Olá queridos amigos.
Que estranhas voltas que o mundo dá...
O que parecia impossível está perto do fim, 1600 km já se foram (faltam 30 km para Imbituba) e o pelotão não quer voltar para casa e viver como um cidadão normal.
Foi lançado um desafio e nos agarramos nisto como uma forma de manter nossa vida de peleias por mais um tempo.
Parece que há um tesouro lá longe, onde o sol continua a brilhar e não podemos ver.
Mas é justo lá onde estão depositadas nossas supremas esperanças e tenho que seguir o caminho que me ensinam.
Correremos atrás das mil milhas onde o Imortal repousará no Rio Grande até que o pelotão seja chamado para um novo combate.
Além de terras e através dos tempos haveremos de nos reencontrar.
TRECHO DE QUINTÃO A LAGUNA
15-09-07 Sábado - Quintão
Acordo cedo, está nublado e parece haver vento na copa das árvores. Acerto a estadia com o seu Francisco, ele é muito legal. Sente saudades da Espanha e fala de sua terra.
Na saída ele me dá dois tabletes de cereais. Atravesso as dunas e chego à praia às 8:40h. Cadê o corno de vento sul que estava previsto pra hoje?
Acordo cedo pra pegar a praia baixa e nada de vento...
Sigo puxando a espera de que mais tarde ele se manifeste.
Logo adiante um estranho carro todo de madeira SRD (Sem Raça Definida) anda a meu lado. São pescadores e me oferecem carona. É só jogar na caçamba...
Agradeço pela milésima vez, mas fico grato, pois o pessoal está sempre disposto a ajudar.
Eu sabia que não podia contar com meu inimigo o vento.
Agora a praia está tomada de caniços de pessoas aposentadas. Eles pescam peixinhos pequenos que os pescadores de rede torciam o nariz só de olhar. Os peixes que os caras jogavam fora; aqui seriam disputados a tapas pelos pescadores de lambaris.
Vou passando, o pessoal olha curioso e invariavelmente pergunta:
- Faltou vento?
- Faltou gasolina?
Eu mereço!
Às vezes dá uma brisinha e eu pulo rápido na longarina e velejo até o carro parar logo adiante.
É um jogo de paciência, mas a estratégia do pelotão enfraquecido é a tática de guerrilha.
Ataca aqui e ali até ir minando a resistência do inimigo.
Vejo partes com pingos de chuva na areia de dias passados. Lembro de quando jogava tenis com meu amigo Rojas. As disputas eram acirradas lá no LIC, em Florianópolis.
Jogávamos dentro do espírito do esporte, como dois lordes ingleses.
Quando o oponente acertava uma jogada e ganhava o ponto, o outro, educadamente, comentava:
- Boa bola!
E logo em seguida no pensamento:
- Como foi que esse desgraçado acertou aquela bola?
Certa vez, depois de errar quatro vezes seguidas um ponto decisivo dei tanta porrada na raquete no chão que o "capeta" que a havia possuído saiu correndo.
O brody Rojas ficou tão enfurecido ao perder o jogo que deu um chute na parede e destroncou os dedos.
Como um "lorde inglês" o que assistia aos ataques de fúria do outro se virava para "buscar" a bolinha e mordia a bochecha para não rir e deixar o outro mais enfurecido.
Ele era tão "ladrão" que tinha a cara de pau de dizer "fora" para bolas que visivelmente batiam no lado de dentro da quadra de saibro. Passava a raquete em volta de uma suposta marca do lado de fora.
Como eu quase sempre ganhava, nem dava muita bola. Um dia ele exagerou e fui olhar a marca que apontou;
- Rojas, tu é ladrão mesmo. essa marca tem até pingos de chuva por cima e a última vez que choveu faz uma semana...
Amigos sempre tem seu lado positivo. Quando queria espalhar uma notícia, bastava contar ao Rojas, Bello e Aldo e pedir para não contar a ninguém...
Pronto, a notícia se espalhava mais que chumbo fino em calibre 12.
Eles são mais conhecidos como "Bokudos" da Lagoa e do Centro Comercial, onde temos nossas clínicas.
As horas passam e paro para almoçar perto de Cidreira assistindo as danças de quero-queros, gaivotas e talhamares em volta das fêmeas.
