Varando os 4 tentáculos da Lagoa dos Patos
José A Torelly Campello

Em 30/09 rumamos para São Lourenço às 21:30h com o objetivo de velejar num Madruga 24 (Joshua), trazendo-o para POA a convite do Comandante Maurício Mancini que o adquirira recentemente e pretendia participar das regatas do campeonato Estadual e Cayrú.

Comandante: Maurício Mancini
Tripulantes: Ari Schneider, Fernando Campello, José Campello
Planejamento : Partida às 5:00 h de 01/10/2005
Pernoites alternativos: Arambaré, Birú (Tapes), Ilha Barba Negra.
Chegada prevista no Jangadeiros: Tardinha de 02/10/2005

Deixamos o trapiche de São Lourenço às 5:45h após reforçado café pouco antes do raiar do sol vendo a cidade de São Lourenço ainda sob a penumbra do amanhecer. Brisa suave de Sul (esperada e favorável) nos embalava, aumentando gradualmente em intensidade.

O veleiro Madruga um barco que dispensa maiores apresentações, de bolina e leme retráteis do tipo guilhotina, projeto Vaqueiro, equipado com ecobatímetro, piloto automático, GPS Garmin 72, um computador portátil Note book com programa OziExplorer contendo as cartas da Lagoa, é a embarcação certa para nossa situação hídrica, oferecendo conforto e suporte suficientes à nossa empreitada. A rota da navegação concentrava os principais WP em cima dos bancos, próximo às raízes.

O comandante logo pôs os tripulantes à vontade passando o leme enquanto armava o balão com o Fernando.
Com o balão branco e azul no tope nos deixamos levar no 1º trecho enquanto a natureza ascendia e coloria o cenário até o mais raso dos bancos, o do Quilombo, afastado 7 milhas náuticas da partida. Não tardamos a recolher as partes retráteis diante desta aproximação derrubando o balão por precaução. A ultrapassagem nem tão tranqüila nos surpreendeu pelos toques e manobras necessários imprimindo nossa assinatura naquele raso leito.
Os 4 bancos do lado oeste da Lagoa compõem obstáculos consideráveis a navegação, mas estávamos equipados e querendo superá-los um a um.

Semelhantes a grandes tentáculos lembram uma mandíbula aberta cujos longos dentes avançam para o centro da Lagoa perturbando e surpreendendo incautos navegadores que não raramente estacam em suas presas. No lado leste, esta grande boca apresenta-se menos dentada e com as presas mais curtas.

Superado o 1º banco à nossa esquerda desfilava a certa distância o delta do Camaquã, base dos estaleiros de Bento Gonçalves e Garibaldi, onde nasceram os veleiros Farroupilha e Seival construídos sob projeto e coordenação do americano John Griggs. Estas embarcações tiveram participações surpreendentes com feitos notáveis marcados pela travessia épica de 100km por terra, de Capivari até o rio Tramandaí, por onde foram lançados ao oceano rumo à Laguna. Embora com vida efêmera, estavam destinados a uma história dramática e contundente no estado de santa Catarina, onde o Farroupilha sucumbiu tragicamente sob as ondas de furiosa tempestade na altura de Araranguá e o Seival sozinho surpreendeu os Imperiais numa batalha sangrenta de David contra Golias tirando proveito de seu pequeno calado surpreendendo Laguna por águas não tradicionais, tiroteando contra pelo menos 4 canhoneiras e afugentando outras embarcações, o que resultou na fundação da República Juliana em Santa Catarina, espécie de Filial Republicana com acesso ao mar.

Suas realizações deram origem à fantástica e orgulhosa saga da história náutica gaúcha planejada pelos comandantes revolucionários Farroupilhas, que na água atuavam sob o comando de Garibaldi, herói dos Dois Mundos. Essa glória, os gaúchos comemoram festivamente nos meses de setembro com regatas alusivas de médio e longo percurso, Farroupilha e Seival, respectivamente.
No fim do 2º estágio já a 17 Mn, ultrapassamos o banco Vitoriano entre a ponta e a pequena ilha arenosa a boreste, com profundidades sempre acima de 1,2m.

