Guaíba: o rio, o lago e a Gisele Bündchen
O nome não interessa, o que importa é a beleza
Nelson Ferreira Fontoura

1º Jun 2009
Apaixonar-se por uma mulher parece às vezes como andar de montanha russa: suor frio, ansiedade, euforia. Alguns até morrem de paixão, mas no final é sempre bom. Ficam sempre lembranças, e às vezes até pensão.
Apaixonar-se por idéias ou conceitos é mais perigoso. Paixão por idéias e conceitos já mataram aos milhares. Uma idéia deveria ser como uma espiga de milho, pendurada em frente aos olhos, faz o burro seguir adiante, sereno.
Já um conceito é uma abstração da realidade, fruto da necessidade de comunicação. Tentamos encaixar a natureza, em toda a sua complexidade, dentro de categorias estanques.
Rio e lago são categorias que empregamos para descrever a natureza. Às vezes as categorias são claramente identificadas, como no rio Jacuí e na lagoa dos Barros. Trabalhando, já fotografei e registrei coordenadas de mais de 400 segmentos de rio no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Também já trabalhei em lagoas: lagoa Araçá, Fortaleza, dos Barros, dos Quadros, do Casamento, Laguna Tramandaí e Laguna dos Patos.
São 25 anos trabalhando com ecologia aquática, incluindo muitas navegadas pelo Guaíba. Em minha opinião, o Guaíba tem elementos de rio, e elementos de lago. Já tive dificuldade de coletar sedimento para análise, pois a corrente próxima à pedra da Piava insistia em arrastar a draga, impedindo seu funcionamento correto. Por outro lado, quando estamos fora do canal, o Guaíba é um lago sereno, o vento determinando a direção da corrente, quando esta existe.
Quem examina as cartas batimétricas do Guaíba, percebe claramente os pontais de arreia que o interceptam, chamados tecnicamente de espigões arenosos. Na carta, são chamados de Coroas: a coroa do Jacaré, das Ceroulas, do Mato Alto e do Pontalzinho. Na Laguna dos Patos temos o mesmo tipo de formação, muda apenas o nome: o banco das Desertas, de São Simão, dos Desertores, etc. Estes pontais são criados por correntes induzidas pelo vento, em movimento circular anti-horário, no hemisfério Sul. São estas correntes que, transportando sedimentos, moldam a batimetria do Guaíba, como em uma lagoa, exceto pelo canal.
Rio ou lago? O Guaíba já foi rio, definitivamente. No auge da última glaciação (20-24 mil anos atrás), com o mar 120 metros abaixo do nível atual, o Guaíba seria apenas um segmento do Jacuí serpenteando entre os morros que rodeiam o Guaíba atual, passando por Itapuã e desaguando direto no mar. A própria Laguna dos Patos não existia, era apenas uma várzea.
Mas a glaciação terminou e o mar foi aumentando seu nível gradualmente. A várzea dos Patos alagou-se e tornou-se Laguna. O represamento das águas, em função da baixa declividade, fez o então Jacuí avançar por sobre as margens, formando o que hoje chamamos de Guaíba. Permaneceu o canal original, que em função da velocidade das águas, acumula sedimentos muito gradualmente. Mas não se iludam: sem dragagem o canal acabará por ser completamente assoreado, como já aconteceu na Laguna dos Patos. Ou seja: o Guaíba já foi incontestavelmente um rio. Daqui a alguns milhares de anos, com o soterramento definitivo do canal, será um lago, e se o tempo permitir, a deposição de sedimentos avançando de montante para jusante fará do Guaíba novamente um rio serpenteando através de uma várzea. Onde quero chegar? A natureza está em contínua mudança e tentar estabelecer os limites entre um conceito e outro é como discutir religião, política ou futebol. Não é científico: é opinativo, birrento, folclórico, e até divertido. E se tomado a sério, improdutivo e até perigoso.
Mas não vou me abster de dar minha opinião. O Guaíba é lindo, como a Gisele Bündchen. Imaginem a Gisele deitada em berço esplêndido. Uma gota de suor escorre por entre os seios, até o ventre. Esta gota é o rio, e alguns ficarão obcecados por ela: deliciosa, poética, sensual. Afinal, fetiche existe, e tem gente que se fixa em pé e até umbigo. Mas eu prefiro o corpo inteiro, e o corpo é lago.

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