De Cascais a Lisboa
Navegando pelo Rio Tejo
Tau Golin e Ademir de Miranda (Gigante)

20 Jun 2008
D
esatracamos da Marina de Cascais na segunda-feira depois das 8:00. Realizamos as formalidades na sua administração e partimos com um dia típico de primavera portuguesa, com o sol de uma manhã esplendorosa e as praias enchendo-se de moradores e turistas. A baía de Cascais estende-se para o leste e atinge Estoril.  Junto com Sintra e Oriente forma a região de terras avançadas mar adentro antes da barra do Tejo. Os famosos cabos Roca e Raso, com suas encostas elevadas são os primeiros acenos do continente para quem chega do oeste atlântico.

Certamente tivemos uma visão muito similar a de Cristóvão Colombo e de tantos outros navegadores que desde o século XV, no evento da incorporação dos Açores e seu povoamento, singraram o mar desde as ilhas. Também margeamos a Boca do Inferno e, depois, chegamos à enseada de Cascais. O Entre Pólos colocou a proa ao largo de Carcavelos. As redes dos pescadores artesanais, com suas bandeirolas de perigos tomavam o nosso bombordo. Estamos no lendário Tejo, rio encantado da identidade portuguesa, inspirador de seus poetas e fadistas. Uma corrente de três nós contra, com vento pela cara, dão descanso merecido às velas extremamente exigidas na travessia.

Deixamos ao través a Marina de Oeiras, região do poderoso marquês de Pombal, da qual tomou-lhe o título nobiliárquico de conde de Oeiras, antes de comandar, com mão de ferro, as reformas de D. José I, de 1751 a 1777. Pela costa fortificada desde o período medieval, encontra-se a grande contribuição moura, o domínio árabe de vários séculos. Expulsos, a cristandade se fez senhora da Península Ibérica. Seu poder pontifica o território visualizado, nas torres das igrejas, nas cruzes do poder, na aliança com a nobreza. Entretanto, um Portugal moderno e democrático também ilumina os novos tempos e sua arquitetura de ocupação. As obras dos homens de diversos períodos coabitam naquilo que podemos chamar história, idéia de solidez e consciência, de identidade e destino.

O Entre Pólos ganha bigodes de águas do Tejo (foto). Pescadores, em trabalho cooperativado e solidário, realizam um arrastão usando a vazante, utilizando cabos longuíssimos, através dos quais, por um sistema de roda grande, como se fosse uma imensa roldana, fazem os botes resistirem a maré e avançarem rio acima.

Logo chegamos às Torres de Belém, cidadela de proteção milenar de Lisboa, fortaleza símbolo da construção lusitana. Sob sua proteção zarparam e retornaram os navegadores portugueses. Cabral lançou-lhe um aceno de esperança antes de chegar à terra de Santa Cruz, a qual receberia o nome de Brasil. Sob sua proteção emblemática está a Doca de Belém, com uma marina padrão. A seguir, a Doca de Bom Sucesso. Como uma nova marca dos tempos modernos, ao seu lado, mas sobre ela, a ponte em aço que atravessa o Tejo. Com mais de trinta metros de altura sustenta dois andares sobrepostos, um para os veículos particulares, de transporte coletivo e de carga; o outro, para o “comboio”, que é como se chama o trem em Lisboa. E não impede a navegação! O Entre Pólos passou com seu mastro sobre ela, com a Marina Doca de Santo Amaro praticamente embaixo. Vencemos o porto, contornando-lhe por nosso bombordo e entramos na Marina Doca de Alcântara, construída em suas antigas instalações, com o novo Porto de Lisboa em frente.

As marinas de Portugal deveriam servir de inspiração para países que alimentam a idéia do turismo náutico, porém vão muito pouco além das campanhas publicitárias. Elas fazem parte de um projeto estratégico do país e são gerenciadas pelos poderes locais ou nacional; em alguns casos, a administração é transferida a concessionários. Os preços são compatíveis e dependem do tempo de estadia. Quase todas possuem serviço de guincho, porém o trabalho cotidiano é feito pelo “travel-lift”, retirando os barcos d’água e os conduzindo para os estaleiros. Poucos usam carretas. Os barcos são sustentados por calços reguláveis. É o mesmo sistema usado no Caribe. Os preços para seu uso variam entre 70 a 120 euros. Na infra de terra, geralmente oferecem lavanderia, internet e restaurantes. E, pasme-se, nos Açores o acesso do público é livre, pois constituem espaço público, que a população usa para caminhadas, passeios e, é claro, muito namoro. Aos fins de semana e em datas especiais, grupos de música e danças tradicionais mantêm sua cultura com naturalidade, como um hábito cotidiano, sem indumentárias extravagantes, tudo como uma cena usual e telúrica, com todas as gerações confraternizando. As chimarritas bailantam fraternamente pelos cais, reunindo as gentes de todos os povos em passagem pelos Açores.

