Naufrágio do veleiro Vagabundo
Impressionante relato sobre o naufrágio de veleiro ao largo de Rio Grande RS, em 1982
Newton Ribeiro

27 Jan 2015
N
unca me pronunciei a respeito do acidente com o vagabundo, mesmo lendo as besteiras que escreveram naquela ocasião...e bem mais tarde também!
O jornal Zero Hora publicou uma historia errônea que foi publicada misturada a uma matéria envolvendo contrabandistas, (acho que do Mato Grosso, não recordo bem). Foram bastante infelizes ao redigir a matéria e na colocação, ao lado de outras que não tinham relação nenhuma com o naufrágio. A matéria fez parecer que meu pai estaria contrabandeando com os caras. Imagino como devem ser estes jornalecos quanto a idoneidade dos fatos, pois quando estamos relacionados com a verdade vimos que não é nada daquilo do que publicam. Na verdade não adianta contestar, pois o mal já foi feito. Em uma entrevista que dei num outro jornal, a matéria também não saiu como combinado. Publicaram fatos distorcidos.
O negócio é deixar na mão de Deus... Ou esperar por uma oportunidade, como estou tendo agora, para corrigir o que disseram e falaram.

A partir de agora passo a contar o que aconteceu realmente naquele triste episódio, a verdadeira história...
...Iríamos a Montevidéu para apanhar algumas coisas para o Vagabundo e outras para uns amigos de meu pai. Havíamos encomendado uma série de instrumentos e outros materiais náuticos para equipar o barco, através de um sistema conhecido por “entrepor”, que consiste em uma importação feita para o Uruguai, apanhando-se o material naquele país. A coisa era até micro-filmada, só não se pode retirar o material de bordo. Já havíamos feito esse tipo de importação com o para as velas do Vagabundo. Dessa vez iríamos colocar um piloto automático para a roda de leme, um ecobatímetro mais moderno e outras aparelhagens. Seria chegar ao porto de Buceo, embarcar as coisas e retornar para Rio Grande.

Alguns dias antes da partida havia tido uma vazante muito violenta, pois até o baixio em frente ao Mercado Público de Rio Grande ficou de fora. Não pudemos sair no dia combinado porque a água dentro do clube secou a ponto de se ver o barro entre um barco e outro.
Depois entrou um vento sul, forte, o qual durou por alguns dias, a água subiu novamente e o nível da Lagoa ficou normal.
A barra tinha sido liberada há dois dias, então resolvemos sair na noite do dia 13 de julho de 1982. A tripulação era o meu pai, o amigo Luizinho Lourenço e eu.

Chegamos no RGYC às 21:30 horas, terminamos de revisar e acondicionar o material e saímos a motor, pois não tinha vento. Aproveitamos a corrente de vazante e seguimos devagarzinho, arrumando as coisas que embarcaram de última hora, aproveitando para tomar um bom café, pois aquela noite estava muito fria.

Era quase meia-noite quando saímos na barra, como estava bem calminho saímos pelo lado sul do banco do Rio Chico, com todas as velas içadas para aproveitar a brisa. Lembro que teve um boato que diziam que a Praticagem da Barra havia nos aconselhado a não sair. Uma baita mentira! Não falamos com ninguém naquela noite!

Tínhamos os papéis da Capitania dos Portos e da Polícia Federal, tudo em dia e liberado.
Entramos no oceano comigo no leme, o Luizinho sentado no cockpit, conversando e o pai lá dentro, escrevendo o diário de bordo e preparando algumas coisas, entre elas os coletes salva-vidas e os cintos, para a passagem da noite.

Tudo corria tranqüilo até que o pai veio na escotilha e perguntou se tínhamos visto ou sentido uma “crescente”. Nós nos olhamos e dissemos que não tinha visto nada, aí ele disse: “- Vamos voltar, entrar à barra e sair amanhã, pois isto está estranho! Sem mar e vento e ter passado uma crescente por nós!? Ainda mais à noite, pois não se sabe de que lado ela pode vir.”

