O relógio de prata do Capitão
Mergulhador traz à tona toda uma história de naufrágio de 1881
Danilo Chagas Ribeiro

11 Set 2009
H
á 9 anos um reflexo no fundo do mar deixou o britânico Rich Hughes curioso. Algo não mais do que uma polegada brilhava. Ele mergulhava em abril de 2000 em Pembrokeshire, uma região de naufrágios rasos no País de Gales, costa oeste da principal ilha da Grã-Bretanha. De início, pensou que fosse uma moeda parcialmente envolta em sedimentos, mas constatou que era um antigo relógio de prata. Mais tarde, já no barco de apoio, o relógio passou de mão em mão entre seus parceiros de mergulho. Descobriram que havia uma tampa atrás do relógio. Abrindo cuidadosamente, o máximo que conseguiram ler foi "Richard Richard".

Já em casa, Rich conseguiu ler: "Richard Prichard, Abersoch, North Wales, 1866". O nome deveria ser do dono do relógio, que habitualmente era gravado. Abersoch é ainda hoje uma pequena vila na costa do País de Gales, a 100 milhas ao norte de Pembrokeshire.

Busca pela história
Rich não ficou satisfeito com o achado e quis saber sua história. "Quando V. encontra algo histórico, tem a obrigação de ir atrás de sua história", disse Rich. Pesquisando por quase uma década, o mergulhador penou para desenlear a história de seu achado. Em 1970 um instrutor de mergulho havia descoberto lá um naufrágio, conhecido por GB Wreck. Tempos depois um mergulhador amigo de Rich descobriu no mesmo local um sino com as inscrições "Guanito", mas nenhum registro de naufrágio foi encontrado com tal nome. E nos registros encontrados não havia qualquer menção ao nome gravado no relógio.

Depois de quase abandonar a idéia, Rich utilizou a Internet como ferramenta de busca. Através do Google, chegou a um website da região de Abersoch, a cidade indicada no relógio. E com a ajuda do dono do site conheceu um historiador local que identificou registros de homenagens a Richard (mas não seu túmulo) pesquisando em arquivos do cemitério. Depois soube que, por ocasião do censo de 1851, ele foi encontrado a bordo de um navio no porto, como um marinheiro comum de 19 anos.

Para complicar as buscas, a região fala e escreve um dialeto do celta, tão inteligível quanto "Gŵr yn gwadu lladd ei wraig", e que nem os colonizadores romanos nem os britânicos conseguiram exterminar.

Morte misteriosa no mar
Rich (apelido de Richard), o mergulhador, descobriu que Richard, o dono do relógio, havia sido comandante de um navio-veleiro que transportava arroz de Burma (Myanmar), na Baía de Bengala, Indochina. Durante a viagem, o comandante protagonista da história morreu misteriosamente a 12 de maio de 1881, a caminho de Yangon, Burma. Seu corpo foi jogado ao mar, como de praxe. Rich e os pesquisadores que se aliaram a ele chegaram a informações que mostraram que o relógio (foto ao lado) provavelmente foi um presente de familiares ou de colegas quando de sua promoção ao cargo de Imediato de navios.

Seu navio chamava-se Barbara e tinha dois mastros com vergas e velas redondas¹. Foi construído em 1877, deslocava 1.082 toneladas e seu casco era de madeira revestido com ferro.

Como o relógio foi parar na costa do País de Gales?
Partindo de Burma, o destino do Barbara era Liverpool, cidade da costa oeste da Grã-Bretanha, que no século passado tornou-se mundialmente conhecida devido aos Beatles. O historiador David Roberts acredita que o relógio (foto de uma réplica abaixo) tenha ficado com o Imediato do navio para que o entregasse à viúva do comandante. Com a morte de Richard, o Imediato tornou-se capitão do navio: Captain Jones.

Na aproximação à Grã-Bretanha, o veleiro carregado de arroz fez a alegria dos peixes. O Capitão Jones provavelmente queria rumar o navio para Liverpool, pelo Mar da Irlanda, passando entre a costa leste da Irlanda² e Gales, através do canal St. George's, disse Rich. Mas era uma noite escura, a 22 de novembro de 1881, com chuva e ventos muito fortes, em pleno inverno. Passavam-se 6 meses da morte de Richard a bordo.

