Susto na escuridão
À deriva, com rajadas de 40 nós
Danilo Chagas Ribeiro

24 Nov 2008
C
om a âncora quebrada e com um cabo enroscado no hélice, e ainda com rajadas de até 40 nós, à noite, só restava torcer para o Canibal não bater nas pedras da extremidade nordeste da Praia do Sítio, extremo sul do Rio Guaíba. Tecnicamente, havia outras opções para o veleiro à deriva, como usar a âncora de reserva, mas, na prática, os 3 minutos que se passaram entre conhecer a situação e encalhar na praia foram insuficientes para realizar tentativas.

Encalhar faz parte da navegação. Esse relato não pretende avaliar causas, mas apresentar a situação experimentada com o objetivo de prevenir e passar idéias do que pode ser feito para safar-se de um encalhe.

Ao chegarmos da Lagoa dos Patos, às 20:30h de 15 de novembro de 2008, encontramos o veleiro Safado fundeado na praia e trocamos rápidos comentários sobre o tempo, de passagem. Havia uma formação de nuvens escuras a sudoeste, sobre a lagoa. Fundeamos o Delta36 a uns 200 metros a sotavento do Safado e a outros 200 a barlavento da praia. O ferro foi baixado com a corrente disponível (30m), mais do que suficiente para os 2 a 3 metros de profundidade no local. O rio estava tranqüilo (foto).

Horas antes, o Texas,  um veleiro de 26 pés do Clube Náutico Tapense, entrara na Lagoa dos Patos. Tinha vindo a Porto Alegre dias antes, para participar do Cruzeiro do Bugio, e estava voltando para Tapes. Já com a ilha do Barba Negra no través, o comandante Marcos Boeira resolveu abortar a navegada devido às más condições do tempo, e voltou para o Guaíba.

Rajadas de 40 nós
O pôr-do-sol ocorrera às 20:00h. Ainda estava claro. A Praia do Sítio não seria o melhor abrigo para o vento de sudoeste, mas o pico de 18 nós previsto pela meteorologia seria plenamente suportável. No entanto, as rajadas chegaram a 40 nós, conforme leitura do Comandante João Boroni a bordo do Safado. Na mesma ocasião, o comandante Adriano Machado, do veleiro Passatempo, mediu picos de 45 nós na foz do Arroio Araçá, a 11 milhas de onde estávamos. Quando a frente entrou em Porto Alegre, a estação do Clube dos Jangadeiros registrou 36 nós de SW. Horas antes, a frente passara por Rio Grande, onde o Comandante Guto Vieira da Fonseca leu picos de 46 nós por mais de uma hora.

Mudança de planos
Para evitar o pernoite chacoalhando, decidimos navegar até a Praia da Faxina, um bom abrigo para aquele vento.
Eram quase 10 da noite quando decidimos partir. Consultamos o GPS e vimos que estávamos a umas 7 milhas da Faxina. Levaríamos um pouco mais de uma hora balançando até lá, mas dormiríamos melhor. Examinamos a rota ligeiramente. Navegaríamos pelo Canal do Junco, e sairíamos dele a bombordo, na bóia tal. Ligamos a luz da cruzeta para iluminar o convés de proa e saímos da cabine. Analisando posteriormente o track gravado no GPS, imagino que nesse momento a âncora já estivesse quebrada, sem que soubéssemos. O comandante Andreas Bernauer assumiu o leme. Fui para a proa para operar o guincho da âncora. Plinio Fasolo foi também.

Cabo enroscado ao hélice
No que chegamos ao convés, ouvimos o barulho de um motor de popa. Era o veleiro Texas aproximando-se pela popa. Depois de passar pela proa do Safado, o Texas passou por nós e foi até o outro canto da praia, onde tentou fundear, e estava voltando para o sul, passando bem perto do costado de bombordo do Canibal. Navegava com dificuldade contra o ventão. Ouvia-se aquele ruído típico do motor de popa variando de tom quando a rabeta entra e sai da água nas ondas. O veleiro arrastava um cabo de nylon flutuante. Na verdade, arrastava uma âncora Danforth. Procuravam afastar-se da costa, já que o Skorpio26 tinha garrado na tentativa de fundeio. No dia seguinte, Boeira disse que, enquanto arrastava a âncora, o Canibal estava indo para cima deles, garrando, sem que percebêssemos.

