P-40 rumo Oeste
De Cingapura ao Rio, com uma plataforma a bordo
Renato Botelho – veleiro Samba

Quando a PETROBRÁS resolveu que o transporte de sua nova plataforma semi–submersível P-40 de Cingapura para o Rio seria acompanhada por um de seus técnicos, eu imediatamente me apresentei como voluntário. A oportunidade de travessia dos Oceanos Índico e Atlântico de fato se mostrou fascinante para o velejador.

A P-40 é uma plataforma de produção projetada para a vazão diária de 150.000 barris de óleo e 3 milhões de m3 de gás, aos preços atuais gerará uma receita de mais de 5 milhões de dólares por dia. É a plataforma de maior deslocamento da PETROBRÁS, com 42.000 toneladas. Ficará ancorada na Bacia de Campos, ao largo do Cabo de São Tomé, em profundidade de 1.080 metros.

Para o transporte da P-40 foi decidida a utilização do sistema "Dry Tow" (foto acima) no qual a plataforma vem fora da água, no convés de um navio. O navio selecionado foi o Migthy Servant I, da empresa belgo/holandesa Dockwise. Este tipo de navio é um misto de submarino pois afunda parcialmente permitindo que a plataforma, ainda flutuando, seja posicionada acima de seu convés. Com a plataforma posicionada o navio retira lastro de seus tanques, emergindo e levantando a plataforma que fica em seco.

Nunca antes havia sido transportada em "Dry Tow" uma carga com as dimensões e peso da P-40. Este transporte se tornava ainda mais crítico pela necessidade de passagem pelo Cabo da Boa Esperança, anteriormente chamado pelos portugueses, com razão, de Cabo das Tormentas. O Migthy Servant I tem 190 metros de comprimento 50 de boca e

42.000 toneladas de deslocamento. A P-40 tem 123m de comprimento 83 de boca e também 41.000 toneladas de deslocamento. Para o transporte a P-40 ficou em posição transversal ao navio, com partes de sua estrutura para fora do navio, 43 metros para BB e 37 metros para BE. Estes trechos em balanço são, inevitavelmente, expostos às ações das ondas.

Aceito o voluntário lá fui eu para Cingapura em 20 de outubro, deixando a Susy aqui no Rio a não ver navios. O desconforto das 26 horas de vôo foi pouco sentido devido à emoção da viagem marítima. Em Cingapura ocorreu uma mudança de planejamento, atrasando a saída da P-40 que só ocorreria no dia 30 de novembro. Este atraso fez com que a travessia do Índico ocorresse durante o primeiro mês da estação de ciclones, o que se transformou num risco adicional para o transporte.

A P-40 deixou o cais da JSL-Jurong Shipyard no dia 14 de novembro, ancorou para execução do teste de inclinação e iniciou a manobra de carregamento no dia 22 (foto ao lado). Surgiu então um problema, a correnteza no local do carregamento era muito forte tornando o procedimento da Dockwise inadequado para esta condição. Foram necessárias deste modo 3 tentativas para o correto posicionamento. Finalmente no dia 29 a plataforma estava posicionada e fixada ao convés do navio.

A partida ocorreu no dia 30. A rota escolhida passava pelo estreito de Sunda na Indonésia e a travessia até lá ocorreria com ventos fortes de proa, passando entre várias ilhas da Indonésia e pelo South China Sea. A P-40 se transformou numa grande vela não regulável de 5.500 m2. Com vento de proa funcionava como freio e com vento de popa como vela. O Mighty Servant I, construído em 1983 e duas vezes ampliado, mostrou pouca disposição para navegar com vento de proa, chegando sua velocidade em alguns trechos a menos de 4 nós.

A passagem pelo estreito de Sunda, entre as ilhas de Java e Sumatra, ocorreu no dia 4 de dezembro de 2000 às 5 horas da manhã. Na borda Oeste do estreito está situada a ilha/vulcão de Krakatoa que entrou em erupção em 1883, explodindo e gerando um maremoto que ceifou mais de 300.000 vidas. Hoje é uma ilha verdejante e de aparência tranqüila.

Poucos dias depois estaríamos cruzando a rota do SAMBA quando, em 1982, velejamos de Christmas Island para o Sry Lanka com forte vento de SE e muito swell. Para a P-40 o mar estava calmo e o vento fraco.