Nas dunas vejo vários membros da tribo canídea envolvidos na perseguição das fêmeas. Pássaros carregam gravetos e o calor aumenta... Acho que se aproxima a primavera!
Na parte da tarde o vento dá sinal de vida e velejo no estilo patinete. Chego a plataforma de Salinas e sigo em frente.
Depois, na plataforma de Tramandaí está havendo um campeonato de surf.
Desmonto a vela, já é final de tarde e sigo puxando pelas ruas em direção da ponte sobre o rio Tramandaí.
Anoitece e paro para lanchar já em Imbé. Não quis visitar meus amigos do Hotel Alaska porque sabia que não iriam me cobrar hospedagem e não quero abusar. Venho visitá-los quando voltar de moto.
Chove fino e sigo em frente até achar uma casa que não tenha ninguém por perto e nem os pentelhos dos cachorros.
Deito sobre o plástico e chove, mas a varanda é larga.
16-09-07 domingo
Às 7:40 h já estou na praia, mas o mar está de ressaca e a água vem até quase as dunas...
É só pra irritar! Deveria estar baixo...
Para variar o vento está fraco e sigo puxando um pouco e andando de patinete.
Perto de 13 h paro para almoçar pouco antes de Capão da Canoa e encontro Cláudio que é geólogo e ficamos conversando muito, pois cheguei a fazer um ano de Geologia antes de mudar de rumo.
Logo adiante passo pela plataforma de Atlântida e chego em Capão.
O vento fica mais forte e sigo pela zona das ondas, pois ali está mais firme.
É claro que eu e o carrinho somos "lavados" a toda hora.
O vento vai ficando mais forte e consigo andar um bom pedaço num "pau" e depois enfraquece de novo. Volto ao patinete e numa dessas lavadas o mar levou uma das botas...
Não pretendo voltar, então deixo a outra na praia para que encontre sua amiga perdida.
O vento vem firme e forte de novo e velejo como louco. O carro voa, as praias vão passando e vejo algo no horizonte que não quero crer... Parecem os rochedos de Torres!
Saídas de riachos, calombos e atoleiros são devorados pelo Imortal que vem em alta velocidade.
Antes de Torres tem um morro que avança na praia. Atravesso o atoleiro de areia mole, subo uma pequena colina e fico livre para seguir sem mais nada até os rochedos da praia da Guarita.
Estou radiante de felicidade. Nem acredito que em dois dias estou fazendo o trecho que planejei fazer em seis...
Por volta de 17:30 h chego aos rochedos. O mar está baixo e assim arrisco e vou em frente entre os rochedos e o mar até a praia da Guarita.
Peço a um rapaz dali tirar umas fotos para mim.
Depois falo com Lopes e Angela que ficaram com o carrinho desmontado pro Paulo vir recolher o Luigi. Fiquei tão feliz como eles ao me rever.
Não acredito! 1460 km foram pro espaço!
O pelotão urra de felicidade!
Ligo pra mãe e sigo para o centro de Torres já com a vela desmontada.
Depois passo uma escova em mim e no carro, pois estamos atopetados de areia no rosto e nas roupas.
Para completar minha felicidade o Grêmio ganhou o GRE-nal de novo e a festa nas ruas corria solta enquanto eu comia um "X-Tudo" que o Luigi adorou quando chegamos a Torres, no dia 28 de Julho...
Dormi no hotel das Figueiras depois de um sonhado banho.
Meu pé esquerdo detonou do esforço.
Está ruim até para caminhar!
- Senhor, está muito inchado.
- É verdade!
- O doutor D K Bessa mandou fazer calor e tomar antiinflamatório...
- Então eu vou tomar um antiinflamatório caseiro lá no boteco da esquina!
Mando baixar dois baita copos de vinho e o pelotão fica "prontinho" para dormir.
Ainda assisto ao filme "O Resgate do Soldado Ryan".
17-09-07 Segunda
Acordo cedo e há vento, parece de leste. Vou partir, mas quando vou caminhar para tomar café percebo que se formou uma bola na parte superior do tornozelo, quase na junção com a canela.
Deve ter rompido algum vaso e a dor atrapalha um monte para caminhar.
Como vou puxar o carro assim?
Tenho que deixar o bom senso prevalecer e ficar deitado toda a manhã.
