O ferrão que dói como um punhal
Veneno de arraia encontrada no rio Tietê é mais tóxico que o de alguns exemplares marinhos
Agência FAPESP

02 Dez 2008
Q
uem freqüenta as praias do rio Tietê no interior de São Paulo precisa prestar atenção onde pisa. Há cerca de três anos banhistas e pescadores vêm dividindo esse espaço de lazer com arraias fluviais que, às vezes, causam dolorosos acidentes. Com o corpo em forma de disco, esse peixe de até 30 quilos costuma se enterrar na lama nas regiões mais rasas do rio. Quando um turista distraído pisa seu corpo, recebe uma ferroada. Não que a arraia seja agressiva (a morte do zoólogo e apresentador de TV australiano Steve Irwin, que levou uma ferroada fatal no peito desferida por uma arraia marinha, deve ser encarada como um evento raro e extremo). Mas o pisão no animal aciona um mecanismo involuntário de defesa do peixe, que agita seu longo rabo musculoso numa chicoteada e acaba enterrando o ferrão na perna ou no pé do banhista.

Com cerca de 10 centímetros de comprimento, o ferrão da arraia fluvial é uma estrutura óssea em forma de faca serrilhada, recoberto por um tecido glandular que se rompe no momento da ferroada e libera o veneno no organismo da vítima. O aumento desse tipo de acidente nos últimos anos levou uma equipe de pesquisadores paulistas a investigar as características dos ferimentos e do próprio veneno desse peixe, que até alguns anos atrás não freqüentava o Tietê.

Análises coordenadas pela biomédica Kátia Cristina Bárbaro, do Laboratório de Imunopatologia do Instituto Butantan, mostraram que o veneno da arraia fluvial (Potamotrygon falkneri) é mais tóxico que o de uma arraia marinha encontrada em todo o litoral brasileiro: a Dasyatis guttata, mais conhecida como arraia-bicuda ou arraia-prego. Para avaliar os efeitos de uma ferroada, a equipe de Kátia aplicou doses iguais de veneno de cada uma dessas espécies em grupos diferentes de camundongos.

Um dia após aplicar o veneno da arraia fluvial em um grupo de quatro camundongos, apenas dois continuavam vivos. No segundo dia, todos os camundongos desse grupo estavam mortos. Já os roedores que haviam recebido o veneno da arraia-bicuda continuavam vivos. Os testes mostraram ainda que tanto o veneno de uma como o de outra espécie provocaram inchaço e dor intensa. Só a penetração do ferrão, aliás, já causa um ferimento profundo que arde como fogo. Mas é o veneno que contribui para que a dor, comparável à de uma facada, estenda-se por até 24 intermináveis horas após a ferroada.

Não bastassem esses efeitos nada agradáveis, o veneno da arraia fluvial também causa a morte do tecido (necrose) na região da ferroada, além de lesão muscular. Em geral são necessários até três meses para a cicatrização completa do ferimento. Kátia também descobriu que o veneno da Potamotrygon falkneri parece se espalhar mais facilmente no organismo. É que um de seus componentes é a enzima chamada hialuronidase, que ajuda a dispersão das toxinas. A hialuronidase dissolve um composto gelatinoso – o ácido hialurônico – que mantém unidas as células dos tecidos.

Estudando a morfologia do ferrão e o tecido que o envolve, a equipe do Butantan, com o auxílio de pesquisadores do Laboratório de Biologia Celular, constatou que a arraia de água doce também pode liberar maior quantidade de veneno em uma ferroada porque seu ferrão é todo recoberto por um tecido glandular – produtor de veneno. Já no ferrão da arraia marinha o tecido glandular está concentrado em apenas dois pontos.

Marcela da Silva Lira, bióloga do grupo de Kátia, tenta atualmente produzir um soro capaz de combater a atividade do veneno da arraia de água doce e reduzir seus efeitos. Embora ainda não se tenha chegado ao antídoto, há uma boa notícia. Nos testes feitos no Butantan, o veneno da Potamotrygon e o da Dasyatis estimularam o organismo de coelhos a produzir anticorpos. “É um sinal de que o soro pode neutralizar o veneno das arraias”, diz Kátia.

Origem remota - Apesar da diferença aparente – a Dasyatis guttata tem o corpo em forma de triângulo e pode atingir o triplo do tamanho da arraia de água doce –, imagina-se que essas duas espécies tiveram um ancestral comum que viveu no mar e chegou ao continente entre 20 milhões e 10 milhões de anos atrás, quando o oceano Atlântico ocupava parte das atuais regiões Sul e Centro-Oeste do país. Até pouco tempo atrás, as quase 20 espécies de arraias fluviais existentes no Brasil eram encontradas apenas nos rios Paraná, Paraguai, Araguaia, Tocantins e na bacia amazônica. Acredita-se que a construção de barragens das hidrelétricas da bacia dos rios Paraná e Tietê nas últimas três décadas tenha favorecido a migração das arraias até pelo menos a região de Presidente Epitácio e Castilho, no interior de São Paulo.

Foram os acidentes com a P. falkneri no alto rio Paraná que chamaram a atenção dos médicos João Luís Costa Cardoso, do Hospital Vital Brazil, e Vidal Haddad Júnior, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu, para a chegada desse peixe ao interior paulista. Cardoso e Haddad decidiram procurar Kátia após verificar que as pessoas ferroadas pela arraia fluvial desenvolviam necrose semelhante à causada pelo veneno da aranha-marrom (Loxosceles sp), especialidade da pesquisadora. Desse primeiro contato para cá, Kátia tornou-se uma das coordenadoras da rede que acompanha os acidentes com a arraia de água doce em três estados – Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo – e investiga o impacto ambiental provocado por esse peixe. Em colaboração com a bióloga Patrícia Charvet-Almeida, Kátia também estuda o veneno de arraias do Pará.

Enquanto não se produz um antídoto para o veneno das arraias, os pesquisadores aprendem a amenizar a dor das ferroadas com os ribeirinhos, que costumam mergulhar a perna ou o braço ferido pelo ferrão em uma bacia com água quente. A água quente diminui a dor porque o veneno da arraia é sensível ao calor, como Kátia comprovou em experimentos de laboratório. Essa estratégia simples, porém, não impede a necrose na região do ferimento – no caso dos pescadores, geralmente a mão ou o braço, atingidos quando tentam livrar o peixe da rede ou do anzol. Incomodados pelos acidentes ou ainda pouco habituados ao peixe recém-chegado, os ribeirinhos e freqüentadores do Tietê não apreciam a presença das arraias nem sua carne, embora seja muito saborosa.
Fonte: Agência FAPESP - Foto Kátia Cristina Bárbaro

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