Sejamos
razoáveis!
Indignação com atitudes do júri
da ISAF
Danilo
Chagas Ribeiro
O BRA 68 (ao centro) indo para cima do BRA 55 (Foto de Marcelo Hoffmeister) |
Porto
Alegre, Fev 2004
O
veleiro da classe Soling, numeral BRA 55, timoneado pelo gaúcho Ernesto
A. Neugebauer (ex-campeão mundial de Snipe na Dinamarca) montou em
segundo lugar a bóia
da primeira perna da regata
final do Campeonato Mundial de Soling de 2004, realizado em Porto Alegre de
21 a 31 de Janeiro.
Ao aproximar-se da bóia seguinte, houve colisão com o barco BRA 68, o que fez rebentar a ferragem de fixação do stay1de proa junto ao convés do barco gaúcho.
O
júri internacional negou-se a apreciar a
solicitação de desclassificação do BRA68 e o pedido
de reparação encaminhados
à comissão de protestos
pelo BRA 55, alegando
sinalização
de protesto tardia. A reabertura
foi solicitada apresentando testemunhas. Baseado em artigo
da regra internacional, de interpretação totalmente subjetiva,
o júri ratificou a decisão.
A reparação requerida, no entanto, não obrigava sequer
exibir a bandeira.
Atitudes do júri como esta, dentre outras verificadas na condução deste caso, podem resultar em prejuízos ao esporte à vela e à imagem da Federação Internacional.
Requisitos
do Protesto
A regra determina que uma bandeira vermelha seja exposta na embarcação
prejudicada "na primeira oportunidade razoável" (regra
61.1(a) da ISAF2). Na grande maioria dos casos de protesto não
há danos e a sinalização pode ser feita imediatamente.
Não foi o caso. A
tripulação coerentemente preocupou-se com a segurança
em primeiro lugar: queda de mastro é risco de vida. É mais do
que razoável pensar assim.
Sem condições de continuar competindo, a tripulação do BRA 55 amarrou provisoriamente o stay no suporte da ferragem danificada a fim de evitar a queda do mastro. Inconformados com a atitude do BRA 68, expuseram a bandeira de protesto. Nada mais restava a não ser tomar o rumo do Veleiros do Sul lentamente, evitando acidente com o mastro, e apresentar o protesto por escrito. Até então o BRA55 havia conquistado o 8º lugar no campeonato, dentre 28 participantes, e tinha boas chances de melhorar esta posição.
Pagando
a pena
A tripulação do BRA 68 reconheceu o erro cometido ao pagar por
ele espontaneamente, fazendo os 720º3, algum tempo após
a colisão. No entanto,
a regra 44.1 diz que em provocando avaria grave, o barco não poderia
continuar competindo.
Consertar
a pane x sinalizar protesto
Quando ocorre uma pane é
preciso avaliar rapidamente sua importância, verificar se é possível
solucioná-la de alguma forma, resolver como improvisar o conserto,
catar e ajeitar material a bordo para a manutenção, decidir
se vai continuar competindo, e ainda sinalizar o protesto.
Na visão de um leigo é perfeitamente plausível dar conta do recado: enquanto um "conserta" o barco, um outro sinaliza, e ainda sobra mais um para ficar abanando para chamar a atenção da comissão de regatas. Na verdade, toda a atenção dos tripulantes fica voltada à solução da emergência. Não por alguma regra, mas por instinto de sobrevivência. Pelo bom senso.
Mesmo que se julgue não ter havido tanto risco de vida, é fácil convir que a sinalização de protesto tem que vir depois dos reparos mínimos para evitar a queda de um mastro. É mais do que razoável pensar assim, até porque a regra não define um prazo para a exibição da bandeira.
O "espírito
da regra"
Segundo Nelson Horn Ilha, o juiz Chris Simon, presidente do júri do
campeonato, informou que viu a bandeira de protesto ser exibida no BRA 55,
mas que considerou a exposição tardia. Nelson Ilha, ativo juiz
internacional da ISAF que estava competindo com seus filhos no Soling 2004,
disse ainda que aproximadamente 90% dos casos de pedido de reabertura são
ouvidos. Não quer dizer que sejam reabertos ou que, se forem reabertos,
mudem a decisão inicial.
Entendo que a aplicação de uma regra contendo determinações subjetivas ou não quantificadas como a em questão, implica na disponibilidade de juizes que a interpretem razoalvelmente. Certamente prevendo casos como o ocorrido, em que a tripulação tem bem mais o que fazer antes de levantar uma bandeira, a regra não estabelece um limite de tempo. Fica a cargo do juiz decidir, subjetivamente.
