Náufragos
A notícia do náufrago encontrado
nas I. Marshall inspirou esta oportuna crônica
Nílson Souza


08 Fev 2014
Somos todos náufragos de nossas memórias. Toda vez que falamos do passado, reescrevemos nossa própria história com outras tintas, selecionando lembranças que nos agradam e descartando muitas das que nos fazem sofrer.
A história do náufrago salvadorenho salvou a semana, se me permitem o trocadilho. O barbudo passou mais de um ano à deriva em alto-mar, bebendo sangue de tartaruga. Ou mentiu. Ninguém acreditou muito que um homem submetido a tamanha privação pudesse aparecer gordinho e corado meses depois de se perder no oceano, em meio a uma tempestade. Mas os colegas do pescador de tubarões confirmam seu desaparecimento no México, no final de 2012, no mesmo barco de fibra de vidro que apareceu estropiado nas ilhas Marshall, 10 mil quilômetros adiante. Coisa de filme.

De certa forma, o fato guarda semelhança com o oscarizado As Aventuras de Pi, aquele em que um jovem indiano sobrevive por semanas num bote salva-vidas, na companhia de um tigre-de-bengala. Tigres e tartarugas são muito diferentes, sei disso. A semelhança está naquilo que não vemos. O filme, além das cenas belíssimas, tem um dilema no final: ou você acredita na história fantasiosa da arca de Noé em que se transformou o barco à deriva, ou encara uma realidade dolorosa e cruel, protagonizada por humanos que se entredevoram na busca desesperada da sobrevivência.

Somos todos náufragos de nossas memórias. Toda vez que falamos do passado, reescrevemos nossa própria história com outras tintas, selecionando lembranças que nos agradam e descartando muitas das que nos fazem sofrer. Não o fazemos por mal. Queremos agradar, queremos ser felizes, queremos que os outros nos reconheçam. Imagine-se então um homem sozinho, no meio do oceano, sem testemunhas nem câmeras espiãs como essas que nos acompanham por todos os lugares nas cidades. Esse homem, até pela licença poética de seus delírios, pode reinventar a sua aventura do modo que bem entender.

Há muitos pontos obscuros na história de José Salvador Alvarenga. Não se sabe exatamente como seu companheiro de barco morreu, como ele se manteve tão saudável com pouco alimento, como driblou o sol, como encontrou tantas tartarugas para beber. Talvez ele até conte algum detalhe escabroso de sua viagem sem destino quando virar personagem de livro ou filme, pois logo alguém vai querer faturar em cima desse episódio.

Aí, a gente escolhe no que acreditar. Por enquanto, fiquemos com o milagre da sobrevivência num mundo em que todos somos náufragos de esperanças.
Fonte: Nílson Souza/Zero Hora/Segundo Caderno, 08-02-2014

 

 

Comentários recebidos

12 Fev 2014
Pedro Paulo Gianini
O estado da pintura do costado do barco náufrago estava bem dizer perfeito para mais de ano no mar. Por dentro do casco ainda mais pra quem comia peixe e tartaruga estava no mínimo excelente. Parabéns ao náufrago pelo baita capricho.

12 Fev 2014
Roberto Casagrande
O "náufrago" não tinha ferimentos do sol, estava em bom estado de saúde. Vou começar a comer tartaruga. Roberto Casagrande

09 Fev 2014
Mario Ramos

Podem escrever: é uma fraude. Não existem milagres.



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