O Texas avançou uns dois comprimentos de barco para além da proa do Canibal, e não ia adiante. Volta e meia aparecia um "risco" na água, entre nós e o Texas, em meio às ondas agitadas. Plinio percebeu que era o cabo da âncora do Texas preso ao Canibal, e pediu que cortassem o cabo e amarrassem uma bóia para buscá-lo depois. E assim fizeram. Enquanto isso acontecia, o Canibal seguia garrando no rumo das pedras, sem sabermos.

À deriva
Finalmente fui suspender o ferro. Quando varri a água com a headlamp à vante do Canibal, não vi a corrente. Ela estava para trás, saindo do balancim em direção ao costado de boreste. Pasmo, chamei a tripulação para ver aquilo. Não podia acreditar que estávamos à deriva naquele ventão, indo pras pedras. Encrenca à vista! Não fosse a idéia de seguirmos até a Praia da Faxina, encalharíamos sem saber que estávamos à deriva. Confesso que não entendi como a corrente estava para trás, considerando aquele ventão. Se estávamos garrando, a corrente, já sem âncora, deveria estar sendo arrastada pelo Canibal, que navegava de ré para NE pela ação do vento SW. Nesse caso, a corrente teria que estar estendida da proa para diante. A capotaria da popa (dog house e bimini, veja foto abaixo) funcionou como vela, fazendo o barco navegar de ré.

Acionado o guincho, a corrente subiu toda, trazendo apenas um pedaço da haste da Bruce. Estávamos à deriva, a poucos minutos das pedras. No ventão, e no escuro.
O que fazer?
Ora... Todo motor à vante!
Mas e o cabo do Texas?
Nem pensar em mergulhar pra examinar o hélice. Não haveria tempo. No que o motor foi engatado, parou. Nova tentativa, e o mesmo resultado. O cabo estava preso ao hélice, do tipo folder. Estávamos sem âncora e sem motor.
E agora?...
Bem, estávamos em um veleiro, e vento era o que não faltava. Desenrolar a genoa seria uma forma rápida para obter tração e ficar afastado da costa. No entanto, poderíamos estar muito próximos da praia, e isso poderia definitivamente jogar-nos contra ela. Seria arriscado abria a genoa. Na verdade, no escuro, não víamos exatamente onde a praia estava. Víamos apenas o vulto do morro, iluminado pelas luzes de Porto Alegre refletidas nas nuvens.
Optamos por usar a âncora de reserva. Foi uma correria.

"Que nem bosta em tamanco"
A âncora de reserva do Canibal (foto ao lado) é idêntica à principal, uma bruce de 15kg fabricada pelo Manotaço, renomado fabricante gaúcho de âncoras e mastreação. No dia seguinte, ao saber do ocorrido, o Comandante Ademir de Miranda, o Gigante, disse em Angra dos Reis que "a âncora do Manotaço é a única que segura mesmo". Realmente, a reputação das âncoras do Manota é excelente. O comandante do Entre Pólos conhece bem as âncoras fabricadas pelo Manotaço e tem autoridade sobre o assunto. E, para não deixar dúvidas sobre o que pensa sobre o produto do fabricante gaúcho de âncoras, Gigante comentou:
"A Bruce do Manotaço gruda mais que bosta em tamanco, mesmo em mar mexido que nem bolacha em boca de velha".

Garrando a quase 2 nós
A âncora foi retirada do fundo do paiol. Chovia e o vento continuava roncando. O cabo da âncora estava ao lado, mas não estava preso a ela. O barco seguia garrando. Que dê a lanterna poderosa aquela? Estava à mão e com a bateria bem carregada. Uma varrida na costa mostrou que as pedras do canto da praia continuavam crescendo. Conforme análise posterior do track, o Canibal chegou a garrar a 1,8 nós. O receio principal era as pedras, que não se via.
Quanto tempo tínhamos para agir?
Não tínhamos como saber. Adrenalina bombando. Conforme observado no track do Canibal posteriormente (veja acima), levamos em torno de 6 minutos garrando do local de fundeio até o encalhe na beira da praia. Desses, estimo que agimos em apenas 3, por desconhecermos a situação.

