O rio Guaíba
O prazer das palavras
Claudio Moreno*

06 Jan 2008
Mal rompeu 2008 e os incansáveis micuins do idioma, que não dormem nunca, já começaram a incomodar. Falando diretamente da Usina do Gasômetro, durante a queima de fogos que saudou a passagem de ano, o jovem repórter de uma rádio local, entusiasmado, comentava o belíssimo espetáculo das luzes e cores refletidas nas águas do rio Guaíba, quando foi interrompido pelo responsável pelo programa, que, em tom amistoso, lascou uma intervenção corretiva: "É estuário, não é rio" - o que fez o ingênuo reporterzinho, depois de pedir desculpas por sua falha, massacrar o meu ouvido com estuário Guaíba para lá, estuário Guaíba para cá.

E essa agora! Será que alguém imagina que vamos deixar de chamá-lo de rio só porque tecnicamente ele não é um rio? Sabemos que já faz muito tempo que os especialistas vêm debatendo a verdadeira natureza do Guaíba. Depois de ser rio por dois séculos, passou alguns anos como lago e agora recebe o rótulo de estuário, que chega com ares de classificação definitiva (desde que, é bom lembrar, o próprio conceito de "estuário" não venha, um dia, sofrer alterações, como sói acontecer no mundo do conhecimento). E daí? Esse rigor definitório é extremamente relevante no recinto reservado dos especialistas, mas aqui fora, no léxico geral do idioma, essas distinções simplesmente não são (nem poderiam ser) levadas em consideração.

Sendo a linguagem uma forma de compreensão e classificação da realidade que nos cerca, só conseguimos distinguir perfeitamente as palavras pertencentes a um mesmo grupo semântico quando as diferenças que elas exprimem têm algum sentido para nós. Detalhes que são relevantes para uns podem não ser tão relevantes para outros, o que vai se refletir nos vocábulos empregados. Exemplifico: há alguns meses, um porta-voz da área policial, numa entrevista radiofônica, comentava que a crescente instalação de sistemas de segurança eletrônico nos carros modernos tinha feito baixar consideravelmente o número de furtos de veículos em Porto Alegre. Por alguns preciosos segundos, todos nós - o entrevistador, eu e todos os demais ouvintes - chegamos a imaginar que a taxa de violência estava finalmente diminuindo, mas foi ilusão que durou pouquíssimo, pois logo o porta-voz se encarregou de estragar a festa: "Isso trouxe, é claro, um aumento no número de roubos, porque o meliante agora é obrigado a esperar pelo dono do carro para tirar-lhe o comando ou a chave eletrônica".

Para os leigos, furto e roubo são sinônimos; advogados e policiais, contudo, no desempenho de suas funções, sempre distinguirão o furto do roubo porque, no mundo jurídico, roubo implica violência ou ameaça. Para nós, simples mortais, isso não faz a menor diferença, e todos aqueles veículos levados pelos amigos do alheio serão contabilizados como carros roubados. Quem está certo, aqui? É claro que todos, pois o critério de correção vai depender do grau de precisão de linguagem que se exige para cada tipo de falante. Para o contribuinte comum, tudo aquilo que ele paga ao poder público é imposto; para o advogado, no entanto, tudo é tributo, que se dividirá, segundo sua natureza, em taxas, impostos ou contribuições. Eu jamais contrataria um advogado que confunde furto com roubo, ou taxa com imposto, mas não vou criticar o zelador do prédio quando ele aplaude o fim do "imposto" da CPMF ou quando promete que ainda vai descobrir quem anda "roubando" material de limpeza do condomínio.

É assim que a coisa funciona: as palavras são mais elásticas no uso normal, quotidiano, do que no uso técnico e profissional - e isso é bom, e é fundamental que assim seja, ou nossa vida viveria paralisada por crises de exatidão. Há exemplos assim em todas as áreas; para mim, o condor é um pássaro gigantesco que vive nas alturas geladas dos Andes, apesar dos biólogos afirmarem que ele é uma ave, jamais um pássaro. Aceito quando um aluno fala no "uso da crase" ou no "A craseado" - mas jamais aceitaria isso de um professor, que é obrigado a distinguir entre o acento grave indicativo de crase e o fenômeno propriamente dito. A lagoa dos Patos e a lagoa da Conceição, por estarem ligadas ao mar, são tecnicamente lagunas - mas só no mundo acadêmico. Há quem diga que o Mar Morto é, na verdade, um grande lago - mas ninguém vai se pôr a chamá-lo de "Lago Morto". Um aterro fez com que a ilha do Retiro, onde fica o estádio do Sport Recife, deixasse de ser ilha, mas ninguém pensa em trocar seu nome por "aterro do Retiro". Por tudo isso, seja lago, estuário, laguna ou mesmo mar, o Guaíba sempre será referido como o rio Guaíba, em cuja margem se ergue o altaneiro Gigante da Beira-Rio - e não "Beira-Estuário", o que é um argumento de peso mundial, reconhecido até pela Fifa...
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(*) Claudio Moreno é Professor, doutor em Letras. Publicado originalmente em Zero Hora em 5 de janeiro de 2008.
Moreno foi meu professor de Literatura no Colégio Anchieta. Foi um dos professores mais marcantes que tive. Danilo C Ribeiro
Ilustrações do Guaíba: Popa.com.br

Mais sobre o tema: Guaíba: rio, e não lago

 

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24 Mar 2009
Luiz Soares
Arroio do Meio RS
Perfeita a crônica de Cláudio Moreno sobre o Rio Guaíba. Seja Rio, Laguna ou Estuário, será sempre o nosso Rio Guaíba.
Valeu
Luiz Soares
Arroio do Meio RS.