Entre Pólos - De Cabo Verde a Fernando de Noronha e Salvador
Arriando a última bandeira estrangeira da viagem
Ademir de Miranda Gigante

Diário do veleiro Entre Pólos

09 Out 2008
Diário de Bordo № 9
Salvador 07/10/2008 Brasil

De Cabo Verde a Fernando de Noronha e Salvador

18/09/2008
Deixei Cabo Verde pela popa, tenso e preocupado, pois as previsões para a Zona de Convergência intertropical (ITCZ) que nunca é boa, estava pior do que o normal. Mas se eu ficasse, não sei quanto tempo demoraria para sair. E Mindelo não é um lugar para se ficar muito tempo. Ao lado, farol na ilha de São Vicente, Cabo Verde.

Eu queria seguir meu caminho. Precisava ir pra casa.
Pedi para o Danilo passar para a Cleuza, via e-mail, as previsões que ela me repassaria em nossos contatos diários. Queria saber se algo mudaria, a tempo de poder fazer alguma manobra para me escapar, caso a coisa ficasse séria. E assim foi feito. Nessa época do ano alguns furacões podem se formar ao sul de Cabo Verde e chegar ao Caribe (imagem ao lado).

Até as Canárias eu consegui baixar fax meteorológico via SSB, mas acho que estou com algum problema na recepção ou na freqüência. Saí à 1:30 da tarde no RM 202º (RV 190º). Sabia que não poderia passar para longitude maior que W28º até atingir a linha do Equador, quando encontraria os ventos alísios de Sudeste. Se passasse, a corrente sul equatorial poderia me levar ao Caribe, e neste momento quero ir pra casa.

Vale pela paz e pelo silêncio
Naveguei por trinta horas neste rumo, tentando ficar mais a West possível, para tentar contornar o que estava na previsão. E a motor, por ter vento muito fraco. Apesar de vento favorável de NE, não passava dos cinco nós. Nas primeiras 24 horas alcancei a lat. N14º17 long. W025º32 e fiz o balanço do meu progresso rumo ao Brasil. Foram 167 milhas. Na foto, o Entre Pólos em Noronha.

A primeira noite foi tensa, mas tranqüila. Dormi bem e fiz todas as refeições. À noite o vento melhorou para 12 nós. Para negociar uma velejada melhor com vento fraco, baixei 20 graus para leste, dando assim um ¾ de popa confortável e uma velocidade de cinco nós. No segundo balanço, sempre às 13:30 horas, fiz 120 milhas só velejando, apesar de pouco vento. Vale pela paz e pelo silêncio.

Terminei o segundo livro lido desde as Canárias. Agora estou relendo outro que me dá dicas desta travessia, principalmente sobre a ITCZ. No gráfico ao lado a variação da ITCZ.

Com as previsões do tempo se confirmando, vai ser dentro do normal para esta zona. O vento deu uma reforçada agora para 15 a 18 nós. Passei para o RM 195º (RV 181º). Devo manter este rumo até que encontre os alísios, que pode ser na Lat seis a dois graus. Aí tomarei um rumo próximo a 27º de longitude na latitude de zero grau, e então vou mudar meu rumo para Fernando de Noronha.

21/09
Dormi bem, sempre velejando, até que fui acordado pelo Zoínho (radar) mostrando negras nuvens pesadas. Ainda bem que o vento estava fraco, e o barco andou devagar. Assim pego este troço com luz do dia, às 7 horas da manhã. Na lat. N11º05, baixou o santo, chuva e vento. O grande estava rizado. Só enrolei a genoa. Estas condições de tempo me acompanharam por cinco milhas. Apesar de esperar por mais, o vento não passou de 30 nós nas rajadas. Esperava mais chuva também, mas ainda seria cedo pra falar.

Desde Lisboa, 13 ou 14 de junho, que eu não via uma gota de chuva. Só sol e poeira. O barco estava um lixo de sujo. Em Cartagena tem muita poeira. O barco ficou muito tempo por lá. Às dez horas fiz um contato com a Cleuza. Em seguida o radar apita novas nuvens. Iriam cruzar na proa de SE a NW, e esta era grande e assustadora. Preparei o barco pra garantir e liguei o motor. Desabou água de todo lado. Foi força de água. O vento que decepcionou também. Não passou dos 30 nós nas rajadas. Feliz decepção!

Noite especial
Descobri que tenho que impermeabilizar o bimini e o dog house. Chovia mais embaixo deles que fora. Além das tempestades em noites escuras, teve uma noite especial. Antes da lua aparecer, o céu limpo e estrelado se espelhava no mar. As estrelas se refletiam no mar, igual ao visual do Saco do Céu, em Angra, mas com mais nitidez, talvez por ser mais escuro. Não tinha horizonte. Foi uma das noites mais lindas de toda a viagem. Imagens que vão ficar na lembrança.
Veja na foto acima como estava o mar.

