Navegação no Rio Caí
No tempo das "Gasolinas"
Publicado em "Fato Novo"

Dona Herta Fuchs faleceu aos 94 anos e viveu toda a sua vida na localidade de Matiel. Ela foi casada com Arno Fuchs, um navegante, dono de embarcação. Herta contava suas memórias do tempo em que navegar pelo Caí era uma atividade semelhante à que hoje é desenvolvida pelos caminhoneiros que levam produtos da nossa agricultura para vender na CEASA, em Porto Alegre.

Arno Fuchs nasceu em 1911 e era filho de Carlos Fuchs, que já se dedicava à navegação e comércio de produtos coloniais. Pedro Fuchs, tio de Arno e irmão de Carlos, era proprietário de um barco a vapor. Ele morava no Matiel mas tinha depósitos junto ao porto do Caí, destinados a armazenar alfafa e batata.

Quando jovem, Arno trabalhou na embarcação de seu pai. Ela se chamava Rio Caí e era uma gasolina, ou seja, um barco com motor a gasolina. O barco era de madeira e tinha, além do compartimento para transporte de cargas, uma cozinha e um quarto com cama de casal, mais uma cama de solteiro. Na casa de máquinas, que ficava no porão, havia mais uma cama que era usada pelo maquinista. Este ficava sempre no porão, junto das máquinas que tinha o dever de cuidar.

Quando fez 18 anos, Arno obteve a licença para pilotar. Só quem tinha esta licença podia conduzir barcos, assim como hoje se exige a carteira de motorista para dirigir automóveis ou caminhões. Proprietário de barco que não era conduzido por um piloto licenciado era penalisado com multa.

Herta era filha do agricultor Felipe Fuhr, que tinha propriedade nas imediações do local onde hoje existe o Água Park. Também na localidade de Matiel, mas no município de Harmonia. Ele se dedicava ao plantio de alfafa, milho e mandioca, além da criação de porcos e vacas.

Herta e Arno casaram quando ela tinha 21 anos (ele era um ano mais velho). E ela passou a acompanhar o marido nas viagens de barco para Porto Alegre. O trapiche que eles usavam no Matiel ficava quase em frente ao cais do porto do Caí, porém do outro lado do rio. Ali, a partir das três e meia ou quatro horas da madrugada, chegavam carretas trazendo as mercadorias para serem levadas pelo barco a Porto Alegre. Principalmente frutas cítricas. Eles saíam do Matiel no início da manhã, depois de fazer o carregamento do barco com as frutas descarregadas das carretas. Este translado era feito em balaios carregados manualmente. Os agricultores vinham com suas carretas de localidades como Despique, Harmonia e até Tupandi. E vendiam seus produtos para os donos das gasolinas.

Estes, então, levavam a carga para Porto Alegre, onde chegavam por volta de quatro a cinco horas da tarde, depois de sete a oito horas de viagem. 15 a 20 gasolinas provenientes do Pareci e região costumavam atracar num local próximo ao armazém da firma Frederico Mentz (numa prainha no bairro Navegantes, em Porto Alegre).

A principal mercadoria levada pelos comerciantes/navegadores para a capital eram frutas: laranjas, bergamotas, lima e limão. Eventualmente, levavam também gaiolas com galinhas, junto com a carga de frutas. Fora da safra das frutas, as cargas mais comuns eram de lenha. Outros barcos costumavam levar mercadorias produzidas na região, como alfafa, feijão e batata. A banha era outro produto muito comercializado no Caí e exportado através da navegação fluvial.

A gasolina Rio Caí fazia suas viagens à capital uma vez por semana e era comum ficar por lá um ou dois dias, até que toda a carga fosse vendida.Os comerciantes de Porto Alegre dirigiam-se até o ancoradouro das gasolinas em carroças para fazer as compras. O que acontecia no início da manhã.

Naquela época funcionava a barragem Rio Branco, situada um pouco abaixo do Pareci. Com isto a navegação até o Caí e Matiel era facilitada nas épocas de seca, pois o nível do rio permanecia elevado mesmo nestas épocas em que o baixo nível das águas impediria a navegação. Dois homens operavam, manualmente, os mecanismos das comportas que permitiam a passagem dos barcos pela barragem. Cada um dos homens ficava em um lado do canal pelo qual passavam os barcos.

Por volta de 1940, Carlos Fuchs mandou fazer um barco novo, num estaleiro do bairro Navegantes, em Porto Alegre. Ele se chamava Boêmia, era de aço e tinha dois andares. Mas o barco não pôde ser utilizado por muito tempo, pois a barragem estragou, não recebeu manutenção, e o uso do Boêmia se tornou inviável. Carlos teve de vendê-lo e continuou seu negócio usando um barco menor (de menor calado). Dona Herta não tem lembrança de haver visto ou ouvido falar de dragagem no rio Caí. Sem a barragem e sem dragagem no rio, a navegação foi se inviabilizando aos poucos. Mesmo assim, até a década de 60 do século passado ainda transitavam gasolinas pelo Caí. Talvez não nos tempos de maior seca.

Herta acompanhava Arno Fuchs nas viagens a Porto Alegre e, muitas vezes, assumia o leme da embarcação enquanto o marido se ocupava de abastecer o motor com gasolina e óleo ou cumprir alguma outra tarefa no barco. Os filhos mais velhos do casal (Carlos, Adalberto, Ernesto e Paulo) também os acompanhavam nas viagens.

O declínio da navegação no curso superior do rio Caí (acima do porto de Montenegro) aconteceu com a melhoria das estradas e dos caminhões. Não era mais vantajoso para o citricultor levar a sua produção em carroça até o barco e nem para o comerciante de Porto Alegre ir buscar de carroça no atracadouro dos barcos no Guaíba. O comerciante de frutas, usando um caminhão, passou a buscar a fruta na propriedade do agricultor e a levá-la diretamente aos estabelecimentos comerciais em Porto Alegre e outras cidades da região metropolitana.

A falta de manutenção na barragem e, também, a não realização de dragagem no rio serviu para acelerar o processo. Mas o que realmente acabou com a navegação foi a construção da estrada asfaltada RS-122 até o Caí (já na década de 50) e, mais tarde, a RS-240 até Montenegro. O surgimento destas estradas, juntamente com a melhoria da qualidade e capacidade dos caminhões tornou obsoleta a navegação em gasolinas no curso superior do rio Caí (acima de Montenegro).
Fonte: Fato Novo
Colaboração: João Reguffe