De tarde venho a lan e fico respondendo os mails e recados que não pude responder antes. Agora são 21 h e espero amanhã poder continuar, agora sem as botas. Vai de chinelo mesmo!
18-09-07 Terça
Vou sair, mas um dos pneus está no chão...
Desmonto o dito cujo e coloco outro.
- Senhor, o remédio que passamos no soldado TE (tornozelo esquerdo) diz que é para uso veterinário...
- Isso é pomada para articulação de cavalo!
- O pelotão não peleia como um animal?
- Mas senhor, o soldado TE já teve ruptura de ligamento, erisipela na peleia de bicicleta em Manaus e fratura grave quando a roda do carro o quebrou e jogou por baixo do banco. Ele é um herói de várias campanhas...
- Tá certo! Então vamos em marcha lenta, mas ele que se arrume. O pelotão não ficará esperando indefinidamente.
Chegaram as ordens do comandante maior, "o Espírito que Manda"!
- ?????
- Ele quer que a gente volte e encontre o soldado Ryan, quero dizer, o sargento Fogareiro que morreu em combate e foi deixado nas dunas próximo de Imbituba.
- Mas porque arriscar a vida de tantos homens por um só?
- O comandante viu um filme e ficou com pena da mãe do sargento fogareiro.
- Alguém sabe quem é a mãe dele?
Apesar de muito inchado, consigo caminhar mais ou menos até a ponte de Passo de Torres e retorno ao estado de Santa Catarina.
Acho que no mínimo em oito dias e no máximo em 15 chego a Imbituba. Depende do vento e de nada de novo acontecer.
Sigo até a barra do Mampituba e o vento está terrivelmente forte e uma verdadeira tempestade de areia corre sobre a rua. É um corno de um nordeste.
A praia é pequena, cheia de areia mole e o mar está alto.
Puxar o Imortal por ali vai detonar de vez meu tornozelo.
Resolvo seguir por uma estradinha paralela mais por cima, pois o vento lá não é tão intenso e o esforço será menor.
Ali na barra tem um senhor que se lembra quando passei aqui com o Luigi, em Julho...
Almoço em uma padaria dali e sigo pela estradinha até Bella Torres. Ali foi o local onde terminou a viagem de caiaque ano passado. O caiaque veio por cima de mim, o leme quebrou na minha cara e a ferragem do leme cortou acima do supercílio. Cheguei à praia ensanguentado e ali conheci Borges e Rafael que fizeram o curativo.
Eles são do Corpo de Bombeiros de Araranguá e os tenho como grandes amigos.
Sigo em frente e vou para a praia; ali é amplo e firme, vou seguir orçando.
Acontece que para o lado de Torres está cinza azulado e vários raios e trovões anunciam tempestade...
Seguir com um mastro de 5m na praia com tempestade é risco certo!
Resolvo esperar na varanda de uma casa ali na beira. É a praia Rosa da Praia, colada a Bella Torres.
A chuva chega forte. Vou ficando, ficando e o dia passa. Thor o chifrudo parece uma alegoria de carnaval com todo seu show pirotécnico.
Coloco duas tábuas de obra no chão, o plástico por cima e deito. Assim dou um descanso ao TE.
19-09-07 quarta
Parto às 8:40 h, choveu direto, mas agora está bom. Logo na saída a praia encontro um imenso leão marinho em decomposição. Aqui tem uns urubus diferentes dos da Guarda, esses tem cabeça com crista vermelha.
Ao passar por outro leão morto, o vento surge. Vem de leste...Beleza!
Mais adiante fica forte e o Imortal "voa".
Passo por uma plataforma de pesca alta o suficiente para passar sem desmontar o mastro.
Passa uma hora nessa correria e vejo um morro alto à bombordo... Não pode ser, parece ser o Morro dos Conventos.
Há uma moça na praia, pergunto a ela se é Morro dos Conventos mesmo. É Nina, arquiteta que mora por aqui e restaura móveis. Ela confirma e eu expludo de alegria, em uma hora fiz quase 50 km... São apenas 12 h e se chegar ao outro lado da barra e viajar com esse vento....
Queria ligar daqui e me encontrar com o Rafael dos bombeiros, mas passo de moto mais tarde, pois vento favorável é raríssimo.
Desmonto tudo, lavo-me no chuveiro dali e subo a imensa ladeira que leva ao alto do Morro do Farol.
