A Regata do Século

 Transatlantic Challenge
Comte Geraldo Knippling, o Mestre

Um recorde memorável que não foi superado em 100 anos.  Em 29 de maio de 1905 a escuna “Atlantic” (185’) estabeleceu a memorável marca de 12 dias, 5 horas e um minuto.  Marca esta, que a técnica da moderna engenharia naval não conseguiu superar durante um século, apesar das repetidas e frustradas tentativas.


 


Escuna Atlantic, 1905

TRANS ATLANTIC CHALLENGE, inicialmente denominada Kaiser Pokal (Taça do Imperador), foi instituída pelo Imperador Guilherme II da Alemanha.   Este jovem monarca, neto da Rainha Vitória da Inglaterra, empossado  em 1888, com 29 anos de idade, era entusiasta de regatas e exímio velejador.  Era sua intenção impulsionar o seu país no cenário marítimo mundial, na época em que a Alemanha ainda era uma potência naval emergente, na sombra da marinha inglesa, dona dos mares.

 

Por telegrama, através do cabo submarino, ele desafiou a Inglaterra e os Estados Unidos para uma regata transoceânica, por ele patrocinada.   Foi como mexer num formigueiro.  Isto envolveu logo os mais competentes construtores navais bem como os mais ricos e poderosos adeptos desse esporte.  As regras eram muito simples: qualquer veleiro com mais de 100 toneladas poderia participar. Não havia handicap mas as regras internacionais de regata seriam observadas. Os barcos tinham que chegar ao ponto de partida, Nova Iorque,  por seus próprios meios: navegando.  Este último detalhe não deixava de ser uma artimanha do organizador, pois os barcos europeus teriam que cruzar o Atlântico antes da largada.  Isto, presumiam, deixaria os ingleses, grandes favoritos, mais cansados e desgastados para o magno desafio.  O proprietário do barco ou seu representante teria que estar a bordo. A linha de chegada seria no través do Lizard Point, no extremo sul da Inglaterra.

 

Ao contrário dos desejos do Kaiser, não houve tempo para os engenheiros alemães construírem o seu próprio barco.  Compraram na Inglaterra a escuna “Rainbow” de 158’, rebatizada “Hamburg”Tiveram apenas um mês para preparar o barco para o grande evento.  Do outro lado do Atlântico, uma atividade inédita e frenética sob os auspícios da disponibilidade ilimitada de recursos, liderada pelo magnata do petróleo John D. Rockefeller, o homem mais rico do mundo,  William Vanderbilt  o magnata das ferrovias e mais outros.  Seria uma regata mais política que esportiva: a nobreza contra o dinheiro!

Havia uma disputa entre os milionários tradicionais e os novos-ricos: dinheiro velho contra dinheiro novo!  Mas o mais acirrado confronto foi em torno de comandantes competentes e tripulações habilitadas.  Havia um verdadeiro leilão em torno dos nomes mais qualificados.

O preço mínimo já estava acima de 30.000 Dólares (em valor de hoje 600.000).  O mais cotado era Charlie Barr, três vezes vencedor da Copa América em anos anteriores, considerado o melhor do mundo.  As quantias foram aumentando, acrescidas de prêmios adicionais e mais mordomias que não chegaram a sensibilizar Captain Barr.  Sua esposa estava muito doente, com tuberculose e ele não queria afastar-se por um período maior de tempo.  Finalmente ele foi “arrematado” pelo proprietário da escuna “Atlantic”, o milionário Wilson Marshall, dono de uma cadeia de teatros na Broadway.  Além de aumentar a oferta, ele lhe ofereceu prêmios adicionais pela vitória, os melhores médicos para cuidar da sua esposa e uma passagem para retorno imediato no primeiro e mais rápido vapor disponível.

 

Apresentaram-se 11 barcos: 8 dos Estados Unidos (que surpreenderam), 2 da Inglaterra e 1 da Alemanha.  O maior deles era a fragata inglesa, “Valhalla” de 245’, deslocando 648 toneladas.  Era a esperança da Inglaterra. Havia ao todo 356 tripulantes;  entre eles a única mulher, Candace 35, filha de Lewis Stimson, proprietário do “Fleur de Lys” (USA), com 108’ o menor da flotilha.  Na realidade era ela que tomava todas as iniciativas a bordo.

 

 

 

Largada no alinhamento do Ambrose Lighthouse em Nova Iorque.  18-5-1905

 

 

Na véspera da largada houve um jantar onde tudo foi superlativo: um cardápio com 346 opções regado a vinho ao preço de uma moradia, a garrafa.  Na ocasião também foi lido o telegrama do Kaiser, que acabara de chegar, via cabo submarino: Saudações a todos os proprietários de barcos e ao comitê de regatas.  Espero que a competição seja um sucesso e desejo a todos uma rápida travessia.  Wilhelm I.R.