Indaguei a Boris Ostergren, também juiz internacional da ISAF, velejador inveterado e que também competiu no Soling 2004, qual é o "espírito" do item da regra que obriga a exibição da bandeira na primeira oportunidade razoável . A resposta foi que a regra pretende precaver motivações de protestos estimuladas por fatos não diretamente ligados à ocorrência.
À título de
exemplo, pode-se citar possíveis confabulações logo após
o término de uma regata, já diante da informação
da posição de chegada de outros participantes.
Assim sendo, parece claro que a sinalização do protesto alguns minutos após a ocorrência do fato gerador não altera seu mérito.
Juizes
x árbitros
Árbitros encarregam-se de
fiscalizar as infrações cometidas durante a regata. Aos juizes
da comissão de protesto cabe receber e julgar os protestos.
Segundo Nelson Ilha, o campeonato não previa a participação
de árbitros.
Inexistência
de "Fato Novo"
Ignorando que os juizes tivessem visto a sinalização, o BRA
55 apelou da decisão, apresentando testemunhas que viram a bandeira
exposta.
Segundo ainda Boris Ostergren, para que um júri considere a reabertura de um pedido de reparação é necessário que haja um fato novo. Como os juizes viram a bandeira exposta, a apresentação das testemunhas pelo BRA 55 foi considerada inócua.
Peso do
Júri Internacional
Decisões de um júri internacional são inapeláveis.
Se fôssemos comparar o assunto com a Justiça, seria como o Supremo
Tribunal julgar em primeira instância. Aliás, dizendo o óbvio,
os juízes e a justiça esportiva que aqui comentamos nada tem
a ver com Magistrados nem com a Justiça. Que o termo juiz portanto,
não seja interpretado equivocadamente.
Faltando
com a verdade
Ao ratificar a decisão de invalidar o protesto, o presidente do júri,
Sr. Chris Simon, declarou que "Todos os membros do Júri Internacional
concordam que a bandeira de protesto foi exposta pelo BRA55 porque todos os
membros do Júri Internacional a viram.".
A perna da raia era de 1,8 milhas náuticas. O juiz norueguês Egil Wond estava a bordo do Horizonte enquanto o protesto estava ocorrendo lá do outro lado da raia, a uns 4km de distância. Sei disso porque estávamos no mesmo barco ao mesmo tempo. A esta distância, indubitavelmente, seria impossível ver uma bandeira de protesto. Nem com um binóculo poderoso.
O Sr. Egil Wold consta como sendo um dos juízes do júri. E se ele não o abandonou ou não foi excluído, probabilidade esta que me parece ser extremamente improvável, então, infelizmente, tudo leva a crer que o presidente do júri, Sr. Chris Simon, faltou com a verdade em sua declaração.
Clima de
Festa
No momento em que o júri dava seu veredicto (20:34h de 31/jan/2004)
o clima no clube já era de festa. O casco de um um Optimist cheio de
cerveja gelada estava à disposição dos participantes
desde que chegaram. Logo em seguida alguns juizes já circulavam pelo
clube em clima de fim de campeonato, onde tocava música alta, conforme
pode-se notar vagamente no vídeo indicado mais adiante.
Todos queriam comemorar. Quando há protesto na regata do último dia de um campeonato, o início da festa pode atrasar por causa do julgamento dos protestos. Protestantes e protestados, bem como os juizes, torcem para que não hajam protestos no último dia, e em ocorrendo, que tudo se resolva rapidamente para que também eles possam ir para a festa o quanto antes.
Nas competições regionais ocorridas aqui em Porto Alegre ao longo do ano, os juizes locais têm julgado o que aparece para julgar, independentemente do clima de festa. Creio que seja assim em todo o mundo... Não dá nem pra imaginar outra coisa!
Juiz,
árbitro ou testemunha?
Voltando a considerar o que disse Nelson
Ilha sobre a inexistência de árbitros neste campeonato, que papel
desempenhavam os juizes do campeonato ao testemunhar a sinalização
do protesto? Eram juizes, árbitros ou meras testemunhas? Como juizes
não fiscalizam, e não haviam árbitros, poderiam ser considerados
apenas testemunhas, tanto quanto as outras três apresentadas?
Certamente esta idéia pode ser contestada porque, sendo o item da regra totalmente subjetivo, um juiz não precisa talvez aceitar uma testemunha contra o que ele próprio testemunhou e interpretou diferentemente.
O juíz Egil Wold, enquanto a bordo do Horizonte, portava um gravador de áudio (foto) ao qual falava volta e meia, principalmente enquanto os barcos contornavam a bóia.
Não entendi o que
ele falava ao gravador pois o fazia em língüa que eu não
entendia. Imagino que, a exemplo de outros juízes, segundo fui informado,
ele registrava o numeral de cada barco que passava, e informações
que lhe parecessem relevantes.