Dureza! Ainda por cima vai detonando o tornozelo.
Lá em cima eu sigo pela estradinha e rumo para a balsa. Nem vou comer para não perder tempo.
Se fosse para a barra direto, não haveria caíque para me cruzar (são muito pequenos). Melhor depender só de mim.
Chego a balsa, ali pedestre não paga. Sigo pela lindíssima estradinha para o povoado que há na Ilha, já na foz do Rio Araranguá no mar.
É uma beleza ver o verde dos campos e da mata nativa contrastando com as dunas douradas e o morro do Farol. Show de bola.
Sigo freneticamente e o tornozelo detona de vez. Incha e dói ao mesmo tempo.
Está ruim de caminhar...
- Soldado, o que está acontecendo?
- O soldado TE está revoltado e mandando mensagens ao SNC (sistema nervoso central) através de mensageiras, umas tais de Sinapses...
- E como elas fazem isto sem passar pelo comando maior antes?
- Elas atuam através de polarização e despolarização das células...
- Avise ao Dr D K Bessa para cortar essa ladainha de polarização sei lá o quê!
- Cortando o esquema das mensageiras não haverá dor.
- E o que TE pode fazer mais além de inchar?
- Ele pode explodir?
- Nunca o testamos a tal ponto senhor!
- Então vamos testá-lo! Não admitiremos motim a bordo.
E o pelotão segue em frente mesmo com um rebelado a bordo.
Encontro seu Hélio, mas nem seu Sadi nem seu Alvacir estão.
Só me resta seguir para a barra do rio.
Droga, pretendia comer algo no bar de seu Alvacir. O rio está alto e mal passa o Imortal, espremido entre os altos barrancos e a água verde do rio.
Um cara vem de moto, é seu Alvacir que soube que eu passara e veio de moto... Grande amigo!
O vento era forte de SE, quase me mato para fazer a volta da barra via balsa, mas mesmo assim levei 4 h e o vento se foi...
Quase enlouqueço de raiva, mas só me resta seguir em frente.
Passo por alguns pescadores e pela plataforma sul da praia do Rincão.
Não foi nada, mas fiz 50 km velejando e caminhei cerca de oito horas para fazer mais 10 em linha norte sul, ou seja, fiz uma volta muito grande para contornar a barra.
Resultado: estou exausto e meu tornozelo só falta explodir!
Converso com um senhor e depois com Ciso, que tem um pitbull.
Atravesso as dunas com o intuito de encontrar uma varanda para passar a noite, afinal já são mais de 18 h.
Converso com o sr Claudemir que tem uma lanchonete ali.
Seu Ciso amarra o pitbull no imortal e o bicho arrasta o Imortal de tal maneira que quase não consigo segurar os dois. Que bicho forte!
Fico instalado na varanda da casa em construção e vou comer um x ali na lanchonete de Claudemir. Para comemorar o avanço de hoje (faltam só 100 km) o pelotão toma martini on the rocks antes da refeição.
Depois vou dormir. Lá pelas tantas chega seu Ciso arrependido porque não me convidou a ir a sua casa. Trouxe um lanche, pomada para meu tornozelo e insiste para que eu vá para lá.
Acontece que já estou instalado, já comi e estou podre pelas oito horas em pé. Agradeço muito, mas retorno a dormir. a noite foi tranquíla, alguns mosquitos mas nada demais.
Vinte de Setembro de 1835, digo, de 2007
REVOLUÇÃO FARROUPILHA
- Senhor, acabaram de chegar as ordens do comando!
Tomar Laguna no dia da revolução!
- Eles estão loucos!
Temos que atravessar o Rio Torneiro, avançar 50 km em praia mole com mar alto, atravessar as altas dunas da barra do rio Camacho e marchar 20 km depois de tudo isto até a balsa...
- Bueno, ordens são ordens!
- Pelotão. Hoje é a data máxima do Rio Grande e todo esforço é pouco para lembrar de nossa querida terra. Quero que lutem como bravos e lembrem do Rio Grande na hora derradeira.
- E o soldado TE?
- Terá que lutar como todos, ele faz parte do pelotão...
- E como lutaremos, senhor?
- Em marcha com baionetas, mas em carga de cavalaria com o Imortal utilizem as lanças.
- Pela memória de nossos bravos e pelo Rio Grande marchem!
