25-09-07 terça
A MALDIÇÃO!
- Senhor, essa guerra parece uma maldição!
- Mais ou menos...
- O "Espírito que Manda" ficou irado quando o pelotão foi de moto com mil e seiscentos dólares dentro da bota para pagar o Imortal...
- O que aconteceu?
- Os dólares voaram de dentro da bota, nota por nota!
- Fomos amaldiçoados e só sairemos dessa quando pagarmos um quilômetro por dólar perdido.
- Mas já andamos mais de 1650 km!
- A maldição quer que paguemos com juros e correção monetária!
- Além disto, em nossa ausência Thor, o chifrudo, atacou o Rio Grande e vários municípios estão em calamidade pública.
- As ordens são para voltar ao Rio Grande e destroçar o inimigo!
- Senhor, eles tentaram nos atacar aqui, mas foram derrotados.
- Eles não sabiam que o Imortal tem uma lança apontada para o céu. Ela furou a barriga do inimigo e eles sangraram até morrer...
- Além disto não encontramos as descendentes de Anita.
Sigo para a mecânica de Rud que tem cavalo e me orienta para uma futura viagem...
Eles trocaram os rolamentos das rodas, mas o bagageiro está rompendo na solda anterior. Nova solda e a constatação de que havia rolamentos na guia da roda dianteira... Havia, mas agora só restou o parafuso e uma tremenda folga.
Azar, o pelotão tem que voltar ao Rio Grande para se livrar da maldição e combater o exército de Thor!
Volto ao camping e depois de despedir-me de Zinho e Flávio, retorno para a balsa. O pior é que a mecânica era perto da balsa e o camping perto da barra. Foi um vai-e-vem do cão.
Agora é como gaúcho gosta, tudo "TRI", ou seja, todos os lugares por onde passar serão pela terceira vez!
Atravesso a balsa e às 12:30 h estou do outro lado. Tenho vento sul pela frente, mas o pelotão já está acostumado...
- Senhor, não é justo! Esse desgraçado sempre se vira quando o pelotão muda de rumo!
Paro em um povoado para almoçar, pois estou cadavérico e o esforço será grande pela estrada contra o vento.
Na lagoa de Santo Antônio tiro umas fotos de barcos pendurados sobre a água em pequenas palafitas que lhes servem de abrigo. Eles são suspensos por rústicas roldanas de madeira.
As horas passam, encontro outros moradores que dizem que tratores abriram a barra do Camacho, então é melhor seguir em frente pela estrada para cruzar pela ponte, já em Camacho, bairro de Jaguaruna.
Passo pela lagoa da Cigana e logo chego a ponte. Antes dela há uma lagoa e uma placa dizendo para preservá-la, pois ali vive um jacaré.
Aqui passei na volta de bicicleta pela América do Sul e esse povoado e a ponte não existiam. Quase perdi a bicicleta na travessia por dentro da água.
Mando notícias pela net e depois sigo pela rua a beira das dunas e chego a uma casa, a última da rua. Alí tem uma baita varanda. Coloco o plástico no chão e deito por cima. Cansei brody! Foram no total mais de 25 km puxando o Imortal no vai-e-vem de hoje.
26-09-07 quarta
Acordo cedo, pois uma corruíra atrevida pousou nos meus cabelos e esgravata atrás de aranhas e piolhos.
Arrumo tudo, como a granola e chega um senhor. Ele já chega de sola:
- O senhor não pode ficar aqui!
Como o pelotão já sente o astral das pessoas, adota a tática do bateu levou:
- Não, eu vou ficar aqui olhando aquele pé de pinus crescer!
- Tu não tá vendo que eu já estava de saída?
- Tu és o dono?
- Não, mas eu cuido...
- Se cuidasse, estaria aqui quando eu cheguei a noite!
Ele entra na casa e observa se não falta nada...
- Vê se eu não peguei a tv para assistir no carro a vela!
Ele me fuzila com os olhos e devolvo o olhar pro chifrudo.
Arrumo minhas coisas e sigo para atravessar as dunas.
Lembro de certa vez quando eu, o Bello e o Rojas resolvemos seguir pelas dunas desde a Lagoa da Conceição até a praia da Joaquina.
Em certo momento o Bello falou que tinha treinado nos fuzileiros a caminhar pelas dunas:
- Querem ver?
Eu e o Rojas, já conhecendo o nosso amigo, dissemos que não precisava!
O Bello começou a balbuciar:
- Eu preciso, eu preciso,,,,,
E o cara se foi dunas afora para "demonstrar" a eficiência de seu "passo ninja".
Diz a lenda que foi encontrado semanas mais tarde. Ele caminhou até bater no muro do Grupamento de Fuzileiros Navais, em Rio Grande onde desmaiou. Quando despertou passou a vagar pelas dunas e a gritar em voz alta:
- Eu amo a minha mulher! Eu amo a minha mulher!
Quando soubemos do paradeiro, fomos resgatá-lo em Rio Grande.
Hoje ele é clinico geral na polícia militar e no centro comercial de campinas.
- Senhor, esses seus amigos médicos são meio "gira". Um chuta a parede e destronca os dedos, seu irmão adora "guerra de bugio", faz necessidades na mão e joga nos outros... Agora esse daí!
- Mas ele tem um amigo médico "normal", é o Dr Verdi, dermatologista...