Garrafa jogada na água
Nos 10º30 de latitude norte o vento pára e navego no motor. Mais tarde uma corrente de um nó contra, e o vento ronda pro sul, fraco, mas na fussa. Acho que cheguei à Zona de Convergência Intertropical. Também nesta latitude mandei pra água uma garrafa com a primeira mensagem. Queria mandar mais uma no zero grau, mas o moral não andava muito alto naquela latitude. Bem, vamos ver se alguém acha esta (ITCZ). Nosso balanço às 13:30 horas ficou em 117 milhas.

22/09
Nessa noite, me passei. Apaguei. Dormi da uma da madrugada até às sete horas, direto. Esqueci do relógio. Estou relaxando nestes quatro dias. Desde Cabo Verde não vi nenhum navio. Só agora de manhã apareceu o primeiro. Agora vou ter que me cuidar mais.

De papo pelo VHF
Apesar da zona que estou navegando ser mal humorada, com grandes nuvens fechando todo o céu, sempre estou navegando em uma clareira. De dia tem um buraco aberto com sol, e à noite o buraco se parece com uma grande pizza com bordas de catupiri, com as estrelas e a lua que está em fase diminuta. Quando saí de Cabo Verde, a lua estava com 70%. Hoje está com 40%. Meu progresso nas últimas 24 horas foi de 148 milhas.

Quando entro no barco para fazer o almoço, o Zoínho avisa que tem navio na proa. Era um pesqueiro de 65 metros com bandeira das Malvinas vindo das Ilhas geladas do sul, rumo à Espanha. Conversei via VHF com o comandante Luiz, por mais de hora. Me falou que estava há cinco meses navegando, e que amanhã faria aniversário de 31 anos. Conversamos sobre seu barco e o meu. Acabei almoçando mais tarde. Sempre é bom conversar com alguém na mesma situação, embora o papo sempre seja o mesmo. Não importa se é um barco pesqueiro, navio ou veleiro. O assunto é sempre Barco.

Saindo do desconhecido que saí para conhecer
Hoje tirei a bandeira de Cabo Verde da cruzeta. Na hora que baixei me apertou o coração. Fiquei emocionado. Desde que saí do Brasil foram várias subidas e descidas de bandeiras de diferentes países. Em nenhuma outra me senti assim. Foi um sentimento diferente, angustiante. Talvez porque estou chegando ao Brasil. Estou saindo do desconhecido que saí para conhecer, e agora estou chegando de volta ao conhecido. Talvez sentindo o sonho tornando-se realidade.

Pedidos prontos para despachar à noite
A noite escureceu com grossas nuvens. Pela primeira vez senti medo. Os relâmpagos clareavam todo o céu durante toda a noite. Os raios pareciam cair ao lado do barco. Eu nunca tinha visto tanto raio tão perto. Deu vontade de por a cabeça debaixo do cobertor para não precisar ver esta cena.

Nas noites estreladas eu ficava deitado no cockpit, só observando. Curtindo o visual de um céu diferente, esperando as estrelas cadentes que eram muitas. Fazia pedidos. Às vezes deixava os pedidos já formulados de dia, para à noite só anunciar. É não ter o que fazer mesmo!

O tão esperado tripulante Aloísio
Na latitude N 01º 24 long W 026º 16, entraram os Alísios de SE. Mudei meu rumo para 223º verdadeiros. Neste rumo eu passaria pelo equador entre as longitudes W 027º e 028º, onde mudaria o rumo para Noronha. Velejei por duas horas, e o vento rondou. Veio para o SW, ficou em 190º verdadeiros, de 12 a 15 nós, que por ser contra é forte. Como se já não bastasse os ventos da ITCZ estarem muito abaixo da latitude normal, ainda rondaram pra cara.

Assim foram dois dias de contravento, até que chegou o tão esperado Aloísio (Alísios de Sudeste). Este tripulante de Sudeste, que iria empurrar o barco rumo ao arquipélago de Fernando de Noronha, chegou acanhado. Fraco. Não passava de cinco nós. E aí, com aproximadamente quatro dias para chegar a Noronha, e com menos de dois dias de autonomia de diesel, tive que velejar devagar. Teve uma noite que o barco se arrastava a um e meio nó. Que desespero!

