Susto no Atlântico
Caravela fantasma
Mário Nicolau


Deram-nos o Manuel Boavida, cozinheiro da armada, para tratar os estômagos. O “perfil” do homem estava de acordo com a função e nas noites em alto mar, com ele zangado e a cuspir espuma, revelou-se fundamental na calmaria da cana do leme.
Juntaram-nos numa réplica da caravela Boa Esperança, construída com maestria em Vila do Conde. Destino: os “States”, na comemoração dos 500 anos da viagem memorável de Colombo. Navios escola de todo o mundo aceitaram o repto da organização e a nau portuguesa, com o comandante João, da Associação Portuguesa de Treino de Vela, foi exemplar.
Cá o rapaz, marinheiro de primeira viagem, sofreu muito. O tormento começou à saída de Porto Rico e terminou seis dias depois, com maçã e pão triturados a rigor para enganar o estômago e outro tanto de água tónica, que ainda hoje bebo com memorável satisfação. Pudera. Não fossem os poderes do quinino e este vosso amigo teria dado trabalho à marinha norte-americana, responsável pelo serviço de evacuação dos doentes. Mas não foi necessário e ao fim do período de repouso, cá o rapaz, que pelas milhas cumpridas recebeu diploma da Aporvela, já metia no bucho algum do bom whisky Cutty Sark, um dos patrocinadores da jornada atlântica. Curioso que o Cutty Sark foi, em 1869, um dos últimos veleiros do tipo “clipper” a ser construído. Permitiu aos ingleses de então “beber o primeiro chá da temporada”. Com a construção do canal de Suez, no Egipto, que liga o mar Mediterrâneo ao mar Vermelho, navios como o Cutty Sark tornaram-se inúteis.
Em 1895 foi vendido a Portugal pela empresa Ferreira e apesar de manter o nome original, era mais conhecido como “A Pequena Camisola” tradução da palavra escocesa “Cutty Sark”. Em 1916 foi restaurado em profundidade e mudou de nome, passando a chamar-se “Maria do Amparo”.
Porém, em 1922, o capitão Wilfred Dowman comprou o veleiro e devolveu-lhe o nome original. Em 1954 foi levado para Greenwich. Sofreu recentemente um devastador incêndio durante o processo de adaptação a museu. Adiante. Totalmente recuperado da “doença”, vivi na Boa Esperança vários episódios memoráveis. Um deles “meteu” russos e... um fantasma. No rádio da Boa Esperança ouviu-se um pedido de apoio técnico. A organização analisou as rotas e decidiu que seria a caravela portuguesa a resolver a avaria do veleiro russo. E lá fomos, num “112 envenenado”, já que na proa foi colocado um tripulante vestido com rigor “fantasmagórico”, acompanhado pelo soar ritmado do sino no castelo da popa. Ora, ao fim da tarde, e com o fantasma ao sabor da leve brisa, os camaradas russos bem cansaram as gargantas nas ondas da rádio, procurando identificar o “apoio” pedido. Mais tarde, confessaram que percorreram “os manuais de navegação que tinham a bordo”, mas, primeiro, e mal os binóculos apresentaram o “boy in white” na proa, não existiram dúvidas: cada elemento da tripulação escolheu o lado mais favorável e mergulhou no oceano, dando aos braços a todo o vapor. Não bateram nenhum recorde do mundo no estilo crawl, mas, garanto, foram complicados de “pescar” e só entraram na Boa Esperança quando viram o fantasma em trajes menores.
Fonte: Diário As Beiras, Coimbra

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