O ferrão que dói como um punhal 02 Dez 2008 Com cerca de 10 centímetros de comprimento, o ferrão da arraia fluvial é uma estrutura óssea em forma de faca serrilhada, recoberto por um tecido glandular que se rompe no momento da ferroada e libera o veneno no organismo da vítima. O aumento desse tipo de acidente nos últimos anos levou uma equipe de pesquisadores paulistas a investigar as características dos ferimentos e do próprio veneno desse peixe, que até alguns anos atrás não freqüentava o Tietê. Análises coordenadas pela biomédica Kátia Cristina Bárbaro, do Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan, mostraram que o veneno da arraia fluvial (Potamotrygon falkneri) é mais tóxico que o de uma arraia marinha encontrada em todo o litoral brasileiro: a Dasyatis guttata, mais conhecida como arraia-bicuda ou arraia-prego. Para avaliar os efeitos de uma ferroada, a equipe de Kátia aplicou doses iguais de veneno de cada uma dessas espécies em grupos diferentes de camundongos. Um dia após aplicar o veneno da arraia fluvial em um grupo de quatro camundongos, apenas dois continuavam vivos. No segundo dia, todos os camundongos desse grupo estavam mortos. Já os roedores que haviam recebido o veneno da arraia-bicuda continuavam vivos. Os testes mostraram ainda que tanto o veneno de uma como o de outra espécie provocaram inchaço e dor intensa. Só a penetração do ferrão, aliás, já causa um ferimento profundo que arde como fogo. Mas é o veneno que contribui para que a dor, comparável à de uma facada, estenda-se por até 24 intermináveis horas após a ferroada. Não bastassem esses efeitos nada agradáveis, o veneno da arraia fluvial também causa a morte do tecido (necrose) na região da ferroada, além de lesão muscular. Em geral são necessários até três meses para a cicatrização completa do ferimento. Kátia também descobriu que o veneno da Potamotrygon falkneri parece se espalhar mais facilmente no organismo. É que um de seus componentes é a enzima chamada hialuronidase, que ajuda a dispersão das toxinas. A hialuronidase dissolve um composto gelatinoso – o ácido hialurônico – que mantém unidas as células dos tecidos. Estudando a morfologia do ferrão e o tecido que o envolve, a equipe do Butantan, com o auxílio de pesquisadores do Laboratório de Biologia Celular, constatou que a arraia de água doce também pode liberar maior quantidade de veneno em uma ferroada porque seu ferrão é todo recoberto por um tecido glandular – produtor de veneno. Já no ferrão da arraia marinha o tecido glandular está concentrado em apenas dois pontos. Marcela da Silva Lira, bióloga do grupo de Kátia, tenta atualmente produzir um soro capaz de combater a atividade do veneno da arraia de água doce e reduzir seus efeitos. Embora ainda não se tenha chegado ao antídoto, há uma boa notícia. Nos testes feitos no Butantan, o veneno da Potamotrygon e o da Dasyatis estimularam o organismo de coelhos a produzir anticorpos. “É um sinal de que o soro pode neutralizar o veneno das arraias”, diz Kátia. Origem remota - Apesar da diferença aparente – a Dasyatis guttata tem o corpo em forma de triângulo e pode atingir o triplo do tamanho da arraia de água doce –, imagina-se que essas duas espécies tiveram um ancestral comum que viveu no mar e chegou ao continente entre 20 milhões e 10 milhões de anos atrás, quando o oceano Atlântico ocupava parte das atuais regiões Sul e Centro-Oeste do país. Até pouco tempo atrás, as quase 20 espécies de arraias fluviais existentes no Brasil eram encontradas apenas nos rios Paraná, Paraguai, Araguaia, Tocantins e na bacia amazônica. Acredita-se que a construção de barragens das hidrelétricas da bacia dos rios Paraná e Tietê nas últimas três décadas tenha favorecido a migração das arraias até pelo menos a região de Presidente Epitácio e Castilho, no interior de São Paulo. Foram os acidentes com a P. falkneri no alto rio Paraná que chamaram a atenção dos médicos João Luís Costa Cardoso, do Hospital Vital Brazil, e Vidal Haddad Júnior, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, para a chegada desse peixe ao interior paulista. Cardoso e Haddad decidiram procurar Kátia após verificar que as pessoas ferroadas pela arraia fluvial desenvolviam necrose semelhante à causada pelo veneno da aranha-marrom (Loxosceles sp), especialidade da pesquisadora. Desse primeiro contato para cá, Kátia tornou-se uma das coordenadoras da rede que acompanha os acidentes com a arraia de água doce em três estados – Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo – e investiga o impacto ambiental provocado por esse peixe. Em colaboração com a bióloga Patrícia Charvet-Almeida, Kátia também estuda o veneno de arraias do Pará. Enquanto não se produz um antídoto para o veneno das arraias, os pesquisadores aprendem a amenizar a dor das ferroadas com os ribeirinhos, que costumam mergulhar a perna ou o braço ferido pelo ferrão em uma bacia com água quente. A água quente diminui a dor porque o veneno da arraia é sensível ao calor, como Kátia comprovou em experimentos de laboratório. Essa estratégia simples, porém, não impede a necrose na região do ferimento – no caso dos pescadores, geralmente a mão ou o braço, atingidos quando tentam livrar o peixe da rede ou do anzol. Incomodados pelos acidentes ou ainda pouco habituados ao peixe recém-chegado, os ribeirinhos e freqüentadores do Tietê não apreciam a presença das arraias nem sua carne, embora seja muito saborosa. Comentários: info@popa.com.br |