A tripulação do Mighty Servant I era composta por 13 holandeses sendo 3 estagiários, 9 filipinos e um brasileiro, eu. Uma única mulher, a estagiária Anne. Os filipinos efetuavam os serviços de caldeiraria, tubulação e solda, limpeza e rancho. Os filipinos normalmente tem nomes latinos oriundos do domínio espanhol, Danilo, Antonio o sorridente maitre, Nelson, Edgardo e Mário o competente cozinheiro. Por sua simpatia, competência e dedicação os filipinos são muito bem conceituados como tripulantes. Seu sistema de trabalho é porém excessivamente duro. Enquanto os holandeses ficam 3 meses à bordo e têm 2 meses de descanso, os filipinos fazem contratos de 9 meses durante os quais raramente vão à terra. É uma condição próxima à de prisioneiro. Ao término do contrato, quando têm sorte de nova convocação, ficam 2 meses em terra. Em geral os filipinos são bem tratados pelos holandeses e o relacionamento entre as duas nacionalidades parece bom. Pelas conversas que mantive os filipinos gostam de trabalhar nos navios com esta bandeira, só falaram mal dos navios gregos.

O capitão do Mighty Servant I, Mr. Bernard Huinink de 52 anos de idade, se revelou uma figura controversa. No dia anterior à partida criou um caso comigo que procurava estimular o debate em relação à definição da rota da viagem. Não concordou em dialogar e no curso da conversa disse que não estava ali para fazer amigos, realmente não fez. A viagem sob este ponto de vista relacional foi um sucesso para mim que consegui não brigar, não foi fácil pois ele vivia criando casos sem motivo.

Durante a travessia ocorreu a festa de Neptunus, o batismo dos que não haviam cruzado o equador por mar. O conceito era burocrático: quem não tinha certidão de batismo tinha de ser batizado. Fui convidado a participar da festa. Como aceitei e não tinha certidão fui incluído no rol dos batizáveis mesmo já tendo cruzado o equador muitas vezes. Alguns dias antes da festa foi armada uma prancha de madeira para fora da proa do navio e um cabo de segurança meio mal instalado. No dia da festa os batizáveis foram trancados em um camarote escuro durante longo período. Começaram a sair em grupos de dois, com os olhos vendados e com cinto de segurança. Levados à presença do Neptunus filipino e de sua sereia, vestidos a caráter, foi retirada a venda e em meio a discursos foi oferecido um sanduíche horrível com todos os molhos e muita pimenta, acompanhado de um copo de água do mar e de um cálice de vinho. Após muito blá, blá, blá, com os olhos de novo vendados fomos levados para a prancha. Passávamos por cima da balaustrada para a prancha e quando sobre o mar as ondas nos molhavam – era tudo mentira, a prancha havia sido reposicionada e estava sobre o convés e a água era de mangueira. Depois foi uma seção de porcarias, onde em várias seções fomos lambuzados com o lixo da cozinha e pedaços de peixe podre. Muitos batizados tiveram o cabelo raspado, assim como muitos dos veteranos em solidariedade. O meu sobrou mas no navio estavam quase todos carecas. Depois disso um banho, muita cerveja e o churrasco comemorativo com entrega de diploma aos novos marujos. Foi interessante mas às vezes um pouco violento para o nosso gosto.

Até o sul da ilha de Madagascar, dia 15/12 e metade travessia do Oceano Índico, a viagem ocorreu em mar de almirante no que passamos a chamar de Indian Lake. Felizmente não se formou nenhum ciclone durante este período em que é normal a ocorrência de uma tempestade a cada 2 anos. Na parte central do Sul do Oceano Índico existem também áreas de swell de maior amplitude que atravessamos com mar chão. Nas proximidades do sul de Madagascar as condições mudaram, no dia 15 de dezembro e na metade da travessia do Índico, o swell e o vento aumentaram e os flutuadores da P-40 começaram a ser atingidos pelo mar (foto ao lado). Quando isto ocorria o navio balançava todo, sacudido pelas 41.000 toneladas da P-40, na plataforma era um barulho infernal com estruturas, tubulações e equipamentos e equipamentos batendo e rangendo. O piso sacudia e, em alguns lugares, era necessário se segurar para não cair. Creio que devia ser semelhante a um terremoto força 6. No dia 20/12 trincou o cabeçote de um dos motores do Migthy Servant I, que ficou com velocidade reduzida por 36 horas. Os motores do navio sofriam muito com o swell de SW pela proa, acelerando e desacelerando freqüentemente – estavam realmente trabalhando no limite de sua capacidade. O problema no motor gerou a necessidade de uma escala em Port Elisabeth na África do Sul para que fossem recebidos sobressalentes e onde, aproveitando, seriam recebidas provisões incluindo verduras, frutas e bons vinhos e pães sul africanos. Realmente fica difícil imaginar o que teria ocorrido caso o navio tivesse sido pego por um verdadeiro mal tempo ou, pior ainda, por um ciclone.

