Uma aula sobre como conviver com lobos do mar
Faleceu o grande velejador argentino setentão Victor Otaño
Jorge Albrecht Filho
(Primeira e terceira fotos, de autor(es) desconhecido(s), encaminhadas por Alberto Kling)

 

O grupo [POPACOMBR] no Yahoo! foi criado há mais de uma década e reúne velejadores de todo o Brasil e de alguns outros países.

Passam pela pauta do grupo diariamente dicas, negócios, conselhos, opiniões, histórias e estórias. Tudo, claro, voltado ao prazer de navegar, ou mais especificamente, de velejar.

A morte do Comte argentino Victor Otaño gerou uma interessante troca de mensagens no grupo do Popa, aí abaixo reproduzida.
O Cmte Jorge Albrecht Filho coroou o tema. Leia mais abaixo.

Danilo Chagas Ribeiro

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Date: Tue, 19 May 2015 14:15:14 -0300
Subject: [Flotilha Guanabara] O mundo perde um grande velejador
From: lguerr@attglobal.net

Pessoal, é com grande tristeza que comunico o falecimento de um 
grande e autêntico velejador. O Argentino Victor Otaño, que morou 
durante anos na Vila do Abraão em seu Van de Stadt 21.

Para quem não sabe da história, aí vai. Na crise de 2002 na Argentina,
Victor teve sua vida financeira arrasada e com apenas um cartão
de crédito nas mãos, sem qualquer outra fonte de receita, pegou
todo o crédito que tinha, comprou comida e colocou tudo dentro do seu
veleiro Marangatu (segue foto). Subiu a costa brasileira em solitário, 
sem GPS, sem piloto automático (só na navegação tradicional) até 
chegar na Ilha Grande. 
Passou necessidade até ser convidado para trabalhar na Angra Charter. 

Vendo que seu ciclo no Brasil tinha terminado, pegou o seu Van de Stadt 21
e planejou sua singradura de volta a sua terra natal.
Chegou até o Uruguai, entre Colonia e Montevideo, visitou sua família e depois
desta visita faleceu dormindo. De acordo com sua irmã, Victor estava lúcido 
e ainda forte fisicamente. Não sofreu. Se despediu em paz.

Victor me recebeu diversas vezes para contar histórias e ouvir histórias.
Era velejador de verdade.

Sergio Sperb

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De: popacombr@yahoogrupos.com.br [mailto:popacombr@yahoogrupos.com.br]
Enviada em: terça-feira, 19 de maio de 2015 18:02
Para: popacombr@yahoogrupos.com.br
Assunto: Re: [POPACOMBR]: Nota de falecimento [2 Anexos]

[Anexos de =?windows-1252?Q?S=E9rgio_Sperb?= incluídos abaixo]

Prezados,
Este velejador, esteve faz pouco tempo no Veleiros Saldanha da Gama em Pelotas-RS, fez um tour pela lagoa Mirim e seguiu viajem p/ o sul, estou anexando duas fotos que tirei no trapiche do VSG.
Sds: Sergio Sperb / Solares

 

Em 19 de maio de 2015 16:28, Alberto Kling aokling@hotmail.com [popacombr] <popacombr@yahoogrupos.com.br> escreveu:o

O Sr. Victor deve ter passado por ai, no sul, na vinda para a Ilha Grande e ou retorno a Argentina.
Caso alguém o tenha conhecido, repasso a nota de falecimento.

Tive a oportunidade de velejar com o mesmo na Ilha Grande, e por coincidência o Cisne Branco estava ancorado na área.
Solicitamos permissão para ir a bordo em visita e fomos muito bem recebidos. Lembro que o Sr. Victor ficou encantado tanto com o navio quanto com a receptividade que tivemos.

Que bons ventos o levem ........

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Em Pelotas, no Saldanha da Gama (foto Sergio Sperb)

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Uma aula sobre como conviver com lobos do mar
Jorge A. Albrecht Filho

 

Em 19/05/2015, à(s) 19:45, Engº Jorge A. Albrecht Filho jorgealbrecht@terra.com.br [popacombr] <popacombr@yahoogrupos.com.br> escreveu:

Prezados!

Creio q conheci este senhor.

Prestem a atenção na história q contarei rapidamente:

Meu barco estava em Floripa e precisava trazê-lo para Poa lá por março ou abril de 2014. Numa das tentativas, no aguardo da janela de tempo certa, saí do clube em Floripa e fui para a praia do Sonho aguardar a hora do zarpe para Rio Grande.
Chegando no Sonho à tardinha, bem no canto do morro, lado sul, fundeei, montei o bote e fui para a beira da praia dar uma caminhada e observar um estranho barquinho em terra, empoleirado e sustentado um pouco mais alto q a quilha, por estacas e goleiras de madeira, cheio de cabos de sustentação e outras gambiarras, tudo uns 50m da água.

