Garrando no ventão
Um encalhe a gente não esquece
Danilo Chagas Ribeiro

Desatracamos o veleiro Canibal do Veleiros do Sul à uma da madrugada da quinta-feira (2/11, feriado de finados) para um cruzeiro de 4 dias, com destino à Enseada de Tapes.

Quando chegamos à Praia do Sítio o dia estava quase clareando. O Comte. Andreas Bernauer e eu preferimos fundear ali e descansar, a encarar a Lagoa dos Patos com tripulação escassa e vento farto. Na foto ao lado um recanto da Praia do Sítio.

Aumento do percurso
Entramos na lagoa ao meio dia. Tinha um vento de boa intensidade, e com direção "quase" igual à da previsão. O SE previsto vinha de SW, que era casualmente nosso rumo, e vinha a 20 nós. Assim, em vez de velejarmos em linha reta, tivemos que bordejar, aumentando muito o tempo de percurso.

Neste caso, se considerarmos que as cambadas ocorrem a 90º, o percurso fica aumentado em 43%, como tento demostrar ao lado.

Fizemos alguns bordos para chegar ao sul do Pontal Sto Antônio, onde entramos na Enseada de Tapes, já à noite.

Notebook jurássico
Dali até o Capão da Lancha, onde fundeamos, utilizamos o programa Ozi Explorer para navegar. A tela do notebook mostrava a carta náutica, os waypoints e o barco movendo-se sobre a carta. O computador é jurássico (IBM ThinkPad 486, ou menos) mas tem porta serial, que é o bastante para plugar o GPS e fazer a navegação. Um chart Plotter faz a mesma coisa. E um GPS Map, idem. Só que, via de regra, o plotter está instalado lá na cabine, fora de mão, e sua carta é ruim, como as dos GPS. O Ozi utiliza a carta da Marinha com todos os detalhes.

Paisagem desértica
Logo após o fundeio o vento parou. Fizemos um churrasco no cockpit, ouvindo as ondas da lagoa quebrando no outro lado do pontal.

Na sexta de manhã desembarcamos com o dingue. Atravessamos os cômoros do pontal em 5 ou 10 minutos, e fizemos fotos. Os cômoros são de baixa altura, com paisagem desértica. De um lado está a Enseada de Tapes, e do outro, a Lagoa dos Patos. A água tem temperaturas diferentes em um lado e outro. Na foto acima, tomada no Pontal de Santo Antônio, os "Paredões Areníticos de Tapes, com 100m de altura". É brincadeira. Tente imaginar o que pode ser isso. Esse sol aí é de mentira*.

30 nós de vento
Continuamos velejando pela costa do pontal até termos o Acampamento do Willy no través, de onde tomamos o rumo do Clube Náutico Tapense. Chegamos lá ao meio dia e encontramos amigos.

O vento manteve-se forte. No sábado pela manhã desatracamos contra o vento, que aliás já era bem bonzinho. Ao longo do caminho de volta até a Praia do Sítio, a Lagoa dos Patos tinha vento de uns 20 nós de sudeste, que passou para 30, de leste. Nesta rondada as ondas, já de altura 'bem mais ou menos', continuaram de SE por um bom tempo, claro, proporcionando um balanço incômodo. "Calçamos" com o motor.

Confraternizando a bordo
À noite, na Praia do Sítio, fizemos mais um churrasco, desta vez com convidados. Era a tripulação do veleiro Victor, que vinha do Porto do Barquinho e que chegou logo depois de nós na Praia do Sítio. A sobremesa foi leite condensado cozido. Ficamos até tarde conversando e rindo bastante no cockpit do Canibal, na companhia do Jameson e da Rita Lee. Combinamos de voltar juntos para Porto Alegre às 9 da manhã do dia seguinte, domingo.
Ventou forte a noite toda. Deixamos o alarme da âncora ligado. Não houve qualquer deslocamento.

Pano n'água
No domingo pela manhã, assim que a âncora foi suspensa, a genoa foi desenrolada e... foi toda para a água imediatamente. A manilha que prendia a vela na adriça, sumiu. O veleiro Victor, que já estava pronto para partir, ficou navegando em círculos, aguardando por nós.

Garrando no ventão
Já tínhamos 20 nós de vento a essas alturas. A âncora voltou pra água. Tentamos usar a adriça do balão, mas o gato não cabia na ferragem do enrolador. E aí começou a função de procurar uma outra manilha na caixa de ferramentas, ou usar um arame, ou quem sabe um cabinho... E o vento comendo, e aquela baita genoa na água.

A conversa passa a ser no grito, tal o barulho do vento que já andava beirando 30 nós. Desce na cabine, traz isso, tenta aquilo, não dá certo, vai de novo, volta, tenta mais uma vez. Alguma coisa vai ter que dar certo. Lá pelas tantas, olhei pra costa e estranhei a paisagem com aquele costão ali do lado. Epa!... Tamu garrando!!!!
É coisa bem feia ver um barco bonitaço como o Delta36 garrar num ventão daqueles, bem pertinho do costão. Credo...

