas ainda em construção. Os soldados arrasaram tudo.

Apareceu o escravo marinheiro de José Inácio Teixeira, que havia se escondido no monte de lenha e fora depois capturado pelos quilombolas. Contou que enquanto lá esteve, foi mantido sob guarda e preso no tronco. O capataz do quilombo queria matá-lo porque era fiel a seu senhor e poderia denunciar o refúgio. Os demais escravos advogaram sua causa, salvando-lhe a vida. Narrou ainda que o capataz do quilombo, que morreu junto com os que tentavam fugir de canoa, era o assassino de um tal de João de Vestia.

A expedição falhou em capturar quilombolas porque eles estavam prevenidos do ataque e conseguiram fugir a tempo pela ponta da Ilha de Canguçu. Dois dias antes do ataque os quilombolas estiveram carneando na estância de Cabeçudas, de propriedade de D. Maria de Oliveira, irmã do cônego Salgado.
A expedição retornou sem nada sofrer, apenas o cadete Joaquim da Fonseca Pereira Pinto, que se achava na retranca da escuna, por imprudência caiu n'água e pereceu afogado.
Estas notícias foram publicadas no jornal "O Amigo do Homem e da Pátria", edições de 18 de setembro e de 12 de outubro de 1829.

A incapacidade de os agentes repressores reunirem rapidamente suas forças permitiu que escravos da cidade avisassem os quilombolas em tempo. Segundo cronistas da época as notícias circulavam rapidamente entre os escravos que tudo viam e ouviam porque participavam como mão de obra de todas as atividades dos brancos.

A expedição punitiva, com quatro embarcações e 190 soldados, não vasculhou as ilhas e as margens da Laguna dos Patos, não percorreu as estâncias da Barra do Ribeiro e de Pedras Brancas, atual município de Guaíba, em busca dos escravos fugitivos. O comandante militar deu a missão por cumprida com a destruição de roças de subsistência e algumas palhoças.

O jornal não se refere à proteção que os estancieiros da região davam aos quilombolas da Ilha do Barba Negra. Havia várias charqueadas nas proximidades, com trabalho mais intenso no período de dezembro a fevereiro, quando o calor do sol é maior, para secar as mantas de carne expostas nos varais. O quilombo da Ilha do Barba Negra fornecia mão de obra barata às charqueadas e às estâncias. Fora das safras os charqueadores e estancieiros não necessitavam sustentar esta mão de obra - o mesmo não aconteceria se tivessem que comprar mais escravos para os períodos de rodeios e salga de carne, pois nos momentos de crise ou entressafra não poderiam despedi-los.

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Artigo publicado no Correio do Povo de 7 de maio de 1983.
O cônego Salgado vivia naquela região e o povo deu seu nome ao arroio local, "Arroio do Padre Salgado" e à "Ponta do Salgado" (veja carta acima). A denominação da ponta segue até os nossos dias, já o arroio teve seu nome trocado para "Arroio Araçá".
O nome "Ilha do Barba Negra" e "Estância do Barba Negra" teve origem na figura do proprietário, que também era padre, e possuía uma barba negra e abundante.
A irmã do padre Salgado, Dona Maria, teve seu nome perpetuado no Banco Dona Maria e seu marido, Sr. Vitoriano, da mesma forma com o Banco do Vitoriano.



Gentilmente enviado ao popa.com.br por Carlos Altmayer Gonçalves, o Manotaço, cmte. do "Barba Negra" / VDS, que acrescentou: Muitas vezes já fui perguntado se o nome de meu barco é uma alusão ao pirata Barba Negra. Quando respondo que é em homenagem ao padre, termino tendo que contar a história que deu origem ao nome da ilha, que na verdade é que foi a homenageada. O assunto do padre é para atiçar o curioso. Quem sabe aos poucos não vamos descobrindo a razão dos nomes dos nossos acidentes geográficos.

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