Retornamos então, rumo à boca da barra. Tinha-mos uma boa visão do lampejo do farol da cabeça do molhe. Passaram-se alguns minutos e escutamos um estrondo. Estávamos com a luz de cruzeta ligada nesse momento e, de repente, sem saber de onde vinha, apareceu uma onda muito alta que quebrou e entrou pela popa. As velas estavam caçadas devido a não ter vento e a onda passou literalmente por cima de nós. Meu pai, depois da primeira onda, e sabendo de onde ela vinha, deu toda maquina à frente e girou cento e oitenta graus. Entrou em orça no rumo da onda e escutamos o segundo estrondo. Não conseguimos ver a crista da onda, mas pegamos ela de proa. Tudo bem! Mas o barco andou de ré e saiu dela atravessado, ou melhor, arribado, aí não deu tempo de entrar na orça para esperar a terceira onda, que entrou de través. Foi uma montanha de água por cima do barco e como as velas estavam caçadas, a pressão fez com que o barco girasse cento e oitenta graus, ficando desse jeito, com o casco para cima e com o motor funcionando em disparada.

Foi tão rápido que fiquei no mesmo lugar que estava, dentro do cockpit, com ar, até que o motor parou de funcionar. Escutei meu pai chamando: “- Filho, filho! Aonde estás?” Aí eu mergulhei e saí para fora. Ele já vinha se aproximando do barco, pois foi arrancado do timão com extrema violência. O amigo Luizinho estava agarrado na popa do Vagabundo. Quando eu saí foi um alívio para eles, pois até então eu tinha desaparecido.

O pai nos disse que o barco iria desvirar sozinho, que o costado de boreste iria subir e que ai teríamos que começar a descer para que quando retornasse ao normal estaríamos dentro do cockpit. Dito e feito! O barco começou a desvirar bem como ele falou, e com os três dentro do barco.
Começamos então os procedimentos de salvatagem e a verificação dos estragos: O mastro havia ficado dependurado para o lado de bombordo, seguro pelos estais; A baleeira também ficou junto ao casco, mas lá em baixo; A trava do paiol de proa foi arrancada e as duas âncoras grandes, mais cabos de fundeio e correntes foram perdidas; O paiol do cockpit a mesma coisa, arrebentou a trava, a portinhola abriu e despejou âncoras, cabos e outras coisas no mar; Um molinete, o de boreste, havia sido arrancado, saindo inclusive com um pedaço da braçola; Arrebentou a manilha do traveller e ele saiu como um papel.

O pai pediu para eu entrar na gabine para começar a fechar os registros. Nesse meio-tempo tentei pedir um mayday pelo VHF, mas não adiantava nada, pois o mastro estava de ponta cabeça e com a antena no tope. Só se fosse pedir ajuda para os peixes!
As baterias começaram a entrar em curto-circuito, pois a água estava acima dos joelhos e ainda mais água salgada, que faz uma festa com as baterias. Tive que desligar tudo.

Fechei os registros, mas o da proa trancou e tive de colocar uma camisa no buraco do vaso. Foi horrível a sensação, pois como a proa tem menos sustentação, na altura do banheiro a água estava bem mais funda. E ainda mais que tinha o peso do mastro e das velas puxando para bombordo.
Fomos relatando para o pai como estava o estado das coisas no barco, o casco estava intacto, mas dentro estava tudo revirado e boiando. As bombas de esgotamento funcionaram um pouquinho e entupiram com as coisas que ficaram boiando. O pai e o Luizinho fecharam a saída de água do cockpit para não entrar água por ali e começamos a tirar a água do barco. Eu tirava de dentro para o cockpit e os dois do tiravam do cockpit para fora. E assim seguimos a faina!

Meu pai já fazia os planos de como safar e depois seguir viagem, não estávamos garreando, pois o mastro ajudava a manter o barco no lugar. Tinha um navio fundeado ao longe, todo iluminado. Se viesse mais uma onda que fosse iríamos ao fundo, tranqüilamente. O barco não teria como se defender, mas depois da terceira onda tudo ficou calmo e não teve mais nenhuma onda, graças a Deus! Iríamos deixar clarear o dia, colocar o mastro para cima, fazer uma vela de fortuna com o pau de espinaker e tocar para Rio Grande. O pai já pensava em ir até o antigo DEPREC para subir o mastro de novo, pois naquela época o clube não tinha pau-de-carga, trocar o óleo do motor, colocar combustível, secar nossas roupas e tocar de novo a viagem. Mas em um determinado momento o corpo dele caiu ao encontro da braçola do cockpit. Ele não deu um “ai” sequer! Saltei em cima dele e vi que não respirava mais.