Provavelmente o Capitão Jones fez uma manobra equivocada, levando o navio em direção ao Canal de Bristol. "Estes navios não podiam dar volta - eles navegavam a, no máximo, 90º em relação ao vento³ ", disse Rich. Naquela noite as ondas podiam ter de 9 a 12 metros de altura. No rumo errado, navegando em direção aos altos penhascos da costa, e sem conseguir fazer a volta, o Barbara encalhou e afundou nas pedras de Freshwater Bay, Pembrokeshire.

Todos a bordo do Barbara salvaram-se no naufrágio, menos o Capitão, que foi ao fundo, a 8 metros da superfície, com o relógio de Richard. "É possível que ele tenha morrido com o relógio prateado no bolso", disse Rich à BBC, de Londres. "Os restos dele já se foram há muito tempo mas o relógio sobreviveu, possivelmente pelo fato de que estava enterrado em sedimentos, o que teria preservado o relógio", deduziu o mergulhador.

Garimpando em terra e no mar
Após a descoberta, Rich afirmou que sentiu a necessidade de entregar o relógio a alguém da família do seu dono original. Conhecida a história, faltava ainda a pior parte para Rich, que aparece à esquerda, na foto ao lado: encontrar os descendentes do Capitão Richard e entregar-lhes o relógio. "O relógio não era meu e eu queria retorná-lo a quem de direito", afirmou.

"Através de sua árvore genealógica, consegui encontrar os descendentes do capitão Prichard e me surpreendeu que eles ainda vivessem no norte do País de Gales", disse o historiador Roberts, que descobriu duas homenagens ao capital Prichard, uma em um túmulo de seus familiares e outra no túmulo de sua esposa e filho. A avó do dentista aposentado Owen Cowell, que recebeu a antiguidade no fim de agosto passado, era prima do Capitão Richard Prichard.

"Estou muito contente que o relógio vai voltar para casa depois de todos estes anos", afirmou Cowell. "Foi uma grande surpresa que meus ancestrais tivessem uma vida tão movimentada em navegação."

A peça, fabricada pelo relojoeiro Richard Thomas, do norte do País de Gales, foi exposta na semana passada no vilarejo por ocasião da Exposição Anual da prefeitura. Mais do que um velho relógio de prata, Rich Hughes trouxe toda uma história à tona, através de seu hobby e de seus princípios.

_______________
(¹) Velas "redondas" são velas quadrangulares, como as do navio-veleiro Cisne Branco, da Marinha do Brasil, que também utiliza velas latinas (triangulares)
(²) Terra do Jameson Whiskey
(³) Com vela redonda não é possível orçar (andar contra o vento)

Obs.: O banner de chamada para esta matéria na capa do site é uma montagem.
Fontes de consulta: Rhiw.com (incluindo fotos); BBC, CNN. Compilação e tradução livre do autor
Assuntos relacionados: País de Gales (Wikipedia) ; Página escrita em galês, dialeto do celta

Rota meramente ilustrativa do veleiro Barbara, de Cyanmar a Liverpool

Este navio de 2 mastros utiliza velas redondas,
como o Barbara, e ainda velas latinas entre eles.

 

Comentários recebidos

12 Set 09
João Reguffe

Há 20 anos comprei um castiçal de latão num antiquário. Nada tem de peça náutica, mas gosto da hipótese de que uma inscrição toscamente lavrada embaixo seja nome de navio.
Muito interessante a matéria, Danilo. Abração.

26 Set 09
José Tassinari

História de mar onde se conta retorno p'ra casa, mesmo sendo de objetos, sempre nos (povo das águas) emocionam. Parabéns Danilo.

03 Out 09
Andreas Bernauer

Vou por um sino de bronze na retranca do Canibal. Bela história, Danilo. Abraço.
Andreas Bernauer

03 Out 09
Sardá JCC
Muito bacana a história Danilo,parabens!/abração

Envie seus comentários
Nome
 
e-mail

 

 

 

 

-o-