23 Fev 2011
No sábado pela manhã, 19 de fevereiro de 2011, três amigos cinquentões saíram para pescar em uma embarcação de recreio no Rio Guaíba, em Porto Alegre. Nas proximidades da Ponta Grossa algo inesperado os fez cair no rio, segundo informação de um deles. Até a noite de ontem, 22 de fevereiro, o dono da embarcação ainda não havia sido encontrado. A busca pelo Grupamento de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros deverá continuar no dia de hoje. Os outros dois acompanhantes foram resgatados por pescadores.
Em torno das 13 horas do sábado a embarcação de alumínio foi parada para ajustar o toldo, conforme teria relatado um dos participantes do passeio ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Quando a embarcação voltou a navegar, os tripulantes foram jogados na água. O barco continuou navegando sem comando, próximo aos náufragos.
O comandante Fernando Recuero aproximava-se da Ponta Grossa, zona sul de Porto Alegre, a bordo de seu veleiro "Mutuca", vindo do norte, tendo chegado ao local pouco depois do acidente ter ocorrido.
Quando observou a lancha navegando em círculos (foto ao lado), percebeu com o uso dos binóculos, que a embarcação estava sem tripulação. Levou alguns minutos para chegar ao local. Neste momento o barco de pescadores "Harmonia", que passava pelo local, iniciava o resgate dos náufragos.
Solicitando auxílio
A caminho da lancha, Recuero avistou um dos náufragos que boiava bem próximo à área onde o barco desgovernado navegava. Recuero fez pedido de socorro pelo canal de emergência do rádio VHF e foi atendido pela Comandante Christina (Tina) Silveiro, gerente do Clube dos Jangadeiros e ex-comodoro do Clube Náutico Itapuã. Tina tem vasta experiência em navegação, e participou de vários resgates. De Itapuã, a 15 milhas náuticas da cena, ela determinou que um bote de resgate do Clube dos Jangadeiros fosse ao local para prestar auxílio imediato. Os bombeiros foram também acionados.
Mão estendida
Antes que o comandante do "Mutuca" se aproximasse do náufrago, a embarcação de pesca "Harmonia" já o havia alcançado, e o resgatou. Na foto ao lado, o pescador estende sua mão ao náufrago na tentativa de alcançá-lo. É uma imagem dramática mostrando o momento do resgate, com o náufrago já agarrado à escada do barco.
A imagem mostra também a gana do pescador, aparentemente navegando em solitário, para tirá-lo da água. É tudo que um náufrago pode querer. Quem já esteve nesta condição conhece perfeitamente o enorme significado do gesto mostrado nesta foto.
Náufrago correndo o risco de ser abalroado pela lancha
O outro náufrago corria o risco de ser abalroado pela lancha desgovernada, que tinha o volante esterçado para boreste (direita). Veja na foto abaixo a marola indicando a trajetória da lancha e observe a posição do náufrago, com a cabeça para fora d'água. Com motor bem mais potente que o do veleiro, o pescador em seguida resgatou o outro náufrago, a mais ou menos 50 metros do primeiro.
Na foto acima, a lancha desgovernada e um dos náufragos ainda por ser resgatado |
Como parar uma lancha desgovernada?
A tripulação de um outro barco de pescadores tentou aproximar-se da lancha, sem sucesso. Como se vê na foto ao lado, a lancha oferecia risco de atingir o náufrago cuja cabeça aparece na metade inferior da imagem.
Mateus, tripulante do bote de resgate do Clube dos Jangadeiros, teve a presença de espírito de jogar um cabo ("corda") à frente da lancha para fazê-la parar, ao enroscá-lo no hélice. A embarcação foi então rebocada para a margem.
O Comandante Recuero aproximou-se do barco com os náufragos e, como médico, ofereceu auxílio e forneceu água. Os bombeiros navegaram pela área com os dois tripulantes resgatados, à procura do dono da embarcação, mas não obtiveram sucesso.
A embarcação
Segundo a Zero Hora, o empresário Ricardo Gimenes havia comprado a embarcação há 15 dias. Trata-se de um casco de alumínio novo, produzido em Campinas SP, da marca MetalGlass, modelo MG175, com 5,30m (17,5 pés) de comprimento e 2m de boca. Veja ao lado (Foto Tássia Kastner). O motor utilizado é de 90HP, potência máxima recomendada pelo fabricante.
Condições do tempo
O tempo era bom, com vento sul de 3 a 5 nós, e o rio estava sem ondas.