Ainda conforme eu soube, as informações gravadas serviriam como
subsídio em possíveis julgamentos de protestos.
Lucas, Lique e Ernesto |
Discussão
sem nexo
Quando souberam que o júri
indeferiu a reabertura do pedido de reparação, tripulantes do
BRA55 e o juiz norueguês Egil Wold discutiram. Parte desta conversa
que foi gravada.
Em uma tradução livre, o diálogo de Lucas Ostergren (tripulante do BRA 55) com o juiz norueguês Egil foi algo assim:
<Lucas> [Devíamos
ter providenciado na]bandeira e deixar o mastro cair?
<Juiz> Vocês
não poderiam ter consertado o mastro em curso. [Risos
irônicos...]
<Lucas> Mas nós fizemos isso! Nós fizemos!...
...
<Juiz> Haviam 3 pessoas no barco e uma poderia ter feito a faina da
bandeira (flag job).
Esta é nossa decisão, goste V. dela, ou não.
Até aqui parece que a discussão decorre da interpretação do que seja a "primeira disponibilidade razoável". Lucas apegou-se ao fato de que tinham que consertar o mastro antes de se preocupar com a bandeira.
Não me parece que constatar a disponibilidade de mão de obra à bordo, como alegou o juiz norueguês, tenha sido o aspecto mais importante na questão. Muito mais relevante certamente seria constatar as más condições de pensar em bandeira em poucos segundos em uma situação daquelas.
Ao afirmar que o mastro não poderia ser consertado, o Sr. Egil inferiu o quê? Que a tripulação não poderia ter feito o que fez como precaução para mantê-lo em pé? Ou que Lucas não dizia a verdade?
Talvez, ao alegar aspectos como estes, o juiz possa ter diminuído a importância da decisão do júri, como um todo. Não me parece ser adequado a um juiz integrante do júri tecer as considerações pessoais que o norueguês fez. Pouco profissional e nada simpático.
Velejador
não é cowboy!
Ao
dizer que um dos tripulantes poderia ter sinalizado enquanto os outros consertavam,
induz a pensar que se tivessem sinalizado antes, o protesto seria aceito.
Mas "antes" é quanto? Cinco segundos antes? Um minuto?...
E por acaso o juiz disparou um cronômetro no momento da colisão e passou a contar tempo? Certamente, não, até porque não haveria parâmetro oficial para comparar o tempo medido. Então, como um juiz pode saber qual o tempo limite?
Ernesto imagina que podem ter levado em torno de 2 minutos para sinalizar. Dependia apenas da cabeça do juiz que viu, decidir subjetivamente se era tempo demais, ou não.
É de se imaginar que em algum valor lido, ou em alguma sensação de passagem de tempo ele(s) deve(m) ter se fixado. Mas teria(m) comparado esta sensação com o quê, já que não há limite prescrito?
Velejador não é cowboy de filme, nem regata é o farwest para se ter que navegar com bandeira em um colder na cintura, pronta para ser acionada. Ao exigir protestos imediatos dos velejadores que se acham prejudicados, poderia-se subentender um velado estímulo a se navegar com a mente armada, com tolerância zero, e com a guerra no tapetão em mente.
Não é por aí... Para que se tenha uma noção de onde isso pode chegar, há poucos meses aqui no Guaíba, um velejador de alto nível foi chamado para substituir um tripulante em uma regata, sem que a comissão fosse avisada por escrito. A falha na formalidade foi a causa oficial do protesto de competidor que viu-se prejudicado pelo aumento de performance do outro. Em revanche, o protestante foi protestado por ter acendido as luzes de navegação após o pôr-do-sol. Guerra de tapete. Ambos foram desclassificados. O mal-estar gerado durou meses no meio. O esporte perdeu, e um dos envolvidos vendeu o barco logo em seguida.
Como diz Nelson Ilha, "protestar não é ofender". Entendo que seja um direito. É uma defesa. O problema é andar com arma na cintura e na mente. Que a atitude do júri internacional do Soling 2004 não sirva de exemplo.
Protesto
x Reparação
O BRA 55 pediu Reparação, por escrito, além de ter sinalizado
o Protesto. Para pedir reparação não
precisava exibir bandeira alguma: a regra 62.2 diz que a bandeira vermelha
não é requerida para a solicitação de reparação.
A regra 69.1(a) diz que "A Comissão de Protesto pode convocar uma audiência quando, por sua própria observação ou informação recebida, entender que um competidor pode ter cometido grave infração a uma regra, às boas maneiras ou esportividade, ou causado má reputação ao esporte".
