Velejando com o Mestre
Na Lagoa dos Patos com o Cmte Knippling a bordo
Danilo Chagas Ribeiro

Um plano para navegar em um final de semana comprido, e um belo barco. Na véspera da partida, sexta-feira 8 de outubro de 2004, liguei ao Comandante Geraldo Knippling, convidando-o para embarcar ainda naquele dia no Canibal (VDS), o veleiro Delta36 do Comandante Andreas Bernauer.

Minha admiração por Geraldo Knippling começou ao ler seus livros e intensificou-se depois de algumas empreitadas que enfrentamos no meio náutico. O Comandante Knippling é um mestre. O navegador mais querido do meio náutico gaúcho ganhou celebridade também pelo notável trabalho de mapear cada ponto de interesse do Rio Guaíba e da Lagoa dos Patos. Agraciado com a Ordem do Mérito da Aeronáutica, Knippling voou mais de 40.000 horas pela Varig.

Após alguma resistência devido a um compromisso assumido, ele concordou em embarcar conosco ainda naquela sexta-feira.

Porto do Barquinho
O destino da navegada foi um paraíso ecológico com fauna nativa abundante e águas limpas. Porto do Barquinho situa-se na foz de um arroio junto à costa leste da Lagoa dos Patos, a 66 milhas de P. Alegre, por água, e a 12km da cidade de Mostardas. É também uma obra pública inacabada dos anos 40, com molhes de pedras e um alto trapiche metálico. Protegido das ondas da Lagoa dos Patos, o local é descampado, e está a umas 8mn a leste do Farol Cristóvão Pereira.

Convívio fácil e muita disposição
Navegação de cruzeiro também é confinamento, execução de tarefas, e compartilhamento de recursos.
Além da faina de navegação (de convés), é preciso cozinhar, lavar pratos, manter o barco limpo, etc. São tarefas que a maioria dos tripulantes não faz em casa.

O Cmte Knippling deu aulas o tempo todo com sua atitude e com seu exemplo. Estávamos fundeados no Porto do Barquinho. O mestre mostrou que seria conveniente largar um ferro pela popa prevendo a entrada de vento de outro quadrante.

Apesar dos insistentes "deixa que eu vou, mestre", ele mesmo embarcou no dingue e, à remo, levou a âncora bruce de 12kg para longe da popa, onde a jogou n'água. E veio remando, contra o vento. Veja o vídeo com a cena. Foi relevante isso, considerando os outros tripulantes mais jovens que podiam ter feito a faina.
Ele teve a idéia, tomou a iniciativa, e resolveu a parada. É notável sua disposição e energia aos 82 anos.

 


Observe o farol Cristóvão Pereira no centro da foto

Significados do pôr-do-sol
O pôr-do-sol representa para alguns um momento de reflexão. Ou de contemplação.

Para quem está a bordo, fundeado, o pôr-do-sol tem mais conotações. Significa a hora de proteger as velas, de ajustar adriças pra que não batam à noite, de verificar os ferros, de observar o tempo, de aproveitar os últimos instantes com a luz do dia para fainas de convés. Representa a hora de fechar as gaiutas, e de preparar a refeição.
A bordo, o dia termina e começa mais cedo do que na cidade, e a referência ao sol faz mais sentido que o horário: recebemos pelo rádio um convite para um churrasco no Entre Pólos .
- A que horas?
- Depois do pôr-do-sol.
Nos navios da Marinha, após o arriamento da bandeira no pôr-do-sol, o comandante diz Boa Noite à tripulação.

No Porto do Barquinho o pôr-do-sol foi marcado pela gritaria da bicharada. Quero-queros, marrecas piadeiras, galinholas, passarinhos, marrequinhas do banhado, sapos, e sei lá quantos outros bichos compunham uma sinfonia. Se eu disser que se ouvia o barulho dos peixes também, vão dizer que eu pirei mas, sentado no convés do Canibal observando a noite, a toda a hora ouvia o barulho dos peixes pulando em volta do barco. E, por um tempo, o de uma gaita de boca com repertório antigo.