O fato mais marcante deste trecho foi o roubo das calcinhas da estagiária (Anne). Ela as deixou na máquina na lavanderia e por lá passou algum tripulante (não pode ser alguma, pois mulher só havia ela à bordo) que deve ter ficado excitado com a visão inesperada. Não resistiu e levou-as para seu camarote. O desaparecimento foi logo notado, sendo colocado um aviso no quadro solicitando a devolução imediata - Who got Anee’s underwear for his own pleasure, please return! No dia seguinte as calcinhas reapareceram na lavanderia. O comandante convocou toda a tripulação, inclusive o rider(eu), para uma reunião no passadiço. Todos eram suspeitos, inclusive eu que não sabia de nada e cheguei atrasado. Deu um sabão geral, disse que se descobrisse o tarado fazia e acontecia. A Anee, ruborizada e chorosa a tudo assistia sem deixar de olhar para o chão. Foi tudo muito sério, embora algo ridículo, e terminou com a debandada geral para o almoço. Pelas muitas cabeças passavam dúvidas como os cuidados que seriam tomados nas próximas lavagens das calcinhas da donzela, em que estado teriam sido devolvidas, quantas seriam, se ela saberia quem era o ladrão(nestes casos as mulheres nunca são completamente inocentes), etc. Contente apenas o tarado por não ter sido descoberto, imaginando que naquele momento ela estivesse usando uma das calcinhas que ele tão bem conhecia e talvez já pensando na próxima investida.

A passagem até Port Elisabeth ocorreu em condições variáveis de vento mas com swell constante e ocorrendo, durante alguns dias e noites, choques do mar com a estrutura. Um dia antes da chegada tivemos de atravessar a mal falada Corrente quente das agulhas que flui até o Cabo da Boa Esperança. O vento estava de SW, isto é, contra a corrente, e nestas condições o mar tende a piorar muito. De fato a condição do mar ficou muito pior do que fora da corrente para o mesmo vento, mas nada que causasse problemas para o navio que só bateu um pouco mais. Para um veleiro seria porém bastante desconfortável. Dia 25 de dezembro, dia de natal, chegamos em Port Elisabeth às 0 horas.

A tentativa de ancoragem foi infrutífera, o vento estava com velocidade de 30 nós e era inseguro ancorar pois era impossível baixar a "vela" P-40. Enquanto isto no bar transcorria a festa de despedida do estagiário que desembarcaria em Port Elisabeth. A festa foi bastante animada e a Anee estava muito diferente, mostrou ser capaz de momentos de bastante sensualidade dançando com os outros dois estagiários.

Ficamos pairando até as 8 horas quando se iniciou a operação de transbordo de sobressalentes e suprimentos. A entrada no porto era impossível pelas dimensões do navio com a P-40 no convés. A operação ocorreu na Algoa Bay que é parcialmente abrigada mas exposta ao swell. A lancha com os suprimentos era leve e seu piloto não demonstrou grande domínio sobre o mesmo. O risco aumentava quando a lancha se aproximava do navio e ficava sem controle com risco de colisão. A solução foi baixar o barco de apoio do Migthy Servant I. O piloto holandês se mostrou mais competente viabilizando o embarque onde os suprimentos fora transferidos da lancha para o barco e dele para o navio. Desembarcaram em Port Elisabeth dois de seu tripulantes, o maitre e um estagiário. Partimos às 10 horas para a passagem do trecho de mar mais agitado da viagem entre Port Elisabeth e o Cabo da Boa Esperança

À tarde ocorreu a festa de Natal, 2 perus, leitão, pratos e sobremesas variados, vinho, cerveja e todos os etc. imagináveis. Foi uma festa muito agradável mas que não permitiu que os tripulantes esquecessem que não estavam em casa com as famílias. Uma situação constrangedora ocorreu na entrega de presentes enviados pela Dockwise, todos receberam das mãos do capitão uma linda jaqueta – menos o Rider(eu). Até ai tudo bem, o envio havia sido externo e ninguém à bordo tinha culpa. Mas um comentário ou uma desculpa teriam sido de boa educação, o que não ocorreu.

