Subindo o Rio Jacuí até Rio Pardo
Danilo Chagas Ribeiro

Os planos de subir o Rio Jacuí até Cachoeira do Sul vêm de longa data. Em 15 de agosto de 2003 tentamos realizar esta meta, mas por uma pane mecânica nos motores da Aline, o passeio terminou em Rio Pardo, a umas 80nm a oeste de Porto Alegre, Jacuí acima. Para fins de comparação, Palmares e Tapes estão a 57nm do Veleiros do Sul. A decisão de fazermos este passeio foi motivada por um mail recebido pelo popa, onde um visitante do site nos sugeriu esta rota.

Os antigos motores da Aline haviam sido trocados por dois novos MWM, os mesmos do utilitário Silverado. São motores potentes, com intercooler, mas ainda não estavam bem afinados.

Além desta pane (falta de pressão, baixo rendimento), sofremos uma pane séria na volta, próximo a São Jerônimo.

Não foi dos passeios mais bem sucedidos desta tripulação, composta pelo Comandante Adroaldo Mesquita da Costa Neto, Joel Schroder, e eu.

A opinião do Comandante Adroaldo quanto à divulgação de nossas indiadas na Aline, é clara: contamos "as ganhas e as perdidas". Sem essa de ficar só contando as boas. Quem navega sabe que nem tudo é festa a bordo. Também se passa por maus bocados.
E, verdade seja dita, normalmente previsíveis.

Eclusa de Amarópolis
Navegando com a Aline já havíamos passado pela eclusa de Bom Retiro, no Rio Taquari, e pela eclusa do Canal São Gonçalo.

Desta vez passamos pela eclusa de Santo Amaro (PK 75). A obra foi construída para aumentar o calado do Jacuí a partir de Rio Pardo.

Logo acima desta cidade está a eclusa da barragem de Dom Marco que eleva o nível das águas desde Cachoeira do Sul. À montante de Cachoeira encontra-se a eclusa da barragem de Fandango.

O conjunto dessas eclusas regulariza o nível das águas da hidrovia, viabilizando-a.

Perdidos na Ilha do Boquete
Nossa navegação pelo Jacuí baseou-se em uma cópia de antigos mapas encadernados em A4. Imagino que tenham sido preparados pelo antigo DEPRC, o Departamento de Portos, Rios e Canais do estado, atual SPH.

O rio está assinalado com PKs, ou "Pontos Kilométricos" no antigo mapa que dispúnhamos. Folheando-se a encadernação, vai-se passando o rio, em seqüência perfeita, até que na folha 14, vê-se o trecho entre os PKs 80 a 89, e na seguinte, o trecho entre os PKs 85 a 93, quebrando a seqüência. Há sobreposição de um trecho, portanto.

Sem perceber isso, lá pelas tantas observamos que o mapa não correspondia mais ao rio.

O plotter da Aline que por diversas vezes tem servido de tira-teima, mostra o Jacuí só até Triunfo.

Mesmo assim continuamos navegando lentamente, optando pelo caminho que entendíamos ser o mais correto.
É bom esclarecer que a cada bifurcação, a opção errada pode levar a baixios ou a pedras. O ecobatímetro da Aline de vez em quando mostrava profundidades muito menores do que as previstas.

Cinco milhas (10km) adiante, já na altura da Ilha do Boquete**, PK 103 (veja carta acima), encontramos pescadores que nos deram algumas informações, mas não conheciam nenhum dos nomes das ilhas indicados na carta. E ainda paguei mico:

Sabe dizer onde é a Ilha do Curral Alto?
Não...
E a Ilha do Tigre?
Não...
E a Ilha do Boquete?
Risos...

De tanto examinar o mapa acabamos descobrindo a quebra da seqüência e "nos achamos".

Rocha colorida no PK100
A região é plana, tendo favorecido a implantação da antiga estrada de ferro que vai até Uruguaiana, e que acompanha o Jacuí até pouco a oeste de Cachoeira.

São raras as formações rochosas à beira do rio, cujas costas são normalmente descampadas e alagadiças.

Em alguns trechos a barranca está lá em cima, bem alta, como na chegada à Rio Pardo. O Jacuí estava com um 1 metro de caixa.

Nas proximidades do PK100, o Jacuí descreve uma curva reversa. No lado de dentro da segunda curva há um paredão de uma rocha cor-de-rosa aflorada, muito bonito e surpreendente, quebrando a monotonia da paisagem das barrancas do rio.

