20 Jun 2011
Danilo. Há anos atrás recebi de meu amigo Flavio Alcaraz Gomes um diário de uma navegada no Aventura
com o Dr Breno Caldas. Guardei com carinho. Agora te mando para a publicação no Popa, se achares
interessante.
Na semana passada liguei para a Maria Clara, sua viúva, que me autorizou a repassar aos amigos do Popa.
Acompanha o diário um report.
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TUTA
O ‘DIÁRIO’ FOI FEITO EM UM BLOCO DE PAPEL JORNAL APARAFUSADO. NO MEIO ACHEI DUAS NOTAS DE
1 MIL E 1 DE 100 CRUZEIROS AMARELADAS PELO TEMPO.
AO RELER O QUE ESCREVI, LITERALMENTE ‘NAS COXAS’ FIQUEI EMOCIONADO. QUERO DIVIDIR CONTIGO.
ABRAÇO.
FLÁVIO.
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Diário do Aventura
Jan/Fev 1969
Sábado. 28 Janeiro
Saímos às 15:30. Encalhamos 2 vezes defronte a barra de entrada do Arado. Mais adiante,
novamente diante da Ilha do Fco. Manoel. Vento regular. Ancoramos diante da Praia do Sitio. Jantamos arroz de
carreteiro. Vento Leste.
Domingo.
Dormi muito mal, na proa, cabine de bombordo. Um enorme luar às 3h me acorda. Parece dia. Todos roncam.
Saímos as 8:15 da manhã. Vento sueste. Entramos na lagoa às 8:30. Depois do café ao preparar o almoço, boto
cargas ao mar. Melhoro depois, sem remédio. Almoçamos roast-beef com batas e arroz. Me deito depois. Breno manda me acordar para ver o farol.
Cristóvão Pereira
Às 19:30, sempre com sueste, ancoramos ao largo da praia do Bojurú.
Caio n’água. Adinho e Cabelo vão buscar peixe, de barco. Jantamos tainha assada com batatas. Cerveja. Ficamos
conversando no tombadilho até às 20 para as 2!
Durmo ótimo.
"Às 9:30 chegamos ao yatch club. Encalhamos na entrada." |
Segunda-feira. 30/1
Às 7:30 de pé. Caio n’água, nadando em volta do barco, q tem 12 mts. de comprimento. Levantamos a ancora e depois do
café geral, e chá para o Dr., saímos. Ao 1/2 dia almoçamos puchero com grão de bico. Vento violento (nordeste) toda a
tarde. Plebiscito às 8 hs: S. José do Norte ou Rio Grande. A diretoria decide por Rio Grande. Às 9:30 chegamos ao
yatch club. Encalhamos na entrada. Desencalhamos balançando e depois puxando a âncora e acabamos por ficar
definitivamente encalhados. Cerveja com castanhas. Às 0 hora dormimos.
Hoje, terça-feira. são 12 hs.
Levantamos às 7:30 e fomos a terra de barquinho, puxando num cabo – ficamos presos por dois cabos, 1 no trapiche e
outro numa draga aqui ao lado. Banho e lavagem de pratos. Na volta faxina no barco, que está cheio de bolachas
do Dr. Venho à cabine e dormito. São 12:30 e o Dr. volta da terra com a bomba do motor que estava entupida pelo
lodo. Os trabalhadores da draga fazem um barulho medonho. Já perdemos 1/2 dia e possivelmente perderemos o resto hoje.
Conseguimos sair do problema rumando para um remanso ao lado do Farol do Norte. Embora a 200 metros da praia, não
conseguimos nadar até lá: muita correnteza.
Tomamos banho amarrados na corda. Jantamos alcatre assado c/batatas e molho champignon. Muito calor. Durmo mal
devido à temperatura.
"Olhamos para o barco e vemos rapazes nadando em volta e tentando subir." |
Quarta-feira, 31/1
Levantamos cedo: 6:30. Faz um dia maravilhoso. Vento nordeste. Saímos para o oceano do Mar cruzando os molhes.
O mar está uma lagôa, segundo o Dr. e seus tripulantes. Mas para mim é jogo; ondas enormes, distanciadas 200-300
metros, tipo montanha russa. Ancoramos defronte a praia do Cassino, lotada. São 12:45. Saímos o Dr., o “vice” e eu no
barquinho. Adinho e Paulo vão a nado. Estamos a uns 500 metros. Chegamos a terra sem problemas, cercados todos por curiosos inclusive o escultor Camipi. Olhamos para o barco e vemos rapazes nadando em volta e tentando subir.
Voltamos imediatamente, o Breno remando. Já estavam a bordo Adinho e Paulo, que voltaram do meio do caminho
ao ver o movimento. Levantamos ferro e viemos com o mar mais brabo. Cozinhamos um carreteiro em pleno mar e o
vamos comer às 4 hs já atracados à raiz do molhe da direita, a 50 mts. da praia. Nadamos até lá e compramos camarão
e 2 tainhas. Tomamos café às 9 hs e conversamos até a 1/2 noite. Começa a chover.