Tentei reanima-lo com massagem cardíaca e respiração boca a boca, mas foi em vão. O Luizinho e eu seguimos tirando água, afinal como o pai já havia falecido, não poderíamos fazer mais nada por ele, mas nós ainda tínhamos que lutar por nossas vidas, pois estava muito frio e estávamos molhados. Comecei trocando de agasalho com o pai, que era mais quente que o meu e seguimos tirando água. Procurei fazer o Luizinho comer presunto e queijo e beber algo quente. Às vezes ficávamos juntos para tirar um pouco do frio.

Passei a noite inteira pensando em tudo que era preciso fazer para acertar o último pedido dele e do qual ele havia me incumbido há muitos anos, durante longas conversas em que revezávamos os quartos de leme. Navegadas em que ficávamos conversando por horas intermináveis. Ele dizia que iria morrer no mar e que se fosse no barco dele eu teria que prometer fazer um procedimento raro, teria que levar o corpo dele para terra e que o barco era dele e de mais ninguém, quer dizer, eu teria que dar um fim ao barco.
Depois comecei a pensar em como avisar a família, os amigos, que não eram poucos, em como desembaraçar o inquérito na Capitania e outros procedimentos.

Amanheceu e estávamos em frente à praia do Cassino, mais ou menos a umas dez milhas para fora. Decidi então cortar o estaiamento, pois não teríamos mesmo como puxar o mastro para cima, entre dois e cansados de tirar água, assim como também não tivemos condições de subir a baleeira. Colocamos o pau-de-spinaker para cima com um “storm” amarrado em três estais feitos de escotas e saímos navegando em um rumo para fora. O vento era leste calmo.

Olhei para ele com uma expressão suave e tranqüila e pensei: “- não posso sacanear o cara, justo ele, meu melhor amigo. É sacanagem!” Virei de bordo e peguei o rumo da praia. Escolhi o lugar para entrar onde tivesse menos arrebentação e entrei para o lado sul da Iemanjá. O barco era fantástico de leme!

Foi de proa em terra até encalhar por completo. Baixamos a vela, retiramos o corpo do pai do barco e o cobrimos. Começamos a retirar documentos, dinheiro, roupas e alguns aparelhos eletrônicos, pois já havia muitos curiosos na praia. Pedi ajuda para chamarem a Brigada Militar e a Capitania dos Portos. O pessoal da PM chegou rápido e ficaram uns cuidando do corpo do pai e das coisas e outros nos levaram ao postinho de saúde do Cassino para medir pressão e nos dar um café quente.
Do postinho liguei para meu irmão Beto e para um amigo médico, a fim de preparar o Atestado de Óbito, pois não tinha cabimento querer “abrir” o cara depois de tudo aquilo.

Quando o corpo chegou ao IML eu já tinha o Atestado do médico com quem ele vinha se tratando do coração. Essa foi a causa mortis dele.
Comecei a vesti-lo. Ele sempre com uma expressão serena e com os cabelos molhados de água salgada. Acho que era o que ele mais gostava.

O barco entrou na praia eram 11:30 horas da manhã do dia 14 de julho e ao meio- dia o corpo já estava liberado para o velório.

À tarde os amigos me perguntaram se poderiam retirar o barco da praia, e eu disse: “- Façam o que quiserem com o barco!” Eles tiveram boa intenção, mas começaram a puxar pelos molinetes e amarradores, aí não foi mesmo! Pensaram em voltar no outro dia para tentar novamente, mas durante a noite os ratos de praia cortaram o barco a machado, arrancando os pedaços.
"Se eu quisesse retirar o barco colocaria dois pranchões por baixo do casco e puxaria com uma rede de pesca grande e forte, que pudesse envolver a maior parte do casco possível. Ainda mais que havia duas máquinas da prefeitura dando apoio."

Depois do sepultamento do velho peguei emprestado um caminhão e com a ajuda de amigos, mais a família, recolhemos todos os pedaços do barco e levei para onde ele tinha sido construído. Depois de um mês secando, queimei tudo, peça por peça!
No dia da missa de sétimo dia de falecimento comprei o Tahiti, barco com o qual velejamos desde sua construção até o ano de 1976, quando foi vendido para Pelotas para poder terminar o Vagabundo.