Na saída da Algoa Bay, durante o dia e a noite seguinte o vento de SW e o Swell eram fortes e o mar batia frequentemente na P-40, foi difícil dormir – dava medo de que o navio não aguentasse o castigo e quebrasse. Teria sido sensato retornar a Port Elisabeth e partir no dia seguinte pois a previsão era de melhora do tempo. Isto teria sacrificado menos a P-40.

No dia seguinte as condições melhoraram um pouco e finalmente passamos o Cabo às 10 horas do dia 27 de dezembro de 2000 com mar calmo. Estávamos no Atlântico Sul, sensação de estar em casa neste Oceano pátrio. Pouco depois estávamos ao largo de Capetown, dando para vislumbrar a famosa Table Moutain. Desde 1976, quando viajei do Rio para cá em um veleiro, eu não passava por aqui.

Durante a viagem, por solicitação de um colega de trabalho, eu regava regularmente uma planta que ele ficou com pena de deixar em Cingapura. Durante o longo tempo em que ele ficou sozinho por lá ela era sua única companhia, o único outro ser vivo em seu apartamento e um presente de seu vizinho japonês. Como a plataforma não tinha água corrente eu coletava água da chuva para não precisar subir as escadas com peso. Um dia descobri outra planta na recepção do navio, levei-a para perto da janela para pegar sol e passei a regá-la regularmente. Durante a visita dos tripulantes do Mighty Servant I à P-40 mostrei esta planta a um dos tripulantes e comentei o fato. Ele olhou a planta e disse: mas esta planta é de plástico! Eu à princípio não concordei, mas olhando com mais cuidado logo verifiquei que ele estava certo – eu vinha regando uma planta de plástico!

Esta visita ocorreu num Domingo. Os tripulantes mais jovens me pediram autorização para usar a quadra de basquete da P-40 e eu concordei. Creio que foi a inauguração da quadra. Aproveitei para mostrar-lhes a plataforma e suas acomodações.

Na primeira noite no Atlântico o navio bateu muito e andou pouco. O comandante, apesar das minhas indiretas, nunca se convenceu de que o navio de fato era um veleiro, com uma enorme vela não regulável, que não orçava, tinha pouco motor para encarar vento de proa e batia muito. Resolveu seguir um curso quase direto para o Rio e partiu contra o vento, devagar e batendo.

No sul do Índico a temperatura começou a cair, em Port Elisabeth já estava um pouco frio. Quando entramos no Atlântico os efeitos da corrente fria de Benguela fizeram com que a temperatura baixasse ainda mais. Enquanto isso, lá no Rio, a Susy passava o dia inteiro com ar condicionado ligado e suando muito quando botava o nariz na rua!

As condições no Atlântico eram peculiares, pois embora o vento normalmente não estivesse forte a altura do swell era sempre significativa. Para um navio normal as condições estariam ótimas, mas para o Mighty Servant I com a P-40 no lombo qualquer coisa era problema. De tempos em tempos vinha um swell de maior altura e BANG, tremia tudo. Por 3 dias navegamos com velocidade reduzida, o primeiro para manutenção em um dos motores, o segundo para troca de peças avariadas do outro e o terceiro para reparar o conserto que não ficou bom. O velho Mighty com a língua de fora.

Ficou difícil definir o que sejam os holandeses. Evidentemente uma amostra de 13 pessoas não é suficiente para caracterizar um povo. Mas algumas vezes eram extremamente rudes, e nesses momentos eu me sentia muito contente por termos vencido as batalhas dos Guararapes. Alguns tripulantes foram sempre muito gentis e no fim da viagem o ambiente estava muito bom. A nova geração, os aprendizes, são extremamente simpáticos e atenciosos.