A Recomendação às Comissões de Protesto L4 reza que a comissão deve confirmar se a "sua interpretação das regras pode ter sido errada". Em seguida, diz: "esteja disposto a aceitar a possibilidade de um erro da comissão".
Não houve manifestação
do júri quanto à impossibilidade de julgar o pedido de reparação
pela falta de sinalização adequada do protesto. Além
disso, a própria comissão poderia ter solicitado a reparação:
A regra 60.3(b) afirma que a Comissão de Protesto pode "convocar
audiência para considerar uma reparação", ou (c)
"agir de acordo com a regra 69.1(a)".
O pior de
tudo
Por trás de toda essa celeuma,
há que se considerar que o pedido de reparação não
poderia ser julgado sem que fosse constatada causa que o justificasse. A causa
foi a colisão do BRA68 contra o BRA55. Mesmo tendo o BRA68 pago a pena,
teria que ser desclassificado, já que a infração cometida,
segundo a regra 44.1, foi grave (alijou o competidor). O pedido de reparação
não requer bandeira exposta.
Em Resumo
Certamente esta não é
a primeira decisão de um júri a gerar controvérsia. Isso
parece vir do tempo em que o Rio Guaíba ainda era arroio. No entanto,
tudo indica que a decisão do júri do campeonato mundial de Soling
em Porto Alegre permanecerá sem entendimento razoável.
- Um barco foi efetivamente
prejudicado. O barco que o prejudicou, pagou pena espontaneamente mas deveria
ter sido desclassificado.
- O protesto foi efetuado, conforme reconheceu o presidente do júri.
- A alegação de exposição tardia da bandeira baseia-se
em item de interpretação inegavelmente subjetiva. O "espírito
da regra" parece não ter sido levado em conta.
- Não encontrei na regra um item que diga que um pedido de reparação
tenha que ser precedido de um protesto, mesmo sendo evidente que para acatar
o pedido, o júri se baseará em uma infração comprovada.
O júri sequer comentou sobre o pedido de reparação.
Além disso:
- Aceitar o exame do pedido
de reparação não significava concordar com o que expunha,
embora significasse maior disponibilidade de tempo dos juizes.
- Tratava-se de uma competição mundial, relevante, em que se
poderia esperar uma conduta esmerada dos juízes.
Considerando tudo isso, lamento a atitude dos juizes da ISAF designados a servir no Campeonato, por não terem julgado o mérito do pedido de reparação, a partir de alegada falha na forma, mais precisamente de apenas um aspecto da forma, regida por regra tão subjetiva. Não creio que tenha sido atitude razoável do júri.
|
Sejamos
razoáveis! Em tudo.
Não perguntei aos juizes internacionais
gaúchos citados o que fariam no lugar dos juizes do campeonato, porque
certamente eu os constrangeria.
Na opinião de outros
renomados velejadores com quem falei, entretanto, as atitudes dos juizes estrangeiros
em questão podem, além de desestimular a prática do esporte,
turvar a imagem da Federação Internacional de Vela.
Puxar conversa com bonitas mulheres brasileiras em trajes de banho na sombra do convés do Horizonte (onde eu estive), e ficar bebendo cerveja durante a realização do campeonato mundial é mais fácil.
Também eu estou levantando minha bandeira vermelha tarde demais?
Ou deveria eu aqui desfraldá-la completamente?
Sejamos razoáveis!
Danilo Chagas Ribeiro
Assista o vídeo com a argumentação do juiz
___________
(1) stays, ou estais, são
os cabos de aço que mantém o mastro em pé. O estai de
proa impede o mastro de cair para trás, onde estão os tripulantes.
(2) ISAF significa International Sailing Federation, Federação
Internacional de Vela, a entidade máxima da Vela.
(3) 720 graus significa dar duas voltas completas antes de prosseguir.
Sobre o autor e sobre este artigo
Danilo Chagas Ribeiro, 52 anos, é
velejador desde 1967 e participou de várias regatas em diferentes classes.
Em 2002 fundou o site www.popa.com.br para a divulgação de assuntos
náuticos. O site aborda aspectos positivos da náutica, mas em
situações como esta, não é possível apenas
contemplar.
A publicação deste
artigo teve por origem a indignação de diversos velejadores,
incluído aí o autor, desgostosos do tratamento do júri
internacional da ISAF em relação ao caso.
Opinião estritamente
pessoal
O presente artigo é fruto de investigação, coleta
de material, entrevistas e pesquisa às regras da ISAF conduzidas pelo
autor. Nenhuma sociedade nem entidade esportiva opinou ou está envolvida
na opinião aqui manifestada.
Fontes consultadas, além
das citadas no texto: www.sailing.org e velejadores de Porto Alegre.
|