Chegando à praia, no ato apareceu um senhor, setenta e poucos anos, com aparência um tanto judiada da vida e do sol, barba grande, magrão alto, argentino, de calção e chinelos, pronto a puxar o bote e conversar. Aparentava, sem dúvida, um velejador cansado, parecia querer conversar e trocar impressões. Chamou-me a atenção sua humildade, tonalidade de voz, extrema simplicidade e, natural aos homens do mar... suas histórias. Elas me interessavam muito afinal queria saber como colocara seu barquinho naquele lugar, naquela posição, pra quê?, como chegara ali, de onde vinha e ia, enfim, saber e aprender com quem tem tanto conhecimento para chegar até aqui, naquela idade, naquele barquinho com quase nada, melhor... tudo, para ele!

Conversa vai e vem, já começava a anoitecer e me sentia responsável e obrigado a atendê-lo em alguma coisa, dado à sua precariedade de condições e meu interesse. Resolvi convidá-lo a jantar comigo. Se esgueirou pra cá e pra lá em aceitar, insisti e aceitou, que bom, já começava a me sentir aliviado.

Já no barco, de início nada queria comer ou beber e, lentamente, foi se abrindo na conversa. No decorrer, mesmo afirmando não comer/beber isto ou aquilo dado seu costume ou limitações, saboreamos uma bela janta que fiz e tomamos um bom vinho, até quase meia noite. Para meu agrado, ele repetiu duas ou três vezes o prato servido.

Das histórias contadas, sem forçar a memória lembro:

- Era da região das montanhas próximas à Bariloche. Tinha um comércio e na recessão argentina do início dos anos 2000, quebrou. Só sobrara o barco o qual navega num lago da região. Conseguiu levá-lo até Buenos Aires e colocá-lo no mar. Velejou durante meses até chegar a Angra;

- O veleiro era pequeno, 21 pés, bem judiado. Afora casco, velas, um motorzinho precário, quilha e leme, mais quase nada. De eletricidade havia uma bateria pequena, uma pequeníssima placa solar, uma lâmpada interna e uma externa (sinalização noturna) e só. Nada de piloto ou eletrônicos. Duas ou três cartas gerais. Água ele levava em garrafas de 5 lts enchidas na torneira. Sem banheiro e pias. Um fogareiro. Internamente o barco parecia uma caverna. Medidas de profundidade ele fazia com um peso e barbante. Perguntei como ele fazia para medir a profundidade velejando? Respondeu-me q bastava atirar o peso prá frente. E comida? Comia pouco, quase nada. O que dava para levar plantado levava em floreiras. Frutas e verduras comprava verdes e comia primeiro o que amadurecia primeiro. Também comia arroz. Dificilmente peixe, não pescava. Carne, quase nunca;

- O argentino era um quase maluco, digo quase pq velejou até Angra, ficou pouco mais de 10 anos por lá trabalhando para sobreviver e começara a voltar prá casa com saudades dos filhos e netos, querendo viver seus derradeiros anos junto aos seus. Sabia o que queria e, note-se, sem qualquer dinheiro. Batalhava o que comer para o dia. No fundo... nada de maluco!;

- Naquela noite o que mais o preocupava era como fazer para dar entrada no seu barco no Brasil?!?!

Aí me contou mais esta interessante proeza: - quando chegou em Angra deu entrada no Brasil e ficou pela região por mais de 10 anos, alguns deles ancorado em frente à Capitania dos Portos de Angra; - como queria retornar, achou por bem dar saída e foi à Capitania. Todos acharam estranho que ele estava mais de 10 anos com o barco no Br e ninguém notara. Embromaram a vida dele por uns dias e depois o liberaram; - velejou (muitos dias de mar andando a 2 ou 3 kt) lentamente até Floripa passando por poucas cidades costeiras. Nessas, onde parava alguém sempre o acolhia dando-lhe um pouco de mais condições, quer em roupas, comida e até na manutenção do barco.

Prestou serviços de todos os níveis para ganhar um $$$. Fez menção a casos e lembro como ele era grato ao que fizeram por ele lá em São Francisco do Sul – SC; - a viagem de Angra à Floripa fora cansativa e de muita reflexão e chegou à conclusão que não iria aguentar velejar ainda até Buenos Aires com tudo que envolve o trajeto – tráfego, viagem de semanas no mar, precárias condições gerais (barco, saúde, coração, saudades, etc...), meteorologia, não queria perder todo este tempo, etc...; tinha preocupações com a fama de Rio Grande, das condições da entrada, marés, correnteza, tráfego e ele ter de entrar lá para reabastecer depois de mais de duas semanas de mar segundo suas previsões, afora as questões meteorológicas envolvidas; - chegando na região de Floripa pesquisou e achou melhor ancorar do lado norte da Praia do Sonho. Mais tarde pulou para o sul. Fez amizade com pescadores.