A velejada desenvolvia-se prazerosa entre 4 e 5 nós, agora no través do arroio do Peixe rumo ao banco Dona Maria a 33 Mn e a mais de 7,5h de São Lourenço, também facilmente ultrapassado pelo valente Madruga apesar dos stress naturalmente presente nestas horas. O vento firmara sem exigir trimagem do balão, permitindo ao comandante após alguns revezamentos atribuir o comando automático ao 5º tripulante. O sol se aproximava do horizonte e o entardecer, que enchia de tons laranjados o horizonte, convidava à meditação. Na margem oposta, o farol Cristóvão Pereira refletia o brilho de um diminuto palito esbranquiçado.

Nossa 1ª alternativa de parada, Arambaré, ficara descartada quando a tivemos em nosso través a 44Mn da partida perto das 17:30h. Passamos então a considerar a possibilidade de pernoite na Ilha Barba Negra, aproveitando o vento favorável. Quando cruzarmos o Desertores, o 4º e mais fácil dos bancos, que nos pareceu como um único e rápido alfaque à 1,5m de profundidade, já tínhamos na visão a floresta de pinus do Pontal de Santo Antônio.

Nossa balonada já durava mais de 11hs e o sol se punha na altura do Pontal enquanto os últimos minutos de desfrute eram saboreados antes do recolhimento desta vela. Não queríamos perder condições tão favoráveis, pois sabíamos que em poucos minutos tudo poderia tornar-se adverso. De fato, pouco tempo depois nossa paz acabaria.
O vento repentinamente apertou para 15 a 20 knots, girou no sentido anti-horário e subiu para leste firmando o sopro do quadrante sudeste, aproximando gradualmente dos 90º. O tempo estimado para chegada em Barba Negra, 10:00h, nos exigiria mais 2:30h a ventos médios em noite escura, mas ainda sem ondas nem salpique. É nessa hora que desponta a fé no GPS. Não havia lua, a velejada era às cegas, o vento frio começava a castigar. O Comandante passou a reclamar do peso do timão compartilhando-o com os tripulantes.

Neste instante planejávamos a aterragem na ilha. Então recorremos a um dos livros referenciais de Geraldo Knippling, “O Guaíba e a Lagoa dos Patos”, que sugeria uma rota pelo Sul e Oeste convenientemente afastada do banco e de possíveis pedras.

Marcáramos um ponto a sudoeste da ilha que foi atingido com segurança. Nosso objetivo era subir por sotavento, próximo à margem, até a pequena enseada norte, onde Mauricio já pernoitara anteriormente, vindo de POA. Nesse ínterim, não fosse a visão infravermelha do Fernando só víamos a sombra de morro da formiga porque a ilha, muito baixa, se tornava despercebida naquelas condições. Encostamos e percorremos a motor as 2 milhas de sua extensão à crítica profundidade de 1,3 a 1,5m.

Às 23:30 h, devidamente ancorados e protegidos, com uma âncora à proa e outra à popa, sentíamos o vento nordeste batendo forte lá fora. O local era seguro embora a profundidade média da enseada não passasse de 1,00m. Era hora das especiarias e lá estava o Maurício a preparar a melhor surpresa da noite. Alimentados apenas com recheadas e deliciosas torradas no almoço, nossos estômagos impediam outro pensamento naquele momento. Abrimos um vinho tinto e uma massa ao molho de tomate e cebola que socegou momentaneamente todos os desejos da espécie humana com exceção de um que persistiu e agravou-se após a janta, estampado em nossos rostos cansados e nas pálpebras pesadas dos olhos avermelhados de todos.

Ventou com intensidade a noite toda e quando amanheceu a paisagem era a revelação colorida do filme preto e cinza noturno, com todas as tonalidades da natureza desfilando ao redor. Imaginamos as belezas selvagens daquela ilha. Em nossa enseada havia duas canoas de pesca, dois trapiches e dois barracos, um habitado. O café quente com Nescau nos trouxe a realidade. O barco necessitava uma revisão de mastro. O leme pesado preocupara demais o Comandante. Mãos a obra e trocamos a inclinação, tombando o mastro mais à frente.

