O naufrágio é do escritor
De quem era a pegada fresca na areia? Vicente Escudero 13 Mar 2009 Recordo algumas referências das minhas leituras na infância. Livros sobre homens perdidos na selva, pessoas abandonadas em barcos à deriva e sobreviventes de desmoronamentos embaixo de escombros. O cinema também tratou de captar a essência: Brooke Shields, em Lagoa Azul, envelhecendo numa ilha deserta; Tom Hanks, em Náufrago, exaltando a excelência da FedEx; além da série sem roteiro Lost. Pequenas variações da vida de Robinson Crusoé (ilustração à direita), personagem criado por Daniel Defoe em 1719, chamadas de "robinsonades", histórias sem a mesma finalidade do romance, de legitimar a superioridade dos valores cristãos e a doutrina colonialista do antigo Império Britânico. Enquanto o tenaz Crusoé lutou durante quase três décadas, com a mesma dignidade que exibia no mundo civilizado, para suplantar os desafios da vida selvagem e encontrar um meio de fugir da ilha, mantendo a sanidade ― seja lendo a Bíblia ou conversando com um papagaio ―, Tom Hanks cria o necessário para manter-se vivo, quase se suicida, mas foge da ilha e realiza a entrega de uma encomenda extraviada. No século XVIII os povos bárbaros deveriam se curvar ao Império Britânico; hoje, o exército é de mensageiros expressos, que arriscam a vida pela entrega na hora certa. Coisas da vida.
Daniel Defoe inspirou-se na vida de Alexander Selkirk para criar Robinson Crusoé. Alexander, um pirata escocês aspirante que viveu sozinho por quatro anos na ilha Más a Tierra, no arquipélago Juan Fernández, localizado na costa do Chile ― hoje batizada de ilha de Robinson Crusoé ―, no início do século XVIII, depois de uma tentativa fracassada de motim durante uma expedição pelo Pacífico. Defoe, um inglês filho de puritanos integristas, educado para ser pastor, escritor versátil e um dos pioneiros do jornalismo econômico ― apesar de sucessivos fracassos mercantis ―, sofreu tamanha perseguição de devedores que se escondeu em Bristol, onde podia sair tranquilamente apenas aos domingos, já que no "Dia do Senhor" não era permitida a cobrança de dívidas. Daí surgiu seu apelido: "Gentleman Sunday", o "Cavalheiro Domingo". Selkirk conheceu Defoe na pensão Leão Vermelho, na Bristol do início do século XVIII. Ambos eram crentes fervorosos. A religião de Defoe era proveniente da rígida educação escolar, enquanto Selkirk se entregara à Providência nos titubeios da esperança, durante a estadia na costa do Chile. A crença comum criou a amizade e o autor conheceu o personagem, afinal, os laços com Selkirk não devem ter sido amealhados através da teoria econômica dominical extravagante de Defoe.
Defoe iniciou o movimento do realismo literário, abandonando o tratamento universal dos acontecimentos, através da narrativa em primeira pessoa e da determinação de lugares e datas. A estética passou a ser instrumento do conjunto de ideias defendido por Defoe a tal ponto que seu sucessor, Jonathan Swift, qualificou-o como um trapaceiro moralizador pela seriedade com que defendia seus valores na literatura.
O que é um autor? Qual a sua relação com a obra? J. M. Coetzee, (foto à direita) em seu discurso na entrega do Prêmio Nobel de literatura, tratou essas questões citando trechos de Robinson Crusoé. A pegada fresca na areia, encontrada pelo personagem enquanto caminhava pela praia... Seria de algum visitante da ilha ou do próprio náufrago? Aposto que era do Autor. Daniel Defoe encontrando Selkirk e transformando-o em Robinson Crusoé, na consciência repleta de valores e capaz de dominar a ilha, vencendo seus desafios. A metalinguagem atual também nasceu nessa pegada.
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