Rio Pardo, cidade histórica
A cidade de Rio Pardo, situada na confluência do rio Pardo com o Jacuí, era a fronteira entre as colônias portuguesa e espanhola na segunda metade do século XVII.

Terra dos índios Tapes, chefiados por Sepé Tiarajú, Rio Pardo foi fundada com fins militares (Regimento dos Dragões).


foto Luis Klerig

O bandeirante Raposo Tavares peleou por ali liquidando com as missões dos jesuítas. Mais tarde colonizadores açorianos ocuparam a área e desenvolveram a agropecuária. O município já ocupou mais da metade do estado.

No século XVIII um forte foi construído lá, tendo sido palco de

várias batalhas. O ''Tranqueira Invicta'', como passou a ser chamado, jamais foi tomado. D. Pedro II e a família real estiveram por lá para acalmar os ânimos da gauderiada após a Guerra dos Farrapos.

O calçamento da Rua da Ladeira (1813), o primeiro no Estado, é cópia da via Appia e foi tombado, como também o foram a Igreja, de 1779, e outros prédios.

Ceboleirândia
Em Rio Pardo a variação do nível do Jacuí é tremenda. Lá em cima da barranca do rio havia um barco em manutenção. Coisa de uns 15m acima do nível da água. Vai voltar pra água só quando o rio subir de novo aquilo tudo.

No cais haviam vários barcos de recreio com casco de ferro, mais conhecidos por ceboleiros.

São barcos com propulsão a motor (diesel), geralmente fabricados por estaleiros para barcas de transporte ou pelos próprios donos, têm fundo chato, geralmente navegam só em águas de rio, e são o objeto do desejo de comandantes gastrônomos de meia idade.

Ceboleiro que se preze tem que ter fogão a gás e geladeira convencionais como se tem em casa, camas também como as de casa, ser bem colorido, ter tapetes (também como os de casa), iluminação idem, portas também, e tem que ser bem parecidos com os outros. Como se tivessem uma linhagem... Como se fossem monotipos. Em Ceboleiro se entra de cabeça erguida, porque tem pé direito!

Comandante de ceboleiro via de regra é bonachão, gosta muito de conversar, e é gente muito boa. Pelo menos dentre os que conheço, nenhum foge à regra. Escutar a história de uma navegada em ceboleiro significa invariavelmente ter uma aula de gastronomia.

Conhecemos o navegador Bertillo Kist em Rio Pardo. Pai do César, o tenista famoso, conhece bem os rios navegáveis do Rio Grande, e é bom parceiro pra uma conversa. Ao atracarmos em Rio Pardo, já foi tomando a iniciativa de nos direcionar para o contrabordo do ceboleiro vizinho ao seu. Muito gentil, levou-nos à cidade para comprarmos alguns mantimentos, e durante o jantar na Aline, contou-nos das suas navegadas. Morando em Santa Cruz do Sul, cada navegada para ele significa botar o pé na estrada. Mas disse que não se importa com a distância e que o barco é o principal passatempo dele. O maior problema que tem pra navegar, não é exclusividade dele: falta de parceria.

Segundo Kist, a denominação ceboleiro é padrão para este tipo de barco, mesmo entre os donos. Schroder, que também já teve um, diz que a origem deve vir da semelhança com os barcos que transportavam cebola entre S. José do Norte e Rio Grande.

Dragas e areeiros
O tráfego predominante no Jacuí resulta das atividades de mineração, ou seja, extração da areia do rio que é levada ao mercado de construção civil em Porto Alegre.

Passamos por diversas dragas em serviço, e por algumas abandonadas à beira do rio.

Há dragas que trabalham fundeadas, com tripulação de 2 ou 3 homens, sugando e lavando a areia que é repassada aos areeiros nelas atracados.

Outras dragas sugam a areia do fundo e em seguida a transportam até Porto Alegre. Essa aí ao lado mais pareceu ser uma atração da Disney.

Como em outras navegadas pelo Jacuí, raros foram os barcos de recreio que avistamos. Ali trafega basicamente areia.

Pedras no caminho
Descendo o rio, já quase em São Jerônimo, vínhamos conversando entusiasmados, "em clima de vitória", pois dali até Porto Alegre as águas já eram de nós conhecidas.
Tínhamos conhecido mais um trecho de rio.