A comida á bordo não era ruim, embora um pouco gordurosa. Aliás os holandeses adoram gordura. No café da manhã comem sempre pão com muita manteiga, ovos com bacon e creme de leite. No almoço freqüentemente carne de porco frita e outras frituras. Jantar não tinha, era lanche, com hamburgers, linguiças ou macarrão. Tudo acompanhado sempre por muito leite integral. O que salvava era o cozinheiro filipino, o Mário, que era ótimo e freqüentemente preparava pratos deliciosos.

Para mim a vida à bordo era bastante interessante. Todos os dias, pela manhã, com uniforme, capacete, luvas, cinto de segurança, botas e rádio VHF subia as longas escadas da P-40. Efetuava então inspeção da situação da plataforma e reparava o que ia encontrando, amarrava peças soltas recolhia coisas caídas, apertava parafusos e colaborava com o recolhimento de lixo e limpeza da P-40 para que chegasse ao RJ limpinha. Nos primeiros dias de viagem uma tarefa desagradável: jogar ao mar os ratos mortos pelo veneno colocado em Cingapura – foram mais de 30. Um vazamento de óleo persistente nos Turbo Geradores me deu um pouco de trabalho, aplicava sempre detergente, um pouco que achei na P-40 e o que conseguia no navio. Na parte final da viagem o trabalho aumentou com o agravamento da situação pelas batidas do mar. Tive então de buscar apoio e trabalhar em conjunto com alguns tripulantes do navio. Foram muitas subidas ao flare, carregando ferramentas, que peguei no almoxarifado da P-40, parafusos e porcas. Outras tantas à torre do telecom, fornalha e estruturas do Turbo Geradores. Os apertos de parafusos e amarrações aumentaram bastante nesta fase.

Tinha bastante tempo livre para ler, tendo devorado praticamente todos os muitos livros que levei e lido quase todas as revistas do navio, entre elas muitas sobre técnica de navegação. Quando escritas em Dutch só via as figuras. Em Cingapura comprei um livro e comecei a estudar um pouco desta língua. É para nós porém bastante difícil pois quase não tem nomes de origem latina e a pronúncia é também complicada com as letras tendo sons diferente, o g é r, o j é y, etc. Os progressos foram poucos mas deu para ter uma idéia. À noite escutava em meu radinho as notícias do mundo e via alguns filmes em DVD que havia comprado em Cingapura. Tentei ver os filmes com o pessoal de bordo mas não deu, era só pauleira e violência.

Quando sai do Rio combinei com a Susy fazermos contatos freqüentes pelos rádios SSB do SAMBA e do navio. As tentativas foram infrutíferas, o rádio de bordo não conseguia transmitir. Com o novo sistema de segurança de navios, o GMDSS baseado no INMARSAT por satélites, o rádio praticamente deixou de ser usado. Como ninguém usa tende a ficar não operacional. Neste caso creio que o problema era de antena que estava com muita corrosão, o mesmo acontecia com o weather fax que só funcionava quando estava perto da estação transmissora – antena deficiente. Aliás o navio, construído em 1983 é totalmente ultrapassado sob o ponto de vista de equipamentos eletrônicos. De moderno apenas o GPS, que já não é novo, e que é a base da navegação. Passei então a usar o rádio de ondas curtas que comprei em Cingapura, e que podia receber as transmissões em SSB dos equipamentos usados pelos radioamadores. Conseguia assim escutar as conversas entre a Dona América, em Curitiba, a Susy, em Niterói, os amigos Mara e João em Salvador e muitos outros pelo mundo afora. Como os amigos não sabiam de minhas escutas pude ouvir alguns segredos como o cardápio do jantar no dia de meu retorno ao Samba.

Após alguns dias o castigo na P-40 começou a causar estragos. A inspeção diária mostrou vários problemas. Alguns eu resolvi sozinho, para outros foi necessário pedir apoio à tripulação. Foram várias horas de apertos de parafusos, reposicionamento de peças caídas, amarrações de peças e remoções de linhas, etc. A tripulação colaborou bastante.

