Labuta em Alto-mar
Trabalhar em cruzeiros requer temperamento flexível, disponibilidade e experiência
Publicado originalmente no Estadão

25 Dez 2007

Iludidos, muitos acreditam que trabalhar num navio é sinônimo de bom salário e diversão

Quem imagina que trabalhar em cruzeiros marítimos significa apenas "conhecer o mundo inteiro sem gastar nenhum tostão" certamente vai "entrar pelo cano", como avisou Herbert Viana no famoso Melô do Marinheiro, do Paralamas do Sucesso. Marcelo Toledo, diretor da MBrazil, empresa agenciadora de profissionais brasileiros para intercâmbio no Exterior, enfatiza: "é importante desmistificar a idéia de que este trabalho é sinônimo de férias num navio, conhecendo o mundo de graça."

Segundo ele, existem muitos poréns, que afastam essa imagem idealizada: o funcionário vai dividir a cabine (geralmente, minúscula) com uma pessoa desconhecida - exceto os gerentes, que têm cabines privativas; é totalmente proibido qualquer envolvimento emocional com passageiros (caso de demissão sumária); é feito exame anti-drogas para os que pleiteiam algum cargo em navios; a jornada de trabalho varia de 10 a 14 horas diárias sem fins de semana nem feriados; não são admitidas tatuagens ou piercings visíveis e as regras de conduta são rígidas como num quartel.

Por tudo isso, Marcelo Toledo avisa que este trabalho não deve ser encarado como um bico eventual, mas sim como uma carreira. Destaca que o esforço do tripulante é bem recompensado pela oportunidade de conhecer os lugares onde o navio atraca, por salários atrativos (variando de US$ 534,00, para um faxineiro, a US$ 4 mil, mais bônus, para gerentes, dependendo da companhia) e folgas proporcionais (cada seis meses no navio dá direito a seis semanas de férias. Para gerentes e supervisores, cada quatro meses permite oito semanas em terra).

Toledo lembra que o mercado é farto, porque, segundo as leis vigentes no Brasil, se um navio permanecer 90 dias em nossas águas, deve ter 30% de sua mão-de-obra brasileira. O diretor do site Viagens de Navio, Marcos Cardoso - que possui 20 anos de experiência no setor e, atualmente, é o agente oficial da Royal Caribbean no Brasil, responsável por sua publicidade e contratação de mão-de-obra para seus navios -, acrescenta que, além das qualificações de praxe (inglês fluente e experiência em terra no cargo que vai ocupar no navio), o tripulante deve servir o passageiro como se ele fosse um rei. "Se o candidato está preparado para dar bom dia com o coração e sorrir com os olhos para os passageiros, então está no caminho certo."

Neste aspecto, o brasileiro tem se dado bem. É o que garante Jerusa Pedrosa, diretora da Infinity, agência especializada no recrutamento de profissionais para cruzeiros marítimos. De acordo com ela, por seu temperamento alegre, extrovertido e extremamente afetivo, tripulantes brasileiros são valorizados por companhias do exterior. "Apesar de nossa mão-de-obra perder para o norte-americano e europeu em qualificação, ganha no temperamento." Em 2006, a Infinity selecionou cerca de 1200 tripulantes para as mais diversas companhias marítimas. Este ano, já foram colocadas a bordo 1.100 pessoas.

ESCOLA DE VIDA

Após cinco anos e meio como tripulante de vários navios, a paulista Carolina Ventura Frésca, de 26 anos, quer agora uma carreira mais tranqüila em terra. Está de malas prontas para assumir seu novo posto na recepção do aeroporto de Dubai, nos Emirados Árabes. "Como experiência profissional e de vida, não há nada igual a trabalhar em cruzeiros. A gente aprende a ser mais tolerante. Conhece outros costumes, outros povos. Mas também trabalha muito. Muito mesmo."

Formada em hotelaria e com inglês fluente, ela conta que sua experiência neste setor começou quando conseguiu uma colocação como garçonete, ganhando um salário de US$ 2 mil. O curso de um mês pelo qual passou antes de embarcar já anunciava que não seria nada fácil: eram 70 horas de aulas por semana, com quatro a seis horas de folga por dia. Ela lembra que, já nessa fase, duas pessoas desistiram, porque não conseguiam agüentar a jornada e se entrosar com os demais. A maioria era asiática .

"Para mim, tudo era novo e entusiasmante. Até conseguir entender o inglês falado pelos indianos e coreanos era um desafio." O que pegou mesmo, segundo Carolina, foi o fato de o banheiro do navio ter de ser dividido com mais 10 tripulantes. "Era gente correndo pelo corredor de toalha, outros batendo na porta apertados, enfim, bastante constrangedor." Para piorar, ela diz que dividia com outra tripulante uma eslovaca, cabine tão pequena que era preciso que uma saísse quando a outra queria se trocar com o mínimo de conforto.