Dificuldades técnicas
Em vez de desenrolar o longo e espesso cabo da âncora de reserva, optamos por fixá-la na corrente da âncora perdida, para ganhar tempo.
Um alicate pra soltar a manilha da âncora!
A âncora de 15kg foi levada à proa com o barco adernando em árvore seca, pela ação das ondas e rajadas. O pino da manilha da âncora de reserva era mais grosso do que o espaçamento entre os elos da corrente. Então tentou-se fixar a âncora no distorcedor, na ponta da corrente, da maneira normal. Para isso seria preciso retirar o parafuso que fixava a extremidade da âncora perdida. Ocorre que na doideira de resolver a situação, a ponta do parafuso pareceu remanchada, caso em que só sairia esmerilhando. Na verdade, estava poncionado. Uma chave do tipo allen resolveria. No entanto, não sei se daria tempo, àquela altura dos acontecimentos, para descer à cabine, localizar o estojo das chaves, lembrar de pegar os jogos métrico e inglês (qual era o caso do parafuso da âncora?), escolher a chave certa, retirar o parafuso, fixar a âncora nova e recolocar o parafuso (à noite, com ventão). Ao todo, suponho que tivemos aproximadamente 3 minutos para agir.

Risco por risco...
Finalmente encalhamos. Foi um encalhe suave. Com a lanterna, via-se pedras a boreste e a bombordo (fotos). Ouvia-se as ondas quebrando logo ali.

O Texas, sem âncora, estava encalhado paralelo à praia, a uns 20 metros de nós (fotos abaixo). Havia uma pedra entre ele e a praia. A proa estava contra um toco grande encalhado. Tivemos todos muita sorte dentro do quadro.

Cogitamos desencalhar o Canibal levando a âncora no bote inflável para longe, e caçar o cabo com a catraca da escota da genoa. Isso evitaria o risco do encalhe piorar, considerando que o barco poderia girar durante a noite e bater em pedras ao lado do Canibal. É uma operação comum nesses casos, mas demorada e trabalhosa. As ondas estouravam na praia e o ventão continuava. Estava muito frio fora do barco e volta e meia chovia.

Concluímos que navegar com o bote no escuro naquela região com pedras submersas poderia ser mais arriscado do que permanecermos onde estávamos. Se pegássemos uma pedra com o bote, poderia quebrar o pino do hélice, e teríamos que remar na ventania... Enfim, risco por risco, descartamos a idéia.

Pedido de auxílio
Chamamos a embarcação "Farol de Itapuã" pelo rádio VHF. O barco que leva pescadores e turistas pela região. Tem baixo calado e alta potência. O comandante Mâncio navega há vários anos por ali. Sua base é o Clube Náutico Itapuã, a 6,5 milhas da Praia do Sítio. Como estávamos bem junto à praia, a uns 10 metros talvez, o rádio não funcionava bem devido à proximidade do Morro do Campista.

O comandante Adriano Machado fez uma "ponte" pelo rádio, retransmitindo o pedido de reboque. O Farol de Itapuã estava levando os pescadores de volta ao CNI e não poderia vir naquele momento. Depois de desembarcá-los, voltou para nos rebocar. Mas nas proximidades da Ilha das Pombas, a umas 4 milhas de onde estávamos, informou que era difícil avançar, tal o vento e as ondas. Já era tarde. A operação avançaria madrugada a dentro.

O Canibal já estava bem encalhado e o vento começou a amainar. Julgamos que o barco não se moveria durante a noite, e que não haveria risco da situação piorar. Sugerimos ao Farol de Itapuã que a operação fosse adiada para a manhã do dia seguinte (domingo). E assim foi.