No dia seguinte ocorreu um barulho diferente na ponta do flare. Foi decidido efetuar uma inspeção para verificar o que tinha ocorrido. Aí o comandante armou mais uma: eu não poderia ir com os tripulantes escalados para a inspeção, teria de esperar que eles descessem para subir. Um grupo de 4 holandeses subiu então enquanto eu tive, contra vontade, de ficar esperando. Um deles era um estagiário que aproveitou para tirar fotos do topo do flare. Quando eu pude subir tive de ir sozinho e já anoitecendo. Quando desci já havia pouca luminosidade e ninguém me esperava. Ficou difícil entender o motivo da decisão, mas certamente não foi preocupação com a minha segurança. A inspeção mostrou que um dos grossos tubos de suporte dos queimadores estava com os parafusos frouxos e o conjunto em risco de cair no mar. A solução era apertar os parafusos, descendo 2m na estrutura do flare. Esta operação poderia ser feita com toda segurança, com uma escada usada pelos montadores de andaimes e um cinto de segurança com dois cabos controlados por dois tripulantes. Só que o trabalho foi considerado arriscado e não permitido pelo capitão. Tentei de tudo, inclusive me propondo a executar o aperto e assinando uma declaração em que assumia todos os riscos e isentava o comandante e a tripulação de qualquer responsabilidade. Não teve jeito, a solução foi amarrar o tubo nos outros e rezar para que o tempo permanecesse bom. Deu a impressão de que a inexistência de montanhas na Holanda fez com que os holandeses ficassem com medo de alturas.

Felizmente o anticiclone do Atlântico Sul estava onde devia e a viagem prosseguiu com mar calmo. No dia seguinte a amarração foi melhorada e eu conseguiu apertar dois dos parafusos, visíveis por cima, e recolocar parafusos novos na estrutura da passarela que contribuíam para a segurança do tubo.

No dia 31 de dezembro ocorreu a passagem do milênio. Houve à bordo uma festa parecida com a do Natal. Desta vez na hora de distribuição de presentes eu fui agraciado com uma folhinha com fotos da Holanda. Aliás a Holanda não é Holanda, é Netherlands, Holanda é apenas uma das províncias do país. Mas só os holandeses sabem disso e eles mesmo, freqüentemente, chamam o país de Holanda. É como alguém que tem um apelido que pegou tão bem que ninguém sabe o seu nome. A diferença para a festa de Natal foram os brindes com champanha no passadiço, à meia noite.

No dia 6 de janeiro a previsão do tempo recebida da África do Sul dava notícia do primeiro ciclone da estação, próximo à costa leste de Madagascar, com 930mb é classificado como "Intense Tropical Cyclone". Felizmente já estávamos bem longe de sua área de influência. Demos sorte!

Com a proximidade do Rio, resolvi instalar na torre de telecomunicações uma luminária nova que havia confeccionado com um balde de cor vermelha. A original havia sido destruída pelos efeitos violentos das batidas do mar que, quando ocorriam, vibrava com extrema violência. Quando terminei de subir a longa escada de quebra peito, começou a chover. Eu não queria descer para subir de novo pois seria uma canseira. O jeito era deixar molhar. Lembrei-me então de que havia colocado na saca de ferramentas um pedaço grande de plástico – Foi a solução, armei uma tenda e fiquei no seco esperando a chuva passar. Era apenas uma nuvem, do tipo banho da Susy. Quando estávamos viajando e começava a chover ela ia logo correndo para o convés, de touca e sabonete, e se ensaboava toda. A chuva passava logo e ela ficava com o corpo cheio de sabão olhando para mim com a cara: E agora, o que é que eu faço? A chuva passou logo e conclui a instalação que, embora improvisada ficou muito boa. Era necessária pois a P-40 ficaria próxima do Aeroporto Santos Dumont e sua altura elevada exigia a identificação dos pontos altos com luzes vermelhas. Costurei também a bandeira nacional que estava rasgada, deixando-a pronta para ser desfraldada na chegada ao Rio.

No dia 11/01/01 começamos a escutar transmissões em português no VHF marítimo vindas das plataformas da Bacia de Campos. Logo depois passamos ao largo de uma plataforma de perfuração à serviço da PETROBRÁS e à noite vislumbramos a luz amiga do farol da Ilha de Cabo Frio.

No dia 12/01 acordei às 5h30m tomei café e subi para a P-40. Escalei então a torre de TELECOM para soltar a bandeira. Estávamos ao largo das ilhas de Maricá e o vento soprava forte de Oeste. Fiquei com medo de que a bandeira rasgasse. Resolvi então sentar no topo da torre e esperar o vento diminuir, o que parecia estar prestes a ocorrer. A paisagem era linda do alto e me senti novamente em casa e, como sempre, deslumbrado com a beleza da região. Às 7h30m apareceu um helicóptero fazendo filmagens. Soltei então a bandeira e pensei: o pessoal do helicóptero deve estar admirado com o nível de organização da filmagem, havia alguém esperando para soltar a bandeira no momento em que eles chegassem; não poderiam imaginar que fora tudo obra do acaso. Eles se aproximaram e me filmaram junto da bandeira, no alto da torre. Eu era naquele momento apenas um petroleiro cumprindo sua missão. Senti então orgulho de estar representando este grupo de pessoas que com dedicação e competência dá tanto de si pela empresa e pelo país.