Parafuso voador
Atrasou tudo. Eu queria chegar à ilha um dia antes da regata Recife - Fernando de Noronha para acompanhar a chegada dos amigos. No dia 26 o vento melhorou. Comecei a me animar. De repente, solta o carro da escota da genoa de boreste. Tudo bem. Troquei pelo carro da trinqueta e seguimos. Estes carros tem um parafuso allen em que não adianta aplicar o trava-rosca. É o terceiro que se solta. Um eu perdi na regata da Volta à Ilha, em Floripa. Voou pra água. Este agora e o outro, tive sorte e não perdi. Pude consertar.

Passando para o nosso lado
No dia 26/9, às onze e trinta da manhã, cruzei a linha do equador (foto), com uma comemoração tímida, mas feliz. Acabava de passar para o nosso lado. Para o hemisfério Sul. É a segunda vez que cruzo a linha do equador. A primeira vez foi indo de Fortaleza a Trinidad, com o Fernando (Veleiro Planeta Água). Naquela vez a comemoração também foi tímida, pois estávamos só com chuva. Era noite e havia um pesqueiro suspeito em nosso través.

Toni Tornado sem braço
Sempre velejando, agora com melhor vento, acordei no último dia às quatro horas da manhã, com uma atravessada do barco com 20 nós de vento. Fui para o timão. As velas estavam aquarteladas. Enrolei a genoa, coloquei o barco no rumo, acionei o piloto automático, e nada... O hidráulico que eu havia trocado em Barcelona se foi. Tudo bem. Era descartável mesmo. Toni Tornado estava sem seu braço. Apesar de tudo, não fiquei chateado, pois depois de navegar 1.440 milhas desde Cabo Verde, eu só iria timonear trinta e poucas milhas. Me sinto um cara de sorte.

Cheguei em Fernando de Noronha na segunda feira, dia 29/9, às 11 horas da manhã, depois de 10 dias e 21:30 horas, tendo navegado 1.472 milhas desde Cabo Verde. Ainda pude ver mais da metade dos barcos da regata chegando (na foto ao lado, a chegada do "Bahia Náutica").

Singraduras a cada 24 horas, de Cabo Vede a Fernando de Noronha

18/9, 167 milhas.
19/9, 120 milhas.
20/9, 117 milhas.
21/9, 148 milhas.
22/9, 147 milhas.
23/9, 136 milhas.
24/9, 136 milhas.
25/9, 127 milhas.
26/9, 117 milhas.
27/9, 122 milhas.
28/9 até as 11 horas de 29/9, 135 milhas.

Muita faina em Noronha
Cheguei a Fernando de Noronha e ancorei perto do lugar que fiquei nas últimas duas vezes. Na minha proa estava o Aysso. Por BB, mais à proa, estava o veleiro Bahia Náutica e, mais perto da praia, os amigos de Floripa do veleiro Gosto D’água e o Vanderstad 29 Guga Buy.

Aí pessoal da flotilha de Vanderstad do sul! Quem sabe uma Noronha futuramente? (Cruzeiro dos amigos Vanderstad na Costa Leste da amizade).

Vi a chegada da navegadora solitária Isabel Pimentel, com seu pequeno barco. Encontrei muitos amigos e conhecidos, mas pude curtir muito pouco a Ilha. A faina era grande. Teria que me certificar do real problema do piloto e abastecer, o que aqui em Noronha tem logística complicada. Enfim, tudo que uma grande singradura pede depois de completada, para continuar seu destino.

Apoio dos amigos
Falei com o Daniel da DM Náutica, Veleiro Don Muñoz, amigo e tripulante da melhor qualidade. Ele logo conseguiu um piloto com meu outro amigo Osmar, do veleiro Free Wind, que estava instalando um linear hidráulico exatamente igual ao meu original, não descartável. Osmar suspendeu a instalação prontamente, e mandou despachar para Noronha, com a ajuda do Richard, veleiro Perkeu. Com seu conhecimento de logística, prontificou-se e garantiu que em vinte quatro horas a peça estaria em minhas mãos na distante ilha. Uma viagem como esta, sempre tem mais sucesso quando se tem amigos dando apoio em terra, torcendo e ajudando como se estivessem a bordo. Obrigado.

Falei também com o Jean, do veleiro Janmaluce. Ele me informou que a Marinha está com problema no fax meteorológico, e que da última vez ficou nove meses sem funcionar. Então não é problema da minha freqüência.

Na ida ao posto com quatro bombonas de 25 litros, subindo a ladeira do Porto de Santo Antonio, encontro os amigos do clube, Miguel e Patrícia, do veleiro Confidence, que me ajudaram no abastecimento (foto acima). Neste momento me senti no Brasil, principalmente quando foram a bordo, tomando cerveja os três no cockpit. Estou em casa. No outro dia marcamos um mergulho no navio, o que se tornou meu único mergulho neste ano em F. de Noronha. Almoçamos a bordo. Me levaram às compras e me trouxeram de volta ao porto. Nos despedimos. Eles estavam com passagem de volta a Porto Alegre nesta tarde.