E assim segue o pelotão para a praia. Ali encontro um simpaticíssimo senhor de 86 anos que do nada começa a falar de sua vida. Diz que perdeu uns documentos, mas já encontraram.
Ele fala que se separou há pouco e que está preocupado se não pegou doença venérea "das brabas"... O Cara é um herói!
Tem gente com a metade da idade dele que tem que se ajoelhar ao lado da cama e dizer:
- Obrigado por mais "uma" Senhor!
Encontro umas mulheres ajoelhadas na praia colhendo algo e colocando em cestinhos.
Resolvo investigar. Elas estão colhendo "maçambiques", aquelas conchinhas pequenas em forma de triângulo retângulo.
- È para comer, diz uma delas.
Aliás, os pescadores ficam fazendo buracos sem fim catando mariscos e corruptos para fazer de iscas. Deveriam importar do planalto central...
Adiante passo pela plataforma de pesca norte da praia do Rincão e mais um pouco chego a barra do Rio Torneiro.
Um pescador legal me acompanha e diz que a barra está rasa... Legal, assim não perco tempo tendo que ir atrás de um caíque.
Ele entra na água e afunda até o peito, mesmo não tendo chegado na metade do caminho. Fala que se eu for lá fora, no mar a "coroa" ou banco de areia estará mais raso...
Tá eu vou me meter em fria procurando coroa com a carga do Imortal nos ombros... Eu nem sei se a coroa é gostosa!
Resolvo atravessar a nado.
- Tenente, hoje nem é sábado e vai tomar banho...
- Alguém tem que dar um jeito de atravessar o pelotão. Conheço uns tauras amigos que nos ajudaram na vinda!
Atravesso rápido no estilo "Krau" e logo estou seguindo pela beira entre cercas, milhares de cornos de espinhos, rosetas e assemelhados.
- Seu burro, porque não trouxe os chinelos?
Sou obrigado a seguir assim mesmo, pois a correnteza do rio desce para o mar e não tô a fim de ficar com câimbra.
Atravesso vários sítios, mas seu "abacate" não está. Mandam eu falar com outro pescador, que está trançando uma rede numa árvore.
Explico a situação:
Ele não está nem um pouco afim de sair dali:
- Pois é, mas eu vou molhar os sapatos...
Olho para os pés dele, está de sapatos mesmo e fico sério.
Parece que ele não tem mãos para tirar os sapatos.
Minha mãe sempre diz:
- Um passo além da mediocridade e a humanidade estará salva!
Certamente ele não ouviu falar disto.
Tenho que falar na linguagem universal, mesmo porque não era minha intenção fazer diferente.
- Eu queria pagar para alguém fazer a travessia...
Ele vacila um pouco e "lembra" que tem umas botas no galpão.
Com um certo esforço ele tira os benditos sapatos e calça as botas.
Batalhas são vencidas nos detalhes e com um "saco" bem grande para ver e escutar certas coisas e tratar aquilo como coisa normal.
Ajudo a remar rio abaixo até onde ficou o Imortal.
Feita a travessia sigo a pé, pois ali está cheio de areia mole e o mar esqueceu que é manhã e está alto.
Perto de 10 h o sul ficou azulado e o vento que se forma precede uma tempestade.
- Senhor, é melhor desmontar a vela.
- Negativo. Montem!
- Chegou a hora do pelotão fazer uma carga de cavalaria. Preparem as lanças!
Monto tudo rápido e logo vamos zunindo. Há muitas saídas de riachos, areia mole e o mar chifrudo que sobe rápido querendop deter a carga de nossos heróis.
Através das areias e das espumas o povo catarinense assiste ao embate rigoroso das tropas e ao entrechoque das armas.
Os imperiais em Laguna que aguardem, pois o pelotão pegou embalo e a vitória até Jaguaruna é só questão de tempo.
O ronco dos rolamentos é forte, mas a água do mar abafa. A praia fica cada vez menor e o Imortal mais navega dentro do que fora da água.
Quando eu pego um pouco mais de velocidade logo entro em zona de areia mole ou sou obrigado a entrar na água com tudo para não atolar em areia acumulada mais para cima.
As praias vão passando e ao longe vejo dunas muito altas e amarelas. O mar está lambendo a base delas e virou guerra corpo a corpo.