Quando desci para o Mighty Servant I uma surpresa, o Capitão armou mais uma – a última: me repreendeu por ter desfraldado a bandeira no alto da torre! Dizia que bandeira só a do navio. Eu aleguei que a bandeira estava lá desde Cingapura, eu a havia enrolado durante a viagem e soltado agora. Havia também recebido orientação da PETROBRÁS de que a plataforma deveria entrar na Baía de Guanabara com a bandeira desfraldada. Ele persistiu com sua posição e eu, com educação e firmeza na frente de todos os outros oficiais, disse que não concordava com ele. Meia hora depois ele, reservadamente, reconheceu o excesso de sua atitude e se desculpou por sua ação.

Às 8 horas o prático embarcou e, pela primeira vez em 43 dia falei com alguém em português.

Pouco depois, já perto da entrada da barra, apareceu um veleiro na proa do navio. O Capitão, preocupado, soou o apito do navio. Era o "Onda Azul Rio", de meu amigo Chicão, trazendo à bordo a Susy e com meu amigo Marcos ao leme. O barco estava decorado e trazia faixas nos dois bordos: "Namorado – até que enfim!" à BB e "Namorado – que saudades" à BE. Foi uma recepção carinhosa que me causou grande emoção.

Às 8h50m entramos a barra e às 9h10m ancoramos em frente à Escola Naval. O "Onda Azul Rio" se aproximou e, depois de quase três meses de ausência , pude ver e falar pessoalmente com a Susy. Pouco depois chegaram as autoridades, Receita Federal, Imigração e Saúde. Após cumprimento das formalidades de entrada e desembarque das autoridades, embarcou o pessoal da PETROBRÁS e das empresas contratadas, as mesmas pessoas das quais me despedira na saída de Cingapura. Foi uma grande emoção rever os amigos e sentir a sensação de ter cumprido a minha missão. À tarde peguei uma lancha no navio, acompanhado por amigos de trabalho no Mauá, e desembarquei no cais do Clube Naval – Charitas, em Niterói, ao lado de minha casa, o veleiro SAMBA. Estava em casa sem pisar em terra - das vantagens de morar à bordo de uma embarcação.

No dia 14/01/01 ocorreu o descarregamento da P-40 (foto abaixo). Naquela manhã de sol a Baía de Guanabara estava radiante com todas as suas cores, parecendo engalanada para receber a plataforma. O Mighty Servant I já estava parcialmente afundado quando chegamos no "Onda Azul Rio", continuou afundando e por volta de 10 horas foi retirado de cima do convés do navio por dois rebocadores e levado para as proximidades da Ponte Rio-Niterói onde seria ancorada. Era prevista sua permanência na Baía de Guanabara por 1 mês, após o que iria para o campo de Marlim Sul na Bacia de Campos, em frente ao Cabo de São Tomé. Dois meses após sua chegada à locação definitiva deverá iniciar a produção do petróleo que pagará todo este investimento e contribuirá para que o Brasil se aproxime da meta de auto suficiência na produção deste combustível.

Olhando a P-40 ancorada na Baía de Guanabara minha visão é diferente da das pessoas que não tiveram a oportunidade de participar de um empreendimento deste tipo. Elas vêm uma enorme plataforma, eu vejo as milhares de horas de trabalho das equipes da PETROBRAS e de outras empresas, vejo os milhares de pessoas que dedicaram tantas horas de suas vidas a esta atividade, vejo a competência dos brasileiros e da engenharia nacional que levaram a cabo esta complexa obra.

Renato Botelho é funcionário da Petrobrás e experiente velejador. Realizou nos anos 80 uma circunavegação em seu veleiro Samba – até hoje a sua casa – junto com sua mulher, Suzy. Estão atualmente com o barco/casa no Clube Naval Charitas em Niterói.

Colaboração: João Reguffe