Chegou à conclusão que não precisava mais provar nada para ninguém e admitia não querer velejar até BUE, tb pelos riscos. Ele, os pescadores e moradores do Sonho o ajudaram a tirar o barco dágua, arrastá-lo para a base do morro longe da praia e elevá-lo do chão; - seu plano era deixar o barco ali, voltar para a Argentina de ônibus, arrumar uma camionete com reboque emprestados e vir buscar o barco ainda durante 2014; - acontece que já tinha dado saída no barco com destino a Argentina e agora, alterados os planos, o barco permaneceria no Brasil por mais um tempo, então queria dar entrada no Br novamente e não sabia se a Capitania iria aceitar. Tb pensava como sair por terra la em Uruguaiana sem papéis. Expliquei o que pude a ele. Pesquisei dúvidas dele pela internet. Orientei-o a como sair de ônibus do Brasil pelo RS, enfim, conversamos muito.

- A companhia e a conversa eram agradáveis. Vivenciava as histórias contadas e, cheio de curiosidades perguntava mais, visto q os detalhes eram ainda mais interessantes, lições de vida, muita simplicidade e perseverança;

- Tinha vivido muito nos últimos anos. O que mais queria era voltar para os netos e para a família, viver com eles o resto da vida na sua localidade onde todos o esperavam. Os filhos o chamavam.
Perguntei a ele pq não vendia ou doava o barco a fim de reduzir as despesas consequentes dos planos para levá-lo de volta? Notei que me respondeu um pouco ofendido. O  barco era seu amigo, seu parceiro de tantas agruras e alegrias e que isto ele jamais iria fazer. Queria levá-lo de volta para sua casa, seu lago, velejar com os netos e presenteá-los. Tinha uma química com sua embarcação como todos nós temos com as nossas.

- Próximo da meia noite levei-o de bote para a praia. Disse que na outra manhã iria a Floripa, na Capitania. Despedimo-nos e agradecemos um ao outro a oportunidade. Não o vi mais.

Que bons momentos e lições tive com este navegante. Que oportunidade! Belíssima pessoa! Em tão pouco tempo, tantos valores transmitidos!
Que ele continue contando e cantando sua vida noutros mares, pois sempre haverá ouvintes!

Escolho duas frases que juntam as histórias, com o comandante:

“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim".
“Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo me é permitido, mas eu de nada (nem de ninguém) serei escravo”.

Tenha certeza, o mundo perde um grande velejador!

Engº Jorge A. Albrecht Filho,

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De: popacombr@yahoogrupos.com.br [mailto:popacombr@yahoogrupos.com.br]
Enviada em: terça-feira, 19 de maio de 2015 20:30
Para: popacombr@yahoogrupos.com.br
Cc: altomar@yahoogrupos.com.br; flotilha-guanabara@googlegroups.com; lguerr@attglobal.net
Assunto: Re: RES: [POPACOMBR]: Nota de falecimento

Francesco Colombo said:

show de relato! Jorge. BV 

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De: popacombr@yahoogrupos.com.br [mailto:popacombr@yahoogrupos.com.br]
Enviada em: terça-feira, 19 de maio de 2015 20:19
Para: popacombr@yahoogrupos.com.br
Assunto: Re: [POPACOMBR]: Nota de falecimento [1 Anexo]

[Anexos de joel incluídos abaixo]


Jorge!

Foi ele sim, que voce conheceu. Eu o conheci em 2010 na refeno e descemos juntos ate Salvador. Ele estava a bordo do Tauhiri do Paulo. Era um legitimo homem do mar, muito adaptado e vivendo como gostava. Anexei abaixo, uma foto dele (de camisa listada) no Easy Going, em Salvador, junto com o comandante Pires, do Rebojo de jaguarão.