Às vezes atolo dentro da água e as crises histéricas galopantes tomam conta do pelotão que perde a razão e esmurra o mar enquanto berra toda a sorte de palavrões.
Assim mesmo consigo avançar até que vejo os molhes da barra do Camacho.
Tiro fotos, arrasto pelas altas dunas e depois pelos areais até o outro lado da barra. Ali encontro três simpaticíssimas senhoras que recolhem maçambiques com cocas retangulares.
Elas são muito divertidas e enquanto uma delas senta no Imortal, a outra, de "só" 85 anos puxa as rédeas e a companheira.
Tiro fotos com elas e sigo peleando pela costa de dunas altas até uns rochedos onde começa a praia do Farol de Santa Marta.
Velejo até o último galpão já quase encostado no morro do Farol e ali tiro fotos enquanto converso com os pescadores.
Retorno velejando uma parte e subo para a estrada. Como o mastro passou na altura dos fios sigo puxando com o mastro montado pela estrada.
O Imortal quer seguir sozinho, mesmo nas subidas da estradinha...
- Tenente, porque não vamos velejando?
- Afirmativo, positivo e operante!
- Assumam seus postos de batalha!
Devagar e sempre o pelotão segue velejando pela estradinha enquanto o pessoal que passa nos carros sorri largamente pelo inusitado da cena.
Passa um ônibus e depois dois caras de moto me seguem e vêm conversando.
Aparece uma viatura da polícia militar. Passo óleo de peroba na cara e aceno. Eles vacilam e acenam de volta.
Achei que iriam verificar a validade do extintor, mas isso só as bestas de Capivari...
Sigo assim até chegar a um posto de gasolina, já perto do entroncamento onde iniciam os fios de luz que cruzam sobre a estrada e têm altura inferior ao mastro.
Desmonto a vela e sigo para o entroncamento onde chego às 16 h.
- Pelotão, preparem-se para a marcha de vinte quilômetros!
- Senhor, isso não é humano!
- Já tivemos diversas peleias para um dia só!
- O pelotão é animal e além disto temos que tomar Laguna no dia da Revolução.
Nada de água e comida até que o alvo seja atinjido.
- Senhor, somos marinheiros ou soldados?
- Combatemos tanto no mar quanto na água!
- Esqueceu que fomos fuzileiros navais no início de tudo?
- Além disto o pelotão não escolhe, combate!
Decidido, duas horas e meia de marcha firme e já escurecendo, chego a balsa.
Atravesso, sigo pelas ruas. algumas pessoas lembram de quando eu e o Luigi passamos por aqui em julho.
Sigo até o camping da barra dos molhes, mas não tem ninguém. Abro o portão, deixo o carro sob um teto e sigo para um restaurante que há ali perto.
Flávio o dono liga para os donos do camping e eles autorizam que eu durma por ali.
Tomo três taças de vinho e janto um delicioso bife acebolado.
Começa a chuva que o Imortal havia deixado para trás. quando dá uma estiada sigo para o camping e me ajeito numa varanda onde ficam várias pias, o lava-pratos do camping.
Tchê que temporal! Muita água, raios e trovões.
Que dia!
Mil e seiscentos quilômetros viraram passado e só faltam trinta quilômetros para Imbituba.
Que loucura!
21-09-07 sexta
Que ressaca! Ao amanhecer outro temporal!
O tornozelo ficou como uma bolota, mas não dou mais bola. Ele que se vire com aquela pomada pra cavalo!
Ainda não terminou.
- Senhor, que faremos?
- Não saberemos viver sem guerras...
- O Danilo, do Veleiros do Sul falou brincando em fazermos 1000 milhas...
- Ele nos deu a maior força na viagem do caiaque.
- O que vocês acham de fazermos estas mil milhas ou mais?
- O pelotão explode de alegria.
Nunca fomos normais mesmo, que mal há em fazer uma loucura dentro da outra?
O pelotão tem gás para isto e muito mais.
Huevos hombres! Vamos a Imbituba para terminar o que começamos e voltar as armas para o sul atrás dessas tais de "mil milhas".
Não tem as de Indianápolis?
Agora haverá as "mil milhas do Pelotão", parece que estão lá pelas bandas de Capão da Canoa...
- Senhor, será que não ficaremos tontos com tantos meia volta, volver?