Sigilo sobre a investigação de acidentes
A divulgação das causas de um acidente são de grande importância para o meio, podendo evitar que um mesmo erro seja cometido por outros. A Marinha do Brasil instala inquéritos após os acidentes, ouve testemunhas e toma as providências que julga pertinentes. No entanto, a Marinha não divulga os resultados de seus inquéritos, ao contrário do que faz a Aeronáutica.
O Comandante Augusto Chagas trouxe há alguns anos uma publicação da autoridade marítima da Nova Zelândia contendo fartas informações sobre os acidentes averiguados. Apresentam o cenário, características da embarcação e da tripulação envolvidas, as condições do tempo, mais um relato do ocorrido com suas causas e consequências, e ainda outras informações.
Clique para ver um dos relatórios da publicação (em inglês).
A informação oferecida por um dos passageiros do barco acidentado ao jornal Zero Hora não contribuiu muito na elucidação da causa do acidente: "Honestamente, eu não sei o que aconteceu. O barco deu uma guinada abrupta para a direita e jogou nós três na água. Não sei dizer mais do que isso. Agora, a perícia vai apurar se houve alguma falha no barco, porque ele era novo. Não posso dizer mais do que isso.". Segundo informação que circula no meio náutico, os acompanhantes do dono da embarcação não teriam experiência náutica apreciável.
Especulações
Diante de um acidente desta gravidade, e na falta de informações para conhecer as causas, o meio náutico especula, como é natural que aconteça. Até porque sabem que não terão acesso aos resultados da investigação oficial.
Todos tentam chegar a uma hipótese razoável para explicar o ocorrido. O objetivo é evidente: conhecer eventuais erros para evitá-los no futuro. Isso de querer aprender com os erros dos outros certamente está relacionado ao instinto de sobrevivência.
Os navegadores que tem comentado sobre o acidente parecem concordar que tenha havido falha humana, sem no entanto disporem de qualquer informação que confirme a suspeita. É mera especulação. Segue abaixo um apanhado de hipóteses comentadas no meio náutico de Porto Alegre.
A Zero Hora informou que "Por volta das 13h, eles tentavam arrumar o toldo da lancha, quando o motor teria desligado. Ao religá-lo, a embarcação teria dado uma guinada e lançado os três na água". Os motores antigos podem ser ligados mesmo estando engatados e acelerados, condição que propicia acidentes pela partida súbita da embarcação.
O experiente comandante de lancha Marco Antonio Braun explica que os motores de popa atuais dispõem de um sistema de proteção que impede esta possível falha do piloto. Os motores de popa novos só dão partida estando desengrenados.
Na tarde de domingo navegadores comentavam na varanda de um clube náutico de Porto Alegre, que o motor poderia ter sido bruscamente acelerado logo após a partida, inadvertidamente, estando o volante totalmente esterçado para um dos bordos. Potência é o que não faltava a este conjunto casco/motor. Caso os tripulantes não estivessem bem sentados neste momento, poderiam ter se desequilibrado e caído n'água. Isso ocorre com relativa frequência com pilotos inexperientes ou distraídos. O fato do barco ter sido comprado há 15 dias não significa que o piloto fosse inexperiente.
A embarcação acidentada é destinada à pesca amadora e tem borda baixa em relação aos assentos, se comparada com uma lancha convencional e de mesmo porte. Veja ao lado a MG175, em foto do site do fabricante.
O casco da MG175 é em "V", o que confere boa navegabilidade, mas permite efetuar curvas com o barco mais adernado do que outros deste tipo, com cascos chatos. Se o barco foi muito acelerado na partida, como pode ocorrer inadvertidamente, estando todo o volante esterçado, o casco com desenho em "V" pode adernar bastante ao arrancar, e assim contribuir para o desequilíbrio dos tripulantes, principalmente estando em pé. Não vai aqui nenhuma crítica ao projeto ou à construção da embarcação. O fabricante tem tradição e seus barcos gozam de excelente reputação no mercado.
Caso o motor não tenha sido desligado na parada para verificação do toldo, mas apenas desengatado e em marcha lenta, a ocorrência de um engate acidental não é hipótese descartável. Uma simples batidinha na alavanca de comando (manete) não engrena nem acelera o motor a ponto de jogar todos na água, mas cair por cima dela poderia fazer o barco arrancar subitamente, embora eu nunca tenha sabido que tal fato tenha ocorrido.