Passei seis meses reformando o barco, deixando exatamente como era e como eu e o pai havíamos planejado, pois no retorno de Montevidéu iríamos comprá-lo novamente e deixá-lo igualzinho como era em 1967. Pena que tive que reformá-lo sozinho.
Valeu, pois sigo navegando com ele no meu coração. Tomara que um dia eu consiga saber e fazer um pouquinho daquilo que ele me ensinou.
Esta é a verdadeira história do comandante Romildo e seu veleiro Vagabundo.

Faço essa narrativa em consideração a seus amigos do coração, que merecem saber a verdade, pois foram três ondas altas e um coração que não sabia que tinha problema. Sua temperatura baixou, as artérias comprimiram-se e o coração não agüentou. Talvez, se soubéssemos que ele tinha algum problema cardíaco, teríamos arrumado um agasalho mais quente para ele, mas como nem ele sabia o que tinha, acabamos surpreendidos pelo acaso, por isso, hoje quando navego sob condições de tempo ruim e com baixa temperatura, procuro sempre saber se todos estão se sentindo bem e sem frio. Não quero perder outra pessoa no mar, ainda mais se puder evitar.

É engraçado, até hoje sonho com ele, que estamos navegando juntos, inclusive no meu barco atual, o que é um bom presságio, pois dia de sonhar com ele é sempre um dia especial para mim, pois tudo corre às mil maravilhas. Tomara que continue sendo sempre assim!


 

Comentários recebidos

30 Jan 2015
Guilherme Sucena

Eu, ainda muito pequeno, entrei no Vagabundo pela primeira vez para pegar um moitão que o Romildo me deu. Meu primeiro moitão que não era de madeira (rsrsrs). Fiquei louco com o barco por dentro, o tamanho, as velas, a mesa de navegação e as histórias do Romildo... Grande abraço Newton !!

27 Jan 2015
GERSON SERAFIM

Com tudo que li deste navegador, fico sem palavras pra dizer-te algo, gostaria de ter frequentado o clube nesta época pois são muitas histórias e boas que já li e escutei. Gerson Veleiro SOUL

27 Jan 2015
vitor hugo konarzewski

Newton, não dá para imaginar nem de perto a dor pela injustiça divulgada por tantos anos. Teu relato após tantos anos mostra uma realidade cruel da vida no mar, cuja paixão de tantos velejadores nos torna pequenos frente aos humores da natureza.Que tuas velejadas sejam tranquilas, e os bons ventos continuem a soprar na tua vida. um abraço fraterno.

27 Jan 2015
Adriano Marcelino
Newton, imagino o quanto foi sofrido para você, narrar um acidente como este, ainda mais tendo perdido o pai, seu grande parceiro. Em 2005, antes de zarparmos para participar da da REFENO o meu pai fez uma grande peixada aí no RGYC, foi a última vez que eu o vi, pois passado alguns dias ele enfartou aos 63 anos, também sem saber que era cardíaco. Era em baita amigo e grande pescador.
Abraço.
Adriano Marcelino
PASSATEMPO

27 Jan 2015
Richard Grantham
Newton - Parabéns pelo texto e pela coragem de colocar assim tão abertamente estes sentimentos todos. Até hoje lamentamos a ausencia do Romildo. Ele fazia parte de uma elite de velejadores do RGYC e que hoje fazem muita falta. email = Richard

27 Jan 2015
Jorge Albrecht
Triste lembrança! Que "barra" vivida. Afora tudo, o desgosto com as versões. Só resta tentar esquecer o fato e lembrar, cotidianamente, do velho lobo do mar. Coragem!

27 Jan 2015
Fabrício Fonseca
Newton, com certeza o cmte Romildo se mantém presente nas navegadas do veleiro Colibri. O meu pai nos deixou há dez anos e tenho sempre boas lembranças dos lugares que visitamos navegando e de todos os ensinamentos que tive com ele. Fica sem dúvida ótimas recordações.
Grande abraço e se Deus quiser nos encontramos no Encontro da Vela em SLS.

27 Jan 2015
Paulo Lourenço

Caro Danilo, sou irmão do Luiz Lourenço e te mando no anexo fotos da construção do Vagabundo, transporte até o Porto Novo no dia que foi ao mar e ele velejando. Nas motos, como "batedores", o Gustavinho e eu, sem carteira eramos menores, outros tempos.... Vê-se também o Newton, Beto, Luiz, Estevinho (projetista do Vagabundo) entre outros tantos.
Bons ventos,
Paulo Lourenço.

 

 

 

Comte Romildo

 

 

 

 



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