“Uma Regata no Sul”
JJ Magalhães, o Magá


         Naquele fim de manhã, mesmo depois de ouvir a campaínha de encerramento da aula, permaneci sentado no anfiteatro da Escola. Soubera, por avisos afixados no quadro respectivo, que naquela sala e naquele horário o Mário Covas, presidente de nosso Grêmio, iria determinar a constituição da delegação  que competiria com os gaúchos da Faculdade de Engenharia de Porto Alegre numa anual e tradicional disputa entre as duas entidades,  realizada na Semana Santa, na qual também por tradição não havia aulas, mesmo nos dias não oficialmente feriados. Uma boa oportunidade, nós viajaríamos de graça, comeríamos de graça, dormiríamos de graça. De graça eram para mim palavras extremamente importantes. Com a vantagem adicional de conhecer Porto Alegre e suas habitantes.

     Eu tinha esperança de me encaixar na Natação, ou no Polo Aquático,  esportes que praticava em nível de competição. Ou quem sabe no Tênis, nele não faria a pior figura. Mas  logo ao início da reunião nos foi esclarecido  que, nesse ano também, as modalidades seriam apenas Futebol, Basquete, Volei, provas de Atletismo.

     Pensei que ia sobrar, ia perder a chance daquela promissora viajem, quando ele, o Covas, emendou que os gaúchos estavam “cansados de apanhar em tudo”, queriam ganhar pelo menos em uma modalidade, e exigiram a inclusão naquele ano de “uma tal de Vela”. Não houve jeito de escapar da exigência, e ele não sabia como ia resolver a questão,  achava que não havia na Escola ninguém que praticasse esse esporte ..... haveria?

     Estiquei a mão para o alto tão depressa que quase o braço se desligou do ombro ... Eu, Eu, Eu, Eu !!!!

     A bem da verdade, nunca antes havia participado de uma regata. E também nunca antes havia velejado em barco de classe definida e competitiva, esses monotipos tais como, à época, o Star, o Lightining, os Sharpie, a Iole Olímpica, o Snipe. Eu os via de longe na Represa de Guarapiranga, construídos em cedro da melhor qualidade ou em outra madeira nobre, seus cascos impecávelmente envernizados, os convézes trabalhados em lâminas de côres alternadas ou revestidos de lona pintada de branco para melhor refletir o calor do sol. Jóias de artesanato em madeira, jóias caras, nem sonhar eu sonhava vir a possuir um deles algum dia.

     Quase nenhum deles utilizava as vizinhanças do Paredão, a barragem da Guarapiranga, como base. Ali só se concentravam, além de poucas lanchas,  veleiros utilizados apenas em passeios de recreio, alguns deles muito e pobremente improvisados como era o caso de meu “Pretinho”. Veleiros “sem classe”, nos dois sentidos da palavra “classe”, o sentido náutico e o de discriminação .

     Não, com exceção de uns poucos ancorados defronte a casas ricas da margem esquerda, montanhosa, da Represa, aqueles veleiros lindos e caros, perfeitos em sua função de competir, ficavam durante a semana escondidos, protegidos nos hangares dos iate clubes espalhados ao longo do grande lago. Clubes que,  além do nome oficial, eram mais conhecidos por  cognomes que já carregavam uma certa discriminação: Clube Alemão, Clube Inglês, Clube Italiano.

     Havia também um clube que seria brasileiro, o Iate Clube Paulista, mas esse reunia apenas pessoas de classe “elevada”, cavalheiros ostentando sobrenomes ditos tradicionais e conta bancária polpuda. É, naqueles tempos havia muitas “classes”, além das que caracterizam um determinado modelo de veleiros, na Represa de Guarapiranga. Classes de gente.

     A mim, a nós do Paredão, sobrava apreciar os vistosos veleiros em bandos  durante as regatas dominicais. Vê-los à distância, pois se nos metíamos em sua proximidade, por contingências de direção de vento ou por mera curiosidade, logo vinham as xingações.