Quinta-feira, 2 de Fevereiro
Choveu toda a noite e amanheceu com chuva forte, o barco jogando tremendamente. Decidimos mudar de ancoradouro
e voltamos a motor para o largo do Canal do Norte. São 10 hs e chove a cântaros. O Dr. (foto) continua procurando sua carteira
de dinheiro, até agora desaparecida.
Rumamos para o Yatch: está soprando sul forte, a água subiu e esta dando calado. Cozinho no caminho. Paejinha, aproveitando o camarão q ontem compramos.
Atracamos sem problema. Siesta e banho. Às 9:30, depois do uísque vamos de taxi ao Cassino. Jantamos siri, camarão
e filé de linguado. Vamos depois ao bolão que fica no ex-hotel Atlântico e tomamos 2 chopps enormes cada um. Voltamos
no Volks do Jenuino Teixeira a 1:30.
Sexta-feira, 3 de fevereiro
Toda a tripulação acordou com caganeira, inclusive o Dr : só pode ter sido o chopp ou a falta da comida de bordo...
Dormimos pessimamente: mosquitos e Adinho, que ficou no convés ouvindo tiros. Incomodaram toda a noite. Saio com
o Dr. a pé ao centro onde ele compra a mangueira para desentupir a canaleta das escotilhas. Tudo joga e sinto falta
de estar a bordo. Almoçamos chá e bolachas do Dr. Tentamos dormir a siesta: nada. Adinho consegue tirar a chave
inglesa que caira sob o motor e q a dias estava atormentando o Dr. Agora só falta achar a carteira para sermos todos felizes.
Saio com Adinho e nos abastecemos no super mercado. Vamos ter que zarpar novamente pois o mar esta baixando. Parou de
chover. Jenuino aparece às 18:30 e fica de encontrar-se conosco na Raiz dos Molhes, para onde rumamos e ancoramos.
Adinho faz strogonoff. Jenuino chega: atiramos na água o nabinho (estamos a uns 50 metros da fímbria(?) amarrados a um cabo e o puxamos a bordo.
A comida é servida à luz de velas, que compramos hoje a tarde. Jenuino é despachado de volta à 1:00. Começa a ventar forte e resolvemos atravessar para o outro lado. Fazemo-lo em vôo noturno: o vice na frente perscrutando, Adinho no medidor de profundidade e o Dr. só olhando para a bussola. Chegamos vivos, ancoramos. Há muito menos vento e dormimos. Há tremenda fosforescência.
"Encontraram um navio soterrado a 3 milhas da costa" |
Sábado de carnaval
As 9:00 hs. aparece Jenuino a borde de uma lancha de pescador. Rumamos para o oceano do mar. Seguimos até Cassino e voltamos.
Mais tarde cozinho no mar: é horrível, quase enjôo. Voltamos às 3 hs. Almoçamos, Jenuino vai-se e rumamos para S. José do Norte, ancoramos pertinho da margem. Muita correnteza, vamos a terra, Breno, vice e eu no barquinho. O Prefeito, que é irmão do Breno, caça-nos com seu jeep e mostra-nos a cidade. Antes tínhamos visitado a Igreja, que tem mais de 200 anos. Mostra-nos a fabrica de desidratação de cebola em construção. Diz que os pescadores tiram no arrastão 70 toneladas de peixe por dia. Está S. José confinada entre os cômoros do mar e a lagoa. Está agora desmontando os cômoros e recuperando 24 hectares de lagoa.
Encontraram um navio soterrado a 3 milhas da costa. Fico de voltar com o João Mostardeiro para examinar a louça que retiraram. Voltamos lutando contra a correnteza. Jantamos e conversamos até tarde. O Dr. cai duro depois da bóia, iniciando a sinfonia de roncos.
Domingo de Carnaval
Acordamos tarde: 9:30. Com um violento nordeste contra. Seguimos, bordejando, até a barra do S. Gonçalo, onde depois de muitos dias tomamos um banho de água doce. Almoçamos às 3 horas. Bachieri aparece com uma lancha e indica-nos o caminho até Pelotas.Ancoramos nas docas. Às 9:30 saímos para a terra. Caminhamos, tontos com o barulho e o “jogar” das casas e ruas até a Rua 15. Jantamos no Bavária – filé com Chopp – voltamos a nos misturarmos com o poviléu da rua 15. Dou uma chegada na livraria onde participo a minha presença aos tios da Maria Clara. Cafezinho no Aquário e voltamos às 11:30. O barco está cheio de mosquitos. Dormimos as 0.00 hs.