Passeio de dingue
Na manhã do segundo dia no Barquinho subimos o arroio com o dingue. Dingue é um pequeno barco inflável utilizado para desembarque em águas de pouca profundidade. No Canibal o dingue vai pendurado fora da popa, de onde é facilmente baixado. Instala-se um pequeno motor de popa no inflável, e um novo brinquedo passa a funcionar.

Com Knippling no comando passeamos pelo arroio que serpenteia em campos bem verdes. Passamos pela sede de uma fazenda e por pescadores acampados.

Faltavam uns 30cm para o arroio sair da caixa (extravasar para cima dos campos), mas mesmo assim, em alguns pontos do arroio a rabeta do motorzinho raspou o leito. Este arroio traz a água da Lagoa da Boa Vista para a Lagoa dos Patos.

"Vida social"
Esta velejada teve "vida social". À noite, fundeados no Barquinho, convidamos pelo VHF os comandantes Adriano, do Passatempo, Ademir, do Entre Pólos, e Adilson, do Bandido, para as caipirinhas preparadas pelo Cmte Andreas. Estavam a uns 100m de nós e vieram de dingue. Ficaram por lá proseando até tarde, quando o frio os espantou.

Na noite seguinte pernoitamos próximo a eles na Praia do Sítio, já no Guaíba, onde convidaram-nos para o churrasco. Estavam a contrabordo.

Após a deliciosa picanha fatiada assada pelo Cmte. Ademir Gigante no cockpit do Entre Pólos, conhecemos os dois barcos internamente. Tanto o Entre Pólos (40') quanto o Passatempo (38') são veleiros de ferro Bruce Roberts, muito bonitos e bem espaçosos.

A salada de maionese preparada pela Vera, a Imediata do Passatempo, estava deliciosa.

Canibal
O Canibal é um veleiro Delta 36 fabricado em fibra de vidro, em P. Alegre. Tem uma cabine para casal na proa e outra na popa (do cmte). Tem ainda uma espaçosa cama de casal no ambiente principal, armada em menos de 1 minuto (basta retirar um pino do pé da mesa e puxar uma almofada). Banheiro com chuveiro quente, cozinha com micro-ondas, TV de cristal líquido, e outras mordomias mais.

O Delta 36 é um barco marinheiro. Como diria o Cmte Bazuca, do Veleiros, "vai que é um Dodge". Velejar a 8 nós neste barco é barbada. Com 11m de comprimento, cala 1,60m. Está equipado com plotter a cores e radar, sobrepostos na mesma tela quando desejável.
Quem tem barco pequeno deve ter cuidado ao tripular um Delta36, porque a readaptação poderá ser complicada.

Quando o autor do livro de receitas vem cozinhar pra gente
A navegação ocorreu a partir dos dados do livro "O Guaíba e a Lagoa dos Patos", de autoria do Cmte Knippling. A obra de 175 páginas fornece os waypoints e os rumos dos mais escondidos pontos de interesse do Rio Guaíba e da Lagoa dos Patos, com bonitas fotos e informações imprescindíveis a quem navega pela região.

Até aí nada de novo, já que o livro está na mesa de navegação de qualquer barco que navega pelo Rio Guaíba ou Lagoa dos Patos. O fato do autor estar a bordo, entretanto, fez uma sutil diferença. Foi como saborear um prato preparado pelo autor do Livro de Receitas.

O livro "O Guaíba e a Lagoa dos Patos" pode ser adquirido na secretaria do Veleiros do Sul (3267-1733).

O Comandante Knippling trouxe ainda outra maravilha para o Canibal : seu GPS, recheado com os waypoints do seu livro. Nunca vi uma navegação com tanta fartura de recursos e, principalmente, experiência.

Boiando no céu
A primeira noite no Porto do Barquinho estava completamente calma. Depois de um belo pôr-do-sol, a noite com lua nova mostrou um céu muito estrelado.

Via-se um fraco clarão das luzes de P. Alegre nas nuvens ao Norte.

A água refletia o céu de forma esplêndida. "Parece que o barco está boiando no céu", disse o Cmte Andreas.

Órion aparecia inteira na água. É a constelação que contém as "Três Marias".