Até então, nenhum de nós tinha subido o Jacuí acima da foz do Taquari. Não há sinalização alguma daí pra cima e a navegação por carta é imprescindível. Só alguém que navega freqüentemente por ali sabe optar pelo caminho correto ao passar por cada ilha (uma dúzia) e como evitar os baixios (outro tanto). Contudo, tivemos sucesso na navegação.
Já rolava aquele prazer da conquista. Talvez uma pequena euforia.

Euforia...
Ainda guri, no tempo do curso de planadores, eu ouvi falar da praga da euforia. O piloto sente-se poderoso porque aprendeu a dominar a máquina, e relaxa na supervisão. É aí que os problemas começam a acontecer.

A duas milhas à montante de S. Jerônimo, logo após passarmos sob uma ponte rodoviária, e pouco antes da bifurcação que o rio faz para contornar a Ilha das Flores, no PK60,8 , a lancha sacudiu e ouviu-se um ruído forte, com a imediata subida do giro de um dos motores.

Havíamos entrado no braço mais largo, mais em frente, e com muito mais jeito de ser o principal. mas naquele braço do rio o antigo mapa a bordo assinalava "Cuidado Pedras", junto à margem esquerda. Era bem ali que estávamos. Distraídos e em altos papos, acabáramos de bater em um molhe de pedras submerso, já bem perto de onde o General Bento Gonçalves havia perdido uma batalha na Revolução Farroupilha*.
A rabeta foi levantada pra se ver o estrago. Uma delas não tinha mais hélice. Restou apenas o cubo (miolo).
Perdemos nossa batalha final também.

Que nem rato em guampa
Chegamos lentamente a um clube náutico de São Jerônimo, margem direita do rio, onde atracamos. Estávamos tentando imaginar qual seria a solução para o problema. Na verdade, todo mundo estava quieto. A euforia havia se transformado em clima de velório.

Não havia solução alguma à vista. Nem pessoas no clube... Cidade pequena, de nós desconhecida, domingo à tarde...
Reboque do Veleiros, daqui?... Vai chegar só amanhã.
Catamos nos porões da Aline, e achamos um hélice, em bom estado, mas não servia: os hélices dos motores são invertidos, pois giram em sentidos opostos, e o sobressalente era diferente do hélice danificado. Não víamos saída alguma.

Conversa de doidos - Ora, "Pergunta pra elas..."
O Joel começou então a divagar... Disse que ele tinha um velho amigo ali em S. Jerônimo, que sabia tudo de lanchas, e que com certeza nos daria socorro se soubesse que ele estava por ali, e tal e coisa... Que fazia muitos anos que não falava com ele... E que o cara corria de lancha nos idos de mil novecentos e lá vai te virando... E isso, e aquilo...
Não parava mais de contar as histórias sobre o amigo dele, um tal de Darcy, com aquele saudosismo típico dos causos que o Joel conta.

Pô... Será que não dava pra gente mudar o tom da conversa e passar a discutir algo que prestasse pra resolver essa encrenca, em vez desses papos de Ah se o meu amigo soubesse que eu estou aqui... Comecei a ficar aporrinhado com aquele papo furado.
Dali a pouco o Adroaldo disse pro Joel:

Pergunta praquelas senhoras ali se conhecem ele.

Más credo! E essa agora?...
O Joel e o Adroaldo pareciam dois doidos conversando. Bem coisa de pescador para mandar o cara perguntar uma coisa dessas... É que nem jogar uma linha n'água, em qualquer lugar, e acreditar que vai pescar alguma coisa que preste. Mas ora, "pergunta pra elas!"...

Hein?, indagou o Joel surpreso ao comandante, como que insinuando que não ia adiantar nada. Dar um tiro na lua?
Eu jamais tentaria isso, e disse pra mim mesmo: temo bem mal arrumado... Um divaga e o outro ainda vai atrás! E isso que estavam sãos...


Cmte. Adroaldo, Darcy, Joel e o Baixinho

O Joel foi lá pra proa caminhando de lado, devagarinho, no estreito convés lateral da Aline, de cabeça baixa, relutante, sem vontade. Eram duas senhoras e uma criança que acabavam de chegar à beira do rio.