Joel La Nina


Foto Joel La Niña

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De: popacombr@yahoogrupos.com.br [mailto:popacombr@yahoogrupos.com.br]
Enviada em: terça-feira, 19 de maio de 2015 18:10
Para: popacombr@yahoogrupos.com.br
Assunto: Re: [POPACOMBR]: Nota de falecimento

Não o conheci, mas em respeito a sua memória e a sua história, vou tomar um whisky em sua homenagem, hoje.
Francisco A Stockinger

25 Mai 2015
Jorge
Caros amigos, infelizmente nao conheci o Victor, mas fiquei curioso sobre a historia dele e principalmente as historias sobre ele... Alguem mais teria outras historias do Victor para contar? Estou pensando em publicar algo sobre ele nas edicoes regionais da revista Nautica (Nautica Sul e Nautica Sudste) que eu edito, caso o amigo Danilo nao se incomode com a minha invasao no seu valioso site, do qual sou leitor  assiduo Abcs Jorge de souza Jorge
_____
Jorge,
Claro que não me incomodo.
Abraço,
Danilo

24 Mai 2015
Ernesto Pires

Victor veio  da cidade de Rio Grande, nos visitar (de ônibus) ao Antônio Azambuja e a mim, os quais havia conhecido durante a REFENO de 2010. No retorno de F.Noronha convivemos em Angra quando êle ainda fazia charter no Tuareg. O convenci a trazer o Marangatu para Jaguarão afim de se conseguissemos uma carreta(a qual tinha certeza que ia conseguir, infelizmente me enganei), já haviamos acertado tudo nas alfandegas brasileira e uruguaia, ir pelo Uruguai por terra até o Rio da Prata onde pretendia deixar o barco, ir para San Martin de Los Andes, sua terra natal e posteriormente levá-lo navegando até Bahia Blanca  de onde por terra o transportaria para o lago Lakar que banha San Martin, afim de navegar com os netos e desfrutar seus últimos dias. Infelizmente não nos emprestaram a carreta que comportava o barco (é um Vand Stad de 21 pés). Resolvemos então que a única maneira era ir navegando, como aliás já pretendia fazer quando estava no ICRGrande. Fui então com êle de Jaguar  ão até a vila de Santa Isabel já no canal São Gonçalo que une a Lagoa Mirim a Lagoa dos Patos, onde pude constatar que o Vand Stad era firme e navegava direitinho ( a lagoa estava bem mexida com o vento sul) seguindo êle no dia seguinte para Rio Grande. Estive em Punta del Este dia 10 de abril e êle havia passado por lá dia 8, tendo lançado ancora bem perto da praia mansa e de onde eu me encontrava. Infelizmente cheguei lá atrasado. Soube que entrou no porto de La Paloma onde pretendia visitar uns amigos feitos quando subiu para Angra, pois ficou em La Paloma uma boa temporada tendo trabalhado inclusive em barcos pesqueiros (trabalho conseguido pelo pessoal da hidrografia de La Paloma com quem fez grande amizade) segundo me relatou. Quando esteve em Jaguarão conviveu muito comigo e com os amigos Antônio Azambuja e Geraldo Ferreira. Nos propusemos a dar-lhe uma boa acolhida e creio que conseguimos nosso propósito. Me comovo em saber que desde Florianópolis já pretendia levar o barco  por terra. Infelizmente daqui tambem não foi possivel por não conseguirmos a tão famigerada carreta (que Deus "proteja" quem não nos quiz emprestá-la). Talvez não tivesse se extressado tanto e pudesse chegar a sua terra natal. Deus escreve certo por linhas tortas, pelo menos morreu dormindo e não sofreu na morte o que talvez tenha sofrido em vida. Victor leva o nosso respeito, a nossa amizade. Com certeza pela tua simplicidade, tua educação e teu carisma, serás recebido pelo Pai Eterno. Saudades.
Ernesto Pires - Veleiro REBOJO

24 Mai 2015
Cesar R. Reksidler

Tive a oportunidade de ter o Victor em minha residência em Capri São Francisco do sul, em seu retorno a Buenos Aires. Fiquei triste com a notícia de seu falecimento. E com muito orgulho de ajuda-lo.  Conversamos muito, e me falava da saudades de sua terra natal e família, e o quanto significava seu retorno. Um verdadeiro lobo do mar! E acredito que ainda estará a navegar dentro de nossos corações, e lembranças que estarão muito bem guardadas em nossas vidas como um exemplo de atitudes e força, e de quanto nós como pessoas podemos e devemos olhar o mundo com mais carinho e atenção. pois fronteiras não existem!
Cesar R. Reksidler

20 Mai 2015
Amauri Viana

Caros amigos!!! E com muita tristeza que abro a pagina do Popa e vejo a noticia do falecimento do amigo e grande velejador VITOR OTAÑO.
Como foi bem descrito em comentários anteriores ,grande lobo do mar, mas acima de tudo  um ser humano admirável, pessoa muito simples , mas com uma historia de vida notável .
Com certeza hoje navega em mares calmos!!! Bons ventos e descansa em paz !!!
Amauri Viana

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