Içando pano com vento forte
Reposicionamos o Canibal com a ajuda do motor e fundeamos novamente. Voltamos à faina pra safar a genoa. O vento apertando mais e mais. A fúria das rajadas mais doidas adernava o Delta36 repentinamente (fundeado e em árvore seca, lógico). As adriças, os cabinhos do lazy jack e os outros cabos junto ao mastro batiam incessantemente, em alta freqüência. Era uma baderna danada.

Achamos um jeito de prender a adriça do balão na genoa e começamos a içar o pano. O Andreas caçava a adriça e eu guiava a vela no trilho do enrolador com dificuldade porque a vela, além de pesada (molhada), panejava freneticamente, complicando bastante a faina. Içar a genoa naquele ventão foi uma parada.

Encalhe na coroa
Quando o problema parecia resolvido, aprendemos aquilo que o Mestre Geraldo Knippling já sabe há tempo e publicou em suas obras: o leito da Praia do Sítio não é santo. A baita âncora Bruce com 30m de corrente, mais o cabo, havia garrado novamente. Mas desta vez, envolvidos na faina com a genoa, só fomos perceber a encrenca depois de lavrar uns 200 a 300m de lodo. A genoa já estava quase lá em cima quando encalhamos nas proximidades da Coroa do Campista. O Guaíba muito baixo contribuiu pra piorar a situação: apenas 0,15m na Régua da Harmonia!

Auxílio de amigos
Depois de muito tentar desencalhar com o motor e com os panos içados para adernar, só havia uma coisa a fazer: pedir ajuda. O vento empurrava o Canibal cada vez mais pra dentro da coroa.

A essas alturas, o Victor já estava fundeado lá na beira da praia, aguardando por nós. Muito mais do que isso, estavam tomando uma atitude por nós. Acionaram a Comodoro Christina Silveiro, do CNI, em Itapuã, que fez contato com o Comte. Mâncio, do barco a motor Farol de Itapuã para o reboque.

Uma hora depois chegou o auxílio. Após algumas tentativas estávamos safos, próximos das pedras do Morro de Itapuã, ainda no reboque, junto ao farol, e rumo à Praia do Sítio.

43 nós de vento
Novo fundeio, uma Coca-Cola bem gelada, e vamu embora que o bicho ta pegando. Em frente à Praia da Pedreira o vento descia o morro a 43 nós, nas rajadas (confirmado pelo anemômetro do Victor). É como botar a cara pra fora do carro a 80km/h. A média era por volta de 35 nós.

Seguimos com a genoa mal e mal desenrolada (dois palmos?) para acompanhar o Victor (Fast 345), com muita atividade na roda de leme por causa das rajadas e da relativamente baixa velocidade.

No leme, eu levava guascaço de água pelo costado a todo o instante. Foi uma velejada bem molhada mas não tive vontade de vestir o abrigo. Estava ótimo como estava. Lá pelas tantas me perguntei como teria sido essa indiada em um O'Day23.

Terminou em pizza
Mais adiante, um pouco ao sul da Ponta Grossa, o vento começou a diminuir.

Assamos pizzas e viemos com aquele papo típico de um pós-encrenca. Pois é né... Poderia ter sido bem pior... Mas também, não fosse o treco aquele... É mas o problema é que... Talvez nós pudéssemos ter...
Lembrei desta tirinha aí, do meu ídolo.

Mas no final das contas, rimos bastante. E aprendemos um pouco com a indiada.

Estripulias
Ali pelo Jangadeiros, já com bem menos vento, assistimos às estripulias do Vitinho na cruzeta do Victor (foto). Ele sobe agarrado nos estais, com os pés nos estais de força. Sem luvas. Acredite, se quiser.
Vai ver leu muitas histórias do Homem Aranha quando criança. É daquelas coisas de dizer "Ah se eu tivesse a idade dele...". Bobagem! Não conseguiria fazer aquilo nem com a idade dele..

Agradecimentos
A tripulação do veleiro Victor foi sensacional. Muito obrigado ao Comte André Barth, Capitão Am Claudia Barth, Vitinho e Zuzu, pelo apoio, pela iniciativa e pela solidariedade. Obrigado também à Tina pelo contato com o Comte Carlos Mâncio que, com seu auxiliar Luciano, fizeram um belo trabalho de resgate.
É importante citar ainda a serenidade com que o Comte Andreas conduziu a situação adversa.
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(*) Veja nas fotos abaixo o que são os "paredões areníticos", na verdade. O sol na foto reduzida lá em cima foi criado no computador, mas o resto não tem truque, como também não os tem as demais fotos do popa.

 

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O Canibal no Clube Náutico Tapense

Paulo Bohrer