As Três Marias representam o cinturão do caçador, visto aqui no hemisfério sul de cabeça para baixo.


Refletido na água, o caçador aparecia com a cabeça para cima, com seus cachorros (Cão Maior e Cão Menor) .

Histórias do mestre
Tantos anos de navegação pelos ares e na água deixaram a memória do Cmte Knippling repleta de histórias curiosas e interessantes. Dona Regina, esposa do mestre, é também sua parceira de navegadas e conhece muito também as águas da região.

Contou o mestre que certa vez, estando ela timoneando de olho na bússola, ele percebeu que o barco volta e meia saía do rumo. Ao gritar o tradicional "Olha o rumo!", ela respondia que estava mantendo o rumo correto.
Depois de algumas dessas variações ele observou que D. Regina tomava Coca-Cola e deixava a lata ao lado da bússola. Isso foi naqueles tempos em que as latas de refrigerante ainda não eram de alumínio, mas de lata mesmo. De ferro...

O Cmte Knippling já passou por maus bocados e teve muitas alegrias a bordo. Teve velejadas exóticas também, como na filmagem d'O Mar Doce, em que teve que velejar embaixo de um helicóptero.

Aqui vai um convite para que escreva mais um livro, desta vez contando suas histórias.

O brinquedo do mestre
À noite, no Porto do Barquinho, o Cmte Knippling surgiu no convés com uma luneta de visão noturna. É um dispositivo ótico que torna a escuridão visível. É algo sensacional!

A imagem da ocular é iluminada como a do viewfinder de uma câmera de vídeo, e aparece em tons de verde. Juncos, molhes e barcos, tudo era enxergado perfeitamente. Onde se vê milhares de estrelas a olho nu, vê-se talvez milhões delas com a luneta. "Já entrei na Ponta Escura com a luneta, mas prefiro seguir os waypoints", disse o mestre.
Veja cena de vídeo dos veleiros Passatempo e Entre Pólos no Porto do Barquinho através da luneta. As luzes de tope ofuscaram a visão, e a imagem está fora de foco, mas dá para se ter uma idéia da brincadeira. O brinquedo é vendido pela Westmarine por US$1.850,00. Saiba mais detalhes.

Farol fora de combate
Via-se o farol Cristóvão Pereira do Porto do Barquinho. Mas só de dia. Antes do pôr-do-sol marcamos a posição do farol, mas à noite não o vimos piscar. Brincando com a luneta de visão noturna percebi claramente um lampejar onde deveria estar o farol.
- Mestre, tem algo piscando na direção do farol. Será que é o farolete aquele, um pouco ao norte do farol?
- Se for vermelho, é o farolete, respondeu o mestre.
Como a luneta mostra tudo em tons de verde, observamos atentamente a olho nu, e com muita dificuldade vimos uma luz bem fraquinha piscando na cor branca. Deduzimos que o Cristóvão Pereira estava com uma intensidade muito menor do que a usual.

Um exemplo
O Comandante Knippling demonstrou iniciativa e atividade impressionantes. Timoneia, faz navegação, lava pratos, orienta, grava cenas de vídeo, e lembra do horário da previsão de tempo na rádio. Marca waypoints, observa o tempo, comenta mapas meteorológicos, e até recolhe o lixo. Alegre, o mestre tem a paciência do veterano, a prontidão do proeiro ativo, e a camaradagem do tripulante de muitos milhares de milhas voadas e navegadas. E apesar de toda essa experiência é de uma humildade que só vendo.

Já tínhamos chegado de volta ao clube, e a esposa do Cmte. Knippling o esperava no carro. Insisti para que ele fosse embora. "Só vou embora quando o comandante disser 'Tripulação, dispersar!'. Enquanto isso vamos fazendo o que tiver que ser feito". A postura do mestre é notável.

Há muito o que aprender com este comandante. Muito mais do que rumos e macetes de navegação.
Foi um grande privilégio para nós, navegar na companhia do Mestre Geraldo Knippling.

Mestre não é quem ensina. É quem aprende.
(autor desconhecido)


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Veja o vídeo do passeio

 

 

 

 

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