A Senhora conhece o "Darcy da relojoaria"?
Quando ela respondeu que sim, o Joel fez uma pausa, incrédulo. Eu e o Adroaldo ficamos espichando as orelhas lá dentro da cabine pra tentar ouvir a conversa.

E a senhora sabe o telefone dele?
Ela passou o número do celular, de cor, na hora!

O Adroaldo e eu na cabine começamos a rir. Não... Não é possível... O Joel descobriu o cara sem sequer desembarcar da lancha!!!
Fiquei chateado com meu ceticismo.

Navegando com um motor à vante, e outro à ré
Pra encurtar a história, a senhora que passou o telefone era esposa do Darcy, que estava pescando rio acima, bem próximo dali. Tínhamos passado pela lancha dele, sem saber. Em poucos minutos apareceu o cara, e em seguida trouxe um outro mecânico, o "Baixinho", e começaram a trabalhar.

O hélice sobressalente e invertido foi instalado no lugar do danificado e viemos até Porto Alegre com um motor à vante e outro à ré, em velocidade de cruzeiro, sem qualquer outro problema.

 

Fotos da navegada a Rio Pardo

 

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(*) Fora do contexto do site

A Ilha do Fanfa, no Jacuí, foi cenário de batalha da Revolução Farroupilha
Na Revolução Farroupilha os Farrapos sofreram um duro revés perto de Porto Alegre, que sitiavam. Vencidos em 4 de outubro de 1836, na Ilha de Fanfa (veja mapa abaixo), o exército rebelde de 1.000 homens se dispersou e seu comandante, o General Bento Gonçalves da Silva, foi preso na ilha e levado para a Fortaleza da Laje, no Rio de Janeiro, e daí para um forte na Bahia de onde fugiu e acabou de volta aos pampas.

Saiba Mais sobre as peripécias de Bento Gonçalves:
Travaram-se na Ilha do Fanfa (veja mapa acima) desesperados combates durante os dias 02, 03 e 04/10/1836, combates por terra e por água, a canhão, fuzil e espada, corpo a corpo, morrendo cerca de duzentos combatentes. Por fim, Bento Manuel propõe a Bento Gonçalves uma rendição honrosa, contanto que os revolucionários entreguem as armas. No momento de entregá-las, muitos soldados preferem jogá-las ao rio. Bento Gonçalves, Onofre Pires, Tito Lívio Zambecari e outros são presos e enviados ao Rio.

O Conde Zambecari, que era italiano, foi expulso do país. Bento Gonçalves, que podia ter fugido da prisão juntamente com Onofre Pires e Afonso Corte Real, não o fez para não comprometer seu companheiro de cela, o gordo Pedro Boticário, que não passava pelo buraco aberto na janela da prisão.

Foi então transferido para uma fortaleza na Bahia onde escapou de morrer envenenado, porque, desconfiado, deu a comida a um cão e a um gato, que morreram em seguida.
Na manhã do dia 10/09/1837, ao banhar-se no mar, fugiu a nado até uma canoa de pescadores amigos, que o levaram à ilha de Itaparica, onde, pela primeira vez, provou água de côco.

Depois de longos dias de perseguição, mandou avisar que embarcara para os Estado Unidos, cessando então a perseguição. Embarcou num navio estrangeiro. Aportou em Santa Catarina e daí, por terra, chegou a Viamão.

Enquanto isso os oficiais da república, reunidos em Piratini, no dia 06/11/1836, constituíam o governo republicano, sendo eleito presidente Bento Gonçalves, empossado no dia 16 no seu alto cargo de chefe da República Rio-Grandense.

Na viagem que Bento Gonçalves fizera a cavalo pelo litoral, entre Santa Catarina e Viamão, ocorreu um fato pitoresco. Desejando trocar o seu cavalo cansado, chegou-se a uma estância e, sem dar-se a conhecer, pediu um cavalo. A velhinha que o atendeu disse:

- Fui rica, hoje sou pobre. Dei tudo que pude à revolução. As forças legais levaram-me o resto. Na estância, só tenho um cavalo para todo o serviço. Esse eu não dou. Só darei ao General Bento Gonçalves, se ele chegasse aqui. Guardo-o para ele, quando voltar ao Rio Grande.
- Minha senhora - respondeu o chefe farroupilha - Bento Gonçalves, sou eu.
O texto sobre Bento Gonçalves foi compilado a partir de diversos fontes.

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(**) "passagem estreita", segundo Aurélio.


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