Delírio no pódio
Às 4:30 horas peguei o ônibus e fui ao aeroporto buscar parte do piloto. Com alegria, vi que estava lá o danado. Voltei ao barco. Em 20 minutos estava tudo funcionando perfeitamente. Tirei a graxa do corpo e saí de bote para a festa de entrega de prêmios, que já estava quase começando. Encontrei mais amigos. Foi muito emocionante ver amigos como o Júnior, de Floripa, do barco Gosto D’água, delirar no pódio conquistando o troféu de primeiro lugar na categoria, repetindo 2007 na animação e gritos de Bicampeão. Encontrei os amigos de Tapes, Rubinei, do Veleiro Dom Bruno, e Sussuca, amigo e conhecido desde os anos 80. Na quinta feira, na hora de sair, já nos últimos preparativos, um Delta 32 que chegou rebocado por perda do leme, e que estava fundeado próximo à proa, teve o cabo da âncora rompido e veio bater no Entre Pólos. Amarramos o barco na popa, emprestei uma âncora, e fiquei na espera da faina para, com o bote, podermos levar o barco para um fundeio. Liberado, agora o rumo é Salvador.

A navegada mais desconfortável
Saí de Noronha às 11:30 horas no horário do Brasil. Vento SW com 15 nós, orça folgada até às 17 horas. Depois na cara. À noite melhorou o ângulo de orça, mas com muitos pirajás. No segundo dia, a coisa engrossou: orça com 20nós e ondas de 3 a 4 metros, descompassadas e vindas de todos os quadrantes, resultando assim na navegada mais desconfortável de toda a travessia. Durou todo o dia e terminou de madrugada, quando a coisa ficou boa depois de 400 milhas. Foi uma velejada agradável e merecida, com vento de 14 a 17 nós, variando de través a ¾ de popa. Melhor que isso, só um churrasco que não vejo há quase seis meses. Mas em Noronha consegui uma picanha. Fiz no forno com sal grosso. Deu para sábado e domingo. Um verdadeiro final de semana.

Preparativos para a noite
Todos os planos desta travessia em solitário estão saindo conforme planejado, a não ser as singraduras diárias, que estão abaixo da minha média. Não contava com o baixo rendimento, pois, para sair só, a prioridade é a minha segurança e a do equipamento. Sempre, com exceção de duas vezes, antes de escurecer eu rizo a grande. Se o vento estiver muito forte, troco a genoa pela trinqueta. Tenho que dormir. Às vezes o vento diminui e só me dou conta quando acordo, mas tudo bem isto só vai tomar um ou dois dias a mais no total da travessia.

Desembarcando no Brasil continente
Em Cadiz, Espanha, ganhei de presente do Andreas, Veleiro Canibal, uma cafeteira tipo Italiana, que durante a viagem foi muito útil. Deixava ela sempre pronta, bastando acender o fogão, que em seguida o café estava pronto. Uma maravilha para as madrugadas que teria que ficar acordado, devido ao movimento de navios, ou alguma tempestade não esperada.

Cheguei a Salvador e atraquei no Centro Náutico Da Bahia. Apesar de terem mudado de nome, ainda me soa mais náutico o nome anterior e me faz sentir melhor. Botei os pés no trapiche, desembarcando oficialmente no Brasil continente às 13:30h de 07/10/2008. Naveguei nesta última perna, desde Fernando de Noronha, 716 milhas, em cinco dias e duas horas. Na foto ao lado o Farol da Barra, em Salvador.

Aqui no CNAB conheci Manfred, que com seu barco já atravessou nove vezes em solitário o Atlântico, já navegou na Georgia do Sul, e agora prepara-se para ir à Nova Zelândia, talvez só com uma escala. Ele esteve no Entre Pólos e me mostrou vídeo que gravou na Georgia, com uma incrível tempestade com ondas de 12 metros. Uma loucura.

Na foto ao lado, a inspeção do fundo do Entre Pólos, em Fernando de Noronha.

Singradura a cada 24 horas:
02/10, 135 Milhas.
03/10, 132 Milhas.
04/10, 141 Milhas.
05/10, 141 Milhas.
06/10, 26 Horas, 167 Milhas.

Agora é Rio de Janeiro, assim que a previsão deixar.
Obrigado a todos.

Comentários: info@popa.com.br


Em breve mais fotos da viagem

 

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