     Não, não conhecia tão ìntimamente um veleiro de regatas. Mas agora ali, no anfiteatro de nossa faculdade, não me sentia mal me propondo a competir numa modalidade que nunca disputara, da qual nunca entrara numa raia, salvo como intruso. O esporte universitário está sempre, no Brasil, bem abaixo, no sentido técnico, nos resultados das competições, daquele praticado nos clubes esportivos. No Exterior, sobretudo nos Estados Unidos, é o contrário, as escolas, inclusive as  de nível superior, são celeiros de atletas vencedores de competições internacionais, graças aos incentivos pecuniários e outras facilidades que lhes são oferecidas. Aqui, um jovem esportista já se distancia de sua melhor forma quando enfrenta os difíceis exames vestibulares. Depois, sobretudo nas faculdades de programa curricular mais exigente, ele continua numa maratona de estudos. Aulas teóricas e de laboratório ocupando o dia inteiro não lhe permitem voltar a praticar com assiduidade sua modalidade esportiva. Assim, é relativamente fácil  ganhar provas e até bater recordes, dentro do nível baixo do esporte universitário. Ou até estrear numa regata.
    
     Dentro desse panorama, não foi fácil encontrar entre os presentes os demais cinco velejadores que nos permitiriam atender à demanda dos gaúchos. A custo conseguimos completar as três tripulações, incluindo alguns que vagamente haviam pegado em leme de veleiro ou feito contrapeso em velejada descompromissada.

     Eram cerca de quarenta na delegação  formada, e eu estava já muito feliz e satisfeito por ter sido incluído nela. Mas uma outra satisfação me seria concedida naquela manhã. A viajem seria feita de trem, uma demorada viajem num trenzinho sacolejante, quatro noites e três dias na ida, outro tanto na volta. Apenas três dias em Porto Alegre, o suficiente para as competições. Mas o Covas veio com outra novidade: um dos colegas era sobrinho de um oficial da Aeronáutica, um Brigadeiro, e  havia conseguido com o tio doze “passagens” num avião militar que voaria para Porto Alegre no início da Semana Santa. Como todo mundo presumìvelmente gostaria de passar alguns dias a mais em Porto Alegre, propunha que se preenchessem em um sorteio as onze vagas disponíveis, já que uma, como natural, seria a do tal sobrinho de Brigadeiro.

     Bem, dá para adivinhar quem foi sorteado em primeiro lugar. Houve alguns comentários adversos, e até protestos. Um dos presentes foi explícito e incisivo, achava que os representantes desse esporte, a tal de Vela, incluídos meio de contrabando e à última hora, não deveriam participar do sorteio. Segundo ele e outros, melhor seria que fossem de avião, para assim chegarem mais descansados, os demais competidores, os que julgavam com maior chance de vencerem em suas modalidades.

     Argumentei que nós velejadores também necessitávamos descanso, e, mais, seria bom que eu chegasse lá mais cedo, pois teria que conseguir os barcos necessários à regata e, se possível, dar uma treinada neles antes. Venceu o argumento, e na tarde do Sábado de Ramos embarquei, com os demais felizardos,  num pesado bimotor “Lode Star” da Força Aérea Brasileira.
 
     Uma vez chegados, fomos levados até a Casa do Estudante, na Rua dos Andradas. Lá ficaríamos hospedados até a chegada do restante da delegação. Essa rua, mais comumente chamada Rua da Praia, iniciava-se à beira do Guaíba, junto ao Gasômetro, e subia lentamente colina acima, concentrando um já forte comércio, em especial, nas vizinhanças de nossa hospedaria, comércio feminino. Foram dias divertidos, com todas aquelas jovens aloiradas subindo e descendo a rua, e nós em seu encalço. Até arranjei uma companhia mais firme, uma bonita menina que me acompanharia depois ao estádio onde se realizou a maioria das disputas, nas torcidas durante as provas das demais modalidades.

     Mas nem tudo são flores, e minha obrigação era providenciar logo os três barcos, da classe Sharpie 12 m², que seriam utilizados por nossa equipe. Dois deles conseguimos no Clube Jangadeiros, no distante bairro da Tristeza. Eu e um colega, que viera para participar noutro esporte mas também comporia uma das tripulações de Vela, fomos buscá-los. Foi uma longa e gostosa velejada rio Guaíba acima até além da área portuária da cidade,  onde se situava naquele tempo o Veleiros do Sul,  clube requintado, em cuja raia seria disputada a regata.

     Naquela noite chegaria o resto da delegação, então fomos transferidos para um alojamento maior, onde todos poderiam se acomodar. Não pudemos esperá-los, pois faltava arranjar mais um barco. E então, após o jantar, voltei ao Veleiros do Sul com esse colega, agora levados por um velho jeep dirigido por um gaúcho, estudante da Faculdade de Engenharia, um certo “Peru”,  que velejava e fazia de nosso cicerone. O combinado era falarmos com a direção do clube, para ver se finalmente conseguiríamos o veleiro faltante, já que a regata estava marcada para o dia seguinte.
 