No momento de aperto das contra-porcas nos macacos esticadores dos brandais, o Fernando percebeu algo estranho no pé do mastro. Os furos de fixação dianteira da ferragem continham bastante silicone, mas não denunciavam as cabeças dos parafusos. Parecia que houvera um deslocamento na base do mastro. Corremos para o interior e não havia porcas por dentro. Sentimos um calafrio na espinha só de pensar numa desmastreação em função de tamanha irresponsabilidade do autor do serviço. Com o martelo, Maurício deslocou com relativa facilidade o pé de mastro, colocando no lugar, preso em apenas dois parafusos de ¼”. A sorte foi que, entre os vários exemplares na caixa de ferramentas, dois parafusos de madeira foram facilmente adaptados nos livrando de perigos futuros de queda em ondas com ventos acima de 20 knots. Ufa! desta nos safamos graças novamente a capacidade de observação do Fernando. Partimos às 10:30h e navegando a motor com vento na cara não víamos o fim da quebra das suspeitas espumas das ondas, que denunciando um banco de areia, se estendiam bem ao norte da ilha, já a quase uma milha desta. Resolvemos investir e conseguimos ultrapassar a arrebentação com apenas 1,3m de profundidade encarando ondas e vento nordeste.
Não içamos a vela grande rizada na 2ª forra e a genoa 3, ambas preparadas ainda na ilha, devido ao vento frontal e a pequena lâmina d´água persistente até a metade do percurso com o que acabamos adentrando o canal de Itapuã a motor.

Refletindo nestas 2 h que durou a motorada, percebi que semelhante à formação do Saco de Tapes está se formando um novo saco que provavelmente se chamará Saco da Formiga daqui algumas centenas ou milhares de anos, graças ao banco que deve crescer na rebentação entre o morro da Formiga e a ilha do Barba Negra por ação do acúmulo de sedimentos trazidos pelo Guaíba e retrabalhados pelos ventos, principalmente o nordestão que açoita com regularidade a Lagoa. Há também outro ístimo se formando no banco das Desertas a leste. Que se diria então dos 4 tentáculos. Quanto tempo sobrará para outras gerações ainda transpassá-los por água? A mais de 200 anos a Lagoa dos Patos já era conhecida por seus traiçoeiros bancos. Segundo Maurício, o do Quilombo já se mantém boa parte do ano fora d´água. Afinal a dinâmica da natureza tem sido alterada pelo homem. Nunca havia pensado nisto antes, mas velejando, observando e consultando a carta náutica, isto salta aos olhos e posso dizer que foi mais um aprendizado desta travessia.

De volta ao Guaíba, do Farol de Itapuã, praia do Sítio, muita movimentação náutica na praia da Pedreira. Enfim içamos as velas rizadas na altura desta praia e o barco voou a 6,5knots mesmo com os morros da cercania servindo de anteparo. Vimos vários veleiros do velejaço organizado pela marina de Itapuã desdobrando o evento no Parque de Itapuã.

Logo após a ilha do Junco a intensidade do vento caiu e ao retiramos os rizos, o barco voltou aos 6,5knots.

Apontamos a proa em direção a Ilha de Chico Manoel. Já a víamos pela popa quando sofremos uma atravessada repentina e um grito do Fernando que anunciava a perda do leme. Mal tive tempo de ver um pedaço de madeira no turbilhão da esteira, enquanto tentava retirar a asa de pomba com o Ari baixando instintivamente a parte remanescente que sobrara do leme quando o barco voltou a reagir. O leme se partira na parte inferior aumentada, cerca de 40cm. A emenda não resistiu à pressão das 1,5 ton do barco impulsionado pelos panos em cima. Com o restabelecimento da governabilidade o barco retomou ao rumo pouco prejudicado pela perda. Neste meio tempo o Maurício se esmerava na arte da culinária, preparando um carreteiro com carne de gado, mergulhado em tempero de cebola e tomate, simplesmente espetacular. Almoçamos no través da Ponta Grossa e a chegada no Jangadeiros ocorreu às 17:00h de 02/10/2005, após 112 Mn percorridas e uma grande satisfação por parte de toda a tripulação.

Campello

Tracks do Joshua para Ozi Explorer (zipados, 33KB)

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