Mas tudo melhorou alguns anos depois, quando atingiu o posto de chefe das garçonetes, com salário de US$ 4 mil. Ganhou conforto, porém também mais responsabilidade. O que importa, segundo Carolina, é que conseguiu o que queria: ótimos salários, uma vivência profissional insuperável e viagem a lugares maravilhosos na Itália, Croácia, Turquia, Grécia, Espanha, França, Estados Unidos, entre outros países.

A ex-secretária de Ana Maria Braga, Alessandra Medeiros do Nascimento, de 32 anos, também se encantou pela carreira no mar. Lembra que, na época, com 24 anos, tinha acabado de chegar da Inglaterra, onde fora estudar inglês. Uma reportagem na Globo, onde trabalhava, despertou seu interesse. Foi atrás de seu sonho. Logo embarcou num navio como auxiliar de garçonete, com o salário de US$ 1.200,00 mais gorjetas. "Mas não foi fácil", diz. "Acordava às 5h30, arrumava o café da manhã, tirava as mesas e deixava tudo pronto para o almoço. Descansava das 15h30 às 18h30. Aí a maratona recomeçava, e ia até meia-noite. Até arrumar o salão já eram 2 horas da madrugada. Três horas depois, tinha de acordar e começar tudo de novo."

A parte cômica, segundo ela, era ver mulheres belíssimas e homens em seus trajes impecáveis, cheios de "plumas e paetês", nos jantares sofisticados, vomitando sobre as mesas, devido ao balanço do navio. "As madames eram obrigadas a descer do salto." Legal também, de acordo com ela, eram os casos amorosos com os tripulantes. Alessandra conta que namorou um lituano por um ano e meio. "Como costumamos dizer, foi amor de navio: passou."

Ela também faz um balanço positivo de sua vivência no mar. "Fui com o objetivo de ganhar dinheiro e conhecer o mundo, e consegui. O lado negativo é a solidão, a saudade de casa e o esforço físico. Hoje, não teria a vitalidade para aquela maratona."

AMOR A BORDO

Já o santista Jonathan Louback, de 25 anos, está longe de encerrar sua carreira no mar. A experiência como recepcionista em hotéis e o domínio do inglês foram decisivos para conseguir a primeira colocação em navios, como barman. Na época ganhava US$ 700,00. Mais tarde, em outros cruzeiros, passou para o departamento financeiro, quando conseguiu ganhar mais que o dobro : US$ 1800,00. Mas o importante mesmo, segundo ele, foi ter conhecido sua atual esposa. No caso dele, não foi um amor de navio. Ela também era tripulante e, hoje, ambos comemoram a chegada da pequena Alyce, nascida no dia 14 de novembro.

Jonathan acha que não há melhor maneira de ganhar bem, trabalhando no que gosta e ainda conhecendo o mundo. Diz, orgulhoso, que já aportou em cerca de 49 países, de todos os continentes, além da Antártida. Os cinco anos de experiência em navios lhe proporcionaram também o aperfeiçoamento profissional. Hoje, além do inglês, domina o espanhol e o italiano.

Diz que tira de letra o trabalho duro de 12 horas diárias. Inesquecível e muito divertido foi um cruzeiro gay em que trabalhou, conta. "Os quase 3.100 gays a bordo nos cantavam toda hora, ofereciam dinheiro, dançavam em cima das mesas, faziam mil e uma peripécias. Tínhamos de conter os abusos com muita gentileza. Eram super alegres e simpáticos. Foi uma experiência diferente e engraçada."

O economista Paulo Renato Peral, de 39 anos, não se arrepende nem por um momento de ter trocado a monotonia dos números pela aventura da vida no mar. Embarcou como assistente de garçom, em 2003, no Carnival Cruises Lines, com um salário de US$ 900,00. Não parou mais. Passou por várias companhias, inclusive pela Crystal Lines, que possui um dos mais luxuosos navios do mundo, onde trabalhou como garçom principal, com um salário de US$ 4000,00. Conseguiu juntar dinheiro e conhecer cidades de quase 70 países.

"Se compararmos este tipo de trabalho com o que existe no Brasil, é muito vantajoso", avalia. O outro lado da moeda, segundo ele, é que o funcionário de um navio tem de estar sempre disponível. Mesmo em horas de folga, se for preciso assumir o posto, não tem desculpa. Há ainda a incompatibilidade com o companheiro de cabine, o que, às vezes, acontece. Nesses casos, é possível pedir ao encarregado para mudar. Mas o pior "porém", de acordo com ele, é ter de recusar alguns convites tentadores, como um que recebeu certa vez, para uma festa do tipo "todo mundo nu", na cabine de uma alegre passageira. "Foi um desperdício", brinca.
Fonte: O Estado de São Paulo