     Atravessamos uma zona deteriorada próxima ao porto, e de repente, diante de umas portinhas suspeitas numa praça escura, o Peru parou o jeep e disse que antes de irmos ao clube queria apresentar-nos à Nicolaschka.

     Pensei tratar-se de prostituta polaca, havia delas naquele tempo. Sugeri que era melhor deixar essa apresentação para a volta. Mas ele insistiu, acabamos entrando nas portinhas suspeitas. Não era prostíbulo, era um boteco, ele bateu no balcão de madeira velha e ordenou as primeiras Nicolashkas. Contou que era bebida dos velejadores do Sul, depois eu vi que era mesmo. Uma rodela de limão grande descascado, uma colher farta de açucar em cima dela, botávamos o troço na boca e mastigávamos sem engulir. Aí vinha uma dose reforçada de conhaque em cima, bochechava-se, o líquido ia prá baixo e cuspia-se o bagaço do limão. Ficava um gostinho de limonada na boca, a gente nem sentia os 50° alcoólicos do conhaque, e aquela mistura explosiva fervendo lá dentro ...

     Quando chegamos ao Veleiros do Sul, já estavamos todos calibrados com três doses da dinamite. Havia uns diretores nos esperando na sala de reuniões, conseguimos o barco e logo os anfitriões nos passaram ao bar do clube. E então foram mais seis Nicolashkas para cada um, a noite foi esportivamente esquentando, acabei subindo numa mesa para lá de cima, aos gritos e tomado por justa ira, xingar de Bambi o vice-comodoro do clube, um gordão vermelho que tirou assinatura comigo, não parava de me cochichar que paulista só ganhava regata no protesto, no tapetão.

     Afinal, depois de muita confraternização etílica, o tal Peru nos deixou, cambaleantes, à porta do novo alojamento. O restante da  delegação realmente chegara em nossa ausência. Cansados da viajem, estavam já dormindo, mas foram acordando com a nossa barulheira. Começaram a xingar, eu fui ameaçá-los com revide no dia seguinte e me senti sùbitamente muito mal, muito mal, acabei soltando um grande jato de vômito em cima da cama mais próxima.

     Aí todos queriam me bater. Apanhei e bati, e finalmente o Covas e o Meirelles, presidente  da Juventude Universitária Católica e que depois também faria carreira política, conseguiram me tirar dos socos que vinham de todo lado, e me arrastaram para fora.

     Debaixo da noite fria, levei dos companheiros uma merecida carraspana. Disseram que não iam permitir que eu estragasse o bom nome da Escola, tentei discutir, culpar o Peru pelo descaminho, mas tive que acabar aceitando a reprimenda para não ser mandado de volta a São Paulo no primeiro trem, como ameaçado.

     No dia  seguinte compareci, cansado e com a cara amassada, à raia do Veleiros do Sul. Como esperado, os gaúchos ganharam a prova  com facilidade. O Peru, nosso companheiro da farra da noite anterior, parecia não ter sentido nenhuma sequela dela, estava radiante com sua medalha dourada. E eu me conformei com o quarto lugar, pelo menos venci meus próprios colegas.

     Quarenta e tantos anos depois, e alguns meses antes de sua morte, nosso Governador esteve novamente na cidade que eu escolhera para residir, Ubatuba, inaugurando mais uma obra. Conversamos, lembrei o entrevero de Porto Alegre, ele recordava os detalhes, o trabalho que eu dera até ser retirado do alojamento, rimos bastante . E quando, perguntado, falei das razões de meu burro abandono da Politécnica antes de terminar o curso, de meu desterro voluntário em Ubatuba, do que eu fazia por aqui para sobreviver, ele disse que dos companheiros da Escola eu era o que vivia melhor a vida. Não sei, não é bem assim mas pode até ser.

 

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Crônica publicada originalmente no livro virtual "CARANGUEJO DE PRAIA",
de JJ de Magalhães Netto, por enquanto só acessível em partes, na internet, com o autor.
Publicado no Popa.com.br em 09/12/2016, com autorização do autor, por iniciativa do Cmte Waldir Silva Filho.

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