A Marina de Alcântara é extremamente segura, com administração enxutíssima, poucos funcionários. Sequer os guardas andam armados. Todavia, o point fica na doca de Santo Amaro. Em frente a sua marina existe uma rede de restaurantes. A rambla, uma explanada ampla, com mesas ao ar livre e os barcos em frente. Pareceu-nos muito mexida, pois as ondas do Tejo entram diretamente. Mas nem tudo é perfeito. Na parte oeste encontra-se a ponte sobre o rio histórico, com movimento intenso e, às vezes, principalmente quando passa o metrô, ensurdecedor.

A sinalização náutica portuguesa observável nos Açores e em Cascais, no Tejo, nos portos e marinas transformou-se em preocupação para brasileiros, pois é invertida (IALA A). Ao seu chegar ao continente, a certa distância dos baixios e pedras da encosta, existe sinalização encarnada. Na aproximação e entrada da Marina de Cascais apenas bóias encarnadas sinalizam. Os baixios do Tejo estão na margem esquerda da correnteza. Uma seqüência de faroletes e bóias verdes os sinalizam, todavia, pela regra local, deve-se mantê-los a boreste (direita) da embarcação que sobe o rio. Além disso, são poucas as marinas que possuem sinalização dupla, proporcionando a lógica de passar entre elas.

Estamos em um período de feriados em Lisboa e muitas festas populares. São dois nesta semana. Na terça-feira, o dia da República; na sexta o em homenagem a Santo Antônio, seu padroeiro. Os festejos já estão ocorrendo nos bairros populares, com muita dança, música e comidas feitas ao relento, especialmente sardinha assada.

Depois da faina para deixar o Entre Pólos mais asseado, começamos a prospecção em terra. Estamos em uma região de porto, porém a área incomparavelmente segura em comparação com outras regiões. Saímos da marina e retornamos a qualquer hora. Eventualmente uma abordagem, em especial de traficantes disfarçados de vendedores ambulantes ou jovens pedindo tóxico.

Já visitamos o centro histórico, com seus prédios públicos. A matriz de Lisboa está edificada sobre camadas de vários períodos históricos, cujas datações retroagem até a ocupação romana. É aberta livremente ao público, porém, diante do claustro, beatos se revezam cobrando dois euros e meio para a visitação. Os trabalhos dos arqueólogos demonstram a estratigrafia das fases de ocupação.

Neste feriado de terça-feira, almoçamos na comunidade de Alfama, um bairro típico, onde se encontram as casas de fado e restaurantes com comidas tradicionais. Provamos a sardinha assada, prato popular a 7,5 euros, acompanhado por uma sangria, espécie de ponche feito com vinho branco e frutas. À noite temos ido ao Zonadoca, um café-restaurante na Doca de Santo Amaro, atendido por brasileiros e gerenciado, pasmem, por dois passo-fundenses. Os empresários do ramo preferem os brasileiros devido às habilidades para relações humanas e a empatia que estabelecem com os clientes.

O nosso chimarrão não provoca mais estranhamento. Graças ao Felipão, que reside em Cascais, faz suas caminhadas pela costa, freqüenta os restaurantes, e costuma aparecer na mídia sorvendo o doce amargo. A bebida da pajelança guarani, através de um gringo de Passo Fundo, acabou se transformando em uma identidade brasileira. A partir do exterior, mate é bebida de brasileiro e não, por contraditório que pareça – deixando de lado as nossas pendengas regionais internas -, de exclusivamente de gaúcho.

Tivemos a visita do professor do mestrado em História Marítima da Universidade de Lisboa, Francisco Clemente Domingues, que veio a bordo conhecer o Entre Pólos e conversar sobre navegação. Docente de cartografia interessou-lhe particularmente o nosso plano de navegação que coincidiu, no geral, com a rota de Cristóvão Colombo, o primeiro europeu a fazer a travessia pela escala dos Açores e Cascais. A hipótese do desconhecimento da declinação magnética no desvio do destino a Gibraltar, em seu rumo “lés-nordeste”, a partir do Caribe, mostrou-se instigadora para outros colóquios.

Depois de compromissos referentes à Universidade de Lisboa, o Tau Golin retorna ao Brasil neste domingo, dia 15 de junho. O comandante fica em solitário por algumas horas. Cumprindo a sina hospitaleira do Entre Pólos, outros tripulantes deverão embarcar.

Marina de Alcântara, 11 de junho de 2008

Clique uma imagem para carregar todas da mesma moldura

 

Vídeo com a entrada do Entre Pólos no Tejo (8seg)