 

 

Foi uma largada festiva, com ventos leves, rumo ao velho continente. A escuna “Atlantic” foi logo para a liderança.  Mas ao cair da noite foi ultrapassada pelo barco alemão “Hamburg” sob o comando de A.Tietgens, com uma tripulação da marinha alemã, que tinham uma única missão:  vencer a regata.  Esta informação foi dada por um navio a vapor que passou pela flotilha navegando em sentido contrário ao chegar em Nova Iorque.  Foi um alvoroço geral; tanto na imprensa como na sociedade, já que não havia outras notícias. 

 

 

Caixa de texto: Charlie Barr, comandante da escuna “Atlantic”.
Observe a baixa altura da retranca.
Também não havia guardamancebo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Logo enfrentaram mau tempo e distanciaram-se uns dos outros. Devido à falta de comunicações, desconheciam suas posições em relação aos demais, sempre na esperança de estarem na liderança.  Charlie Barr tinha escolhido uma rota mais para o norte, a mais curta e também a mais perigosa, entrando numa área de icebergs que obrigava a tripulação a uma vigilância contínua.  Quando o vento atingiu seus valores máximos a “Atlantic” chegava a rolar 45° com vento quase de popa.  Marshall, o proprietário, que tinha 6 convidados a bordo, para desgosto do comandante, foi ao convés e exigiu que Barr (amarrado ao leme) reduzisse o pano.  Este retrucou secamente: Sr. Marshall, o senhor me contratou para vencer esta regata e é exatamente isto que estou fazendo.  Continuou com todo o pano.

 

Em certo ponto foi avistada a fragata “Valhalla” pela popa.  Devido ao seu tamanho ela estava levando vantagem com o forte vento e o mar agitado.  Entretanto, suas 55 velas não agüentaram a pressão e foram rasgando sucessivamente.

 

Na fase final, a 25 milhas do destino, foram todos surpreendidos por uma calmaria, que deixou um clima tenso em todas as tripulações, que desconheciam sua posição na regata.

 

Em Lizard Point, na linha de chegada, a Comissão de Regatas, a Imprensa e um grande público, com muita apreensão, mantinham vigilância contínua, na esperança de divisar o primeiro concorrente na linha do horizonte, que se concretizou no dia 29 de maio.

 

Finalmente, a escuna “Atlantic” com o audacioso Charlie Barr no comando, cruzou a linha de chegada após 12 dias, 5 horas e 1 minuto. A escuna alemã “Hamburg”, de menor dimensão e apesar dos atropelos na sua preparação chegou em honroso 2º lugar, 22 horas mais tarde, para desgosto do Kaiser.  Em 3º lugar a monstruosa fragata “Valhalla”, um dia depois.

 

100 anos mais tarde, em data coincidente, acaba de ser realizada mais uma regata para possibilitar a quebra desse recorde centenário: o  Rolex International Challenge 2005.   Note que, para ser válido e reconhecido como recorde pela WSSRC (World Sailing Speed Record Council) deve ser disputado numa regata oficial, com data pré-estabelecida e regras idênticas.  Não são válidas as tentativas individuais, que aguardam uma “janela” de tempo e ventos favoráveis de serviços especializados de meteorologia. Já houve travessias mais rápidas, como o recorde absoluto de Steve Fosset no Super-Catamaran “Play Station” em 6 dias, 17 horas e 52 minutos.  A questão das regras idênticas é um pouco controvertida.  Entre elas: tripulação mínima de 6 pessoas.  Não podem ser usadas catracas elétricas ou hidráulicas.  Entretanto, não se fazem restrições ao uso extenso de fibra de carbono, mastros giratórios, nem a quilhas inclináveis (canting keels).

 

Inscreveram-se 21 barcos de altíssima categoria, de várias nacionalidades.  Entre eles, os favoritos “Maximus” da Nova Zelândia e “Mari-cha IV” da Inglaterra (registro de Hong Kong).  Este último, um dos mais modernos high tech,  com quilha inclinável de até 40° para cada lado.

A largada para este Clash of the Titans, foi no dia 21 de maio de 2005.  Como era de esperar, foi um duelo entre “Maximus” (100’) e “Mari-Cha IV” (141’), vencido por este último (fita azul), em 10 dias, 1 hora e 8 minutos.  “Maximus” chegou 4 horas mais tarde.  O maior tamanho do barco vencedor foi decisivo, pois lhe deu mais vantagem nas fases de mau tempo.

 

 

 
“Mari-Cha IV”

 

Assim foi quebrado este memorável e centenário recorde, que de forma alguma tira o grande mérito da escuna “Atlantic” e sua brava tripulação de 100 anos antes, com os métodos primitivos de navegação da época, a falta de comunicações e sem previsões do tempo.

 

                                                                                              Geraldo Knippling

 

 

Lizard Point, no extremo sul da Inglaterra.

 

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