"A correnteza contrária pouco a pouco vai-nos enchendo d’água" |
Segunda de Carnaval
Hoje, às 7.00 o Dr. tira todos da cama. Café e zarpamos em meio a neblina. Dia feio, vento contra. São 10:40 e estamos, sempre de motor, rumando para a feitoria. Achei Pelotas muito mais cidade do que Rio Grande. Amanheci meio resfriado do nariz. Não paramos para almoçar. Comemos sopa de ervilha, batata, arroz e bife feitos pelo Adinho. Progredimos, nos arrastando, até a falsa Barra Falsa, onde ancoramos a cerca de uma milha da praia. Para lá seguimos no barquinho, Claudio Cabelo e eu. A correnteza contrária pouco a pouco vai-nos enchendo d’água. Adinho segue a nado. Finalmente, e já assustados com a distância e o barco a encher-se, chegamos. Exploramos a praia deserta caminhamos a valer e voltamos, desta feita a favor da correnteza. Perco um sabão ao banhar-me aqui no barco. Já quebrei 2 copos.
Terça-feira
Hoje, Terça feira gorda são 12:00 hs. Ontem exaustos e depois de um arroz c/salsichas e ervilhas, fomos dormir às 22:30. Ninguém o conseguia, apesar do cansaço. O barco jogou violentamente toda a noite. Breno diz que acordou mais dolorido do que se estivesse andado a cavalo. Tomo sol e leio na proa. Continuamos bordejando o nordeste nos arrastando a passo de cágado. Recém passamos o Bojurú.
Depois do almoço, feito pelo Adinho, me deito. Acordo com o motor ligado: uma serena e imovível calmaria se abateu sobre a lagôa, enquanto um temporal se arma no sul. Em P Alegre a temperatura está pelos 34. Não sentimos calor, porém, ao cair da tarde o motor para: a bomba ou o filtro entupido. Ficamos mais de hora imóveis, tendo ao longe o Farol de Cristóvão Pereira. Breno e Cabelo consertam o motor. Simultaneamente surge o vento. Costeamos o Cristóvão Pereira e ancoramos. Cozinho alcatre assado. Nos deitamos as 11 hs. O temporal não desabou, apenas a chuva.
"A lente arrancada e 8 vidros de 6mm que a rodeavam quebrados" |
Quarta-feira de cinzas
Dormi maravilhosamente. Às 6:00 me levanto. Todos, menos o Cabelo, já estão acordados. Creio que já está na hora de voltarmos, mas penso que não será antes de amanhã. O Comandante e seus plebiscitos são inescrutáveis. Dia nublado e o vento mudou para sudoeste.
Café às 7.00 e às 9.00 saímos de barquinho até o Cristóvão Pereira, diante do qual o Aventura fundeou. Construído em 1861, 5 andares + o térreo. Lances de 10 degraus. 100 ao total. Seis tipos se escondem e aparecem desconfiados quando desembarcamos. Estavam cortando a machado a raiz de 3 figueirinhas localizadas dentro do pátio, calçado de grês e outrora cercado por um muro arrasado em meio do qual está o farol. Fazem fogo no térreo. Portas arrancadas, vidros quebrados. Ao alto a lente arrancada e 8 vidros de 6mm que a rodeavam quebrados, inscrições pornográficas nas paredes. Triste retrato de um povo já subdesenvolvido em estado ainda fetal. Voltamos revoltados e tristes. São 11:30. O barco se move. Cozinho lentilhas.
"mundo fascinante e desconhecido, sem problemas, sem incômodos, sem preocupações" |
Quinta-feira – Sitio
São 8:10 da manhã. Estamos nos preparando para encerrar a aventura. Acabamos de tomar café – levantamos às 7:00, e eu de macacão que usei todo o tempo, deitado no meu beliche. Ontem pegamos calmaria toda a tarde. Grande parte do trajeto fizemos com motor. Ao entardecer, aproveitando um fraco sul, botamos 5 velas simultaneamente, desde a spinnaker (balão), até a genôa (em lugar da spinnaker) a rabeca, ao lado da genoa, além da vela grande. Noite fechada chegamos ao farol, de Itapoã, cruzando por um barco todo iluminado, que depois de ter passado por nós, ancorou antes de cruzar a barra. Passa por nós, em seguida, o Cruzeiro, em sentido contrário. Às 10 hs ancoramos no Sítio. Faz sol e bom tempo todo o dia. A noite é estrelada. Conversamos até a meia noite. Durmo ótimo. Tomei nescau em vez de jantar. Com hoje se completam 13 dias de navegação – uma nova Aventura, num mundo fascinante e desconhecido, sem problemas, sem incômodos, sem preocupações. Estou gordo tostado e feliz.
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Transcrição: Luiz Morandi;
Foto Breno Caldas: João Hugo Altmayer; Na foto abaixo, o Aventura navegando no Rio Guaíba em 2007; Na foto em p&b um finisterre muito parecido com o Aventura, de autoria desconhecida.
O veleiro Aventura participando de regata no Rio Guaíba, em 2007
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