Âncora do Texas sob a quilha do Canibal
Acordamos às 7 da manhã. O comandante vestiu calção e snorkel, e foi pra água. Estava bem frio e ainda chovia. O cabo da âncora do Texas ainda estava preso à popa do Canibal (foto acima).

Andreas desenroscou o cabo do hélice e percebeu que a outra ponta do cabo ia na direção da quilha. Tateando, pisou na corrente da âncora do Texas que havia ficado presa ao Canibal. Estava sob a extremidade anterior da quilha do Canibal.
Nosso problema naquela noite foi só com âncoras: a nossa quebrada, e a do Texas com o cabo enroscado no hélice do Canibal.

Rebocando pela quilha
Plinio sugeriu que se passasse um cabo atrás da quilha para nele prender o cabo de reboque. Esse é um detalhe muito importante para desencalhar um barco. Se o cabo de reboque for amarrado nos cunhos da proa, dependendo do quanto o barco estiver encalhado, poderá rebentá-los.

O mastro do Delta36 não é passante e por isso não pode servir de ponto de apoio para a amarra de reboque. Mesmo que fosse, o ideal é tracionar o barco encalhado pela quilha. Para tanto, passamos um cabo que saía do convés de proa em direção à popa, junto ao costado (observe na foto acima), passava por trás da quilha junto ao casco, e no outro bordo fazia o caminho inverso até encontrar a outra extremidade, onde foram amarradas uma à outra (foto ao lado). Em resumo, fizemos um laço por trás da quilha, e nele fixamos a amarra de reboque.

Adernando p/reduzir calado
O comandante Christian Eipeldaver do Mordente 27 Golfinho (calado 0,50m) ofereceu ajuda pelo rádio. Estava na Ponta Escura, do outro lado do rio.
A extremidade da adriça da vela grande foi amarrada a um outro cabo (foto ao lado), para ser tracionado transversalmente pelo Golfinho durante o reboque pelo Farol de Itapuã. Isso faria o Canibal adernar, diminuindo o calado e assim facilitando o desencalhe.

A barbada do desencalhe
Quando o Farol de Itapuã chegou, um cabo foi lançado ao Canibal e em seguida amarrado ao laço que preparamos. O reboque deve ter durado uns 20 segundos, se tanto. Foi uma barbada. Além do rebocador, contribuíram o motor do Canibal e a adernada proposital. O planejamento e a preparação da operação contribuiram muito, sem dúvida.

As meias do Plinio
Plinio estava bem na borda durante o reboque e suas meias molharam na adernada do desencalhe. Haveria ainda pelo menos mais um prejuízo a contabilizar.
É que, mais tarde, as meias foram levadas ao microondas do Canibal para secar. Depois de alguns minutos, o forno foi aberto para vermos se as meias já estavam secas. Ainda não. O forno foi ligado de novo e, depois de alguma conversa no cockpit, sentimos o cheiro de um blend de chulé e pano queimado. As meias, que eram brancas, estavam bem secas, mas pretas e fumegantes.

Churrasco na Chico
Atracamos por volta da uma da tarde na Ilha Chico Manuel para fazermos um churrasco. Desembarcamos carne, bebida, etc. Mas nossos amigos que estavam por lá nos ofereceram a carne que já estava assada. E todo mundo já sabia da nossa indiada, pelas conversas no VHF.

Ganho de experiência, a nossa resignação
Tanto nós quanto a tripulação do Texas (foto acima) ganhamos experiência com o ocorrido. Foi um encalhe sem conseqüências materiais importantes. O Canibal e o Texas saíram ilesos. Apesar do risco a que estivemos expostos, não passou de um susto e de faina extra. Aprendemos.


Agradecimentos
Foi muito bonito ver o empenho de tanta gente na operação de desencalhe, comprovando o que já se sabia: quem navega auxilia quem está em dificuldades. É gente de fé.

A tripulação do Canibal agradece a todos que, de alguma forma, auxiliaram na operação desencalhe, e aos que gentilmente ofereceram auxílio pelo VHF. Na foto ao lado, Plinio Fasolo, ainda usando meias.

Veja o vídeo com a operação desencalhe

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