"Kill switch"
Em embarcações a motor de pequeno porte, principalmente as que não tem convés, como era o caso, é recomendado o uso do dispositivo "kill switch", um fio de nylon em espiral que vai preso ao punho do piloto e ao receptáculo da chave de ignição, onde fica encaixado. Caso o piloto afaste-se do posto ou caia n'água, a extremidade conectada à ignição solta-se e o motor apaga imediatamente, fazendo parar a embarcação para permitir o retorno do piloto. Este dispositivo, comumente utilizado em jetskis, pode não ser muito eficaz se o vento e as ondas afastarem a embarcação do náufrago rapidamente. Para tirar proveito deste sistema, o piloto caído na água deverá estar consciente e em condições de nadar até sua embarcação. O fato do dono do barco ter caído n'água e não mais ter sido visto à tona pode sugerir que tenha batido com a cabeça na borda ao cair, e ter ficado inconsciente.
Colete salva-vidas
A utilização de coletes salva-vidas representa, de modo geral, desconforto, principalmente em dias quentes, como era o caso. Ao contrário do que alguns imaginam, a presença de coletes a bordo é obrigatória, mas sua utilização, não, com algumas exceções. Salvo melhor juízo, a utilização de coletes na embarcação em questão não é obrigatória. A foto acima, do site da MetalGlass, mostra um piloto utilizando colete em um modelo de embarcação um pouco maior que o acidentado no Guaíba.
Navegando em uma embarcação como esta ou em botes infláveis, costumo vestir colete já ao embarcar. Não é rara no meio náutico a crítica jocosa pelo uso do colete, como se desmerecesse o usuário, e não cabe aqui julgar o tipo de personalidade de quem age assim. Igualmente utilizo colete quando preciso sair do cockpit e ir ao convés do veleiro quando navego sozinho ou acompanhado de quem não possa me resgatar em caso de queda n'água.
Falha mecânica
Diante das informações conhecidas e dos comentários e especulações ouvidos, foi levantada uma questão relativa a um tipo de falha mecânica que poderia causar acidente ao arrancar a embarcação. Se o motor falha em lenta ao pegar, a tendência do piloto é acelerar bastante logo que ele pegar para que não apague novamente. Para isso, é preciso logo engrenar para poder levantar o giro além do limite da baixa rotação permitida quando desengatado.
Que atire a primeira pedra...
Experimentei a condição de náufrago aos 17 anos, por ocasião de uma tempestade durante passeio em uma lancha cabinada. Faz tempo que perdi a conta de quantos encalhes presenciei a bordo. Estive embarcado à deriva algumas vezes. Já fui socorrido e já fiz resgates. Já reboquei e já fui rebocado. Faz parte deste esporte que pratico há mais de 40 anos. Que atire a primeira pedra quem tiver experiência razoável e não tenha cometido erros navegando.
Erros podem acontecer por cansaço, sono, distração, inexperiência, negligência, ignorância, soberba, e até por ingestão de bebida alcoólica, dentre tantas outras causas. Erros embarcados podem ter consequências mais sérias do que em terra firme. Ao comete-los, o acaso conta muito no desfecho.
Parabéns
Ao pescador não identificado, a bordo da embarcação Harmonia, os parabéns por ter salvo duas vidas.
Buscas
Na noite de ontem o Grupamento de Busca e Salvamento do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre informou que as buscas costumam ter sucesso em 2 a 3 dias nesta época do ano. Com a mudança da direção do vento, a busca tornou-se mais difícil.
A costa da Ponta Grossa tem muitos matacões e galhos encalhados que afloram com o rio baixo como está atualmente, dificultando ainda mais os trabalhos.
Inquérito
A Delegacia da Capitania dos Portos em Porto Alegre certamente já abriu inquérito para averiguar o acidente, o que, na medida do possível, deverá permitir conhecer as circunstâncias e os eventuais erros que o causaram. O prazo de conclusão é de 90 dias, normalmente. Que nós navegadores possamos tirar proveito dessas investigações. Será, sem qualquer dúvida, uma boa contribuição para a segurança do tráfego aquaviário.
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Assuntos relacionados: A garra dos "peludos" e Acidente a bordo na costa gaúcha
Aurélio Buarque: Naufrágio
- Ato ou efeito de naufragar. ... / Naufragar: 1. Ir a pique, soçobrar (a embarcação). 2. Sofrer naufrágio (os tripulantes). ... Náufrago: ...3. Indivíduo que naufragou. ...
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