- As mulheres sempre dizem que ele é educado e não olha para outra mulher que não seja sua esposa. Sequer faz comentários...
- Esse cara é um mau exemplo, pois quando dizemos que todo homem olha ou comenta elas logo dizem:
- O Verdi não olha!
- O Verdi não comenta!
Certa vez, em uma festa de despedida, resolvemos fazer um teste definitivo. Eu ficaria conversando com o Verdi sobre um programa de prevenção de AIDS que ele estava desenvolvendo e pediríamos para uma amiga passar ao lado.
Já tínhamos câmaras de alta velocidade para registrar o momento e desmascarar esse homem "reto"!
A Aninha era ma-ra-vi-lho-sa e conseguimos que concordasse em fazer um topless e passasse a nosso lado no momento que eu estivesse conversando com ele:
- Por favor Aninha, é pelo bem da ciência!
Eu já estava preparado para o momento, pois deveria cuidar o Verdi para ver se ele movia os olhos para o lado.
Coloquei viseira de cavalo e óculos escuros.
Quando a Aninha passou, três colegas ficaram com problemas permanentes de torcicolo, um quase ficou tetraplégico.
Cara, ele continuou falando do programa de prevenção e não desviou o olhar.
Depois fomos olhar na filmagem em alta velocidade e só aí vimos que ele moveu o cantinho do lábio...
- E qual foi a conclusão?
- Foram duas:
- Ele não é desse planeta e certamente não é do planeta Vênus!
É por isto que todo médico não conversa muito com os pacientes, eles têm medo de mostrar a sua verdadeira personalidade!
Quando chego à praia, o vento ainda não surgiu e resolvo seguir puxando. Na praia de Figueirinha encontro pescadores recolhendo a rede e Gabriel quer de toda a maneira que eu fique e almoçe com eles...
- Me faria muito gosto, diz ele!
Digo que não é desfeita, mas eu tenho que aproveitar que o mar está baixo e seguir, pois aqui é região de dunas altas e o mar batia nelas quando eu passei dia 20.
Sigo em frente e o vento fica um pouco melhor e sigo no patinete, velejando e puxando quando atola.
Às 15 h chego a barra do rio Torneiro. Desmonto o mastro e sigo até a casa de meu amigo Rogério. Ele não está e tenho que esperar. Uma menina aparece com seu filhinho. Coloco o guri no Imortal e o puxo. Ele fica fascinado e não quer descer.
Quando chega o Rogério a menina e seu filho seguem junto no caíque.
Já do outro lado sigo em frente com vento de popa fraco. Passo pela plataforma norte de Rincão e ali vejo algo que não queria ver: Um lobo marinho está tendo convulsões na areia. Está morrendo e não posso fazer nada...
Merda!
Há um círculo pequeno onde ele se arrastou e outro maior, crivado de patas de abutres...
Aquilo indica que eles se aproximavam para bicar os olhos do lobo e ele girava para se defender.
A primeira coisa que os abutres comem das carcaças são os olhos e às vezes eles não esperam que o animal morra para iniciar o banquete.
Ele está virado de barriga pra cima e os olhos raspam na areia. Tem espasmos semelhantes a soluços e move a nadadeira para cima sistematicamente.
Quando tento desvirá-lo ele reage... Tomara que ele morra esta noite antes que os abutres voltem amanhã!
Sigo meu caminho, olhando para a frente tristemente. Apesar de tudo admiro o bichinho que está lutando até o fim... Peleando hasta la muerte!
Espero que assim seja comigo, embora eu acredite que nosso destino já esteja escrito!
Mais adiante passo pela segunda plataforma. Um homem correu quase mil metros com seu cachorro para me alcançar enquanto desmontava o mastro para cruzar a plataforma.
Era seu Ciso, que queria de todas as formas que eu fosse dormir em sua casa...
Foi ele quem me levou lanche e pomada para o tornozelo quando dormi na vinda.
Novamente fiquei constrangido, mas o pelotão tem que aproveitar o vento favorável, mesmo que seja fraco.
Ao anoitecer chego a barra do rio Araranguá. Sigo velejando subindo a foz até que fica estreito demais e tenho que seguir puxando no escuro.
Finalmente chego na Ilha e ali revejo meu amigo, seu Alvacir, aquele do acidente do caminhão...
Janto com eles e começa a chover forte aliado às rajadas de vento.
Tomo dois copos de vinho e um delicoso arroz com guisado e ovo que dona Raquel preparou.
Fico assistindo aos noticiários, já são 21:30 h, a chuva tocada a vento aperta e resolvo seguir pela noite rumo a balsa.
Ele se nega a me cobrar e comenta com seu Schimidt:
- Isso é que é coragem!
Como se o verdadeiro corajoso ali não fosse ele, que quase morreu em um acidente terrível e reconstruiu sua vida.
Isso sim é que é coragem!
Saio dali certo de que ganhei um grande amigo!
Assim estarei do outro lado quando amanhecer. Eles disseram que a última é às 23 h.
Sigo pela estrada no escuro, parece que aquele vinho me tirou o sono e o cansaço.
Lembro das folhas de coca que usei para subir a cordilheira dos Andes de bicicleta. Todos diziam que tirava o cansaço e ajudava a respirar melhor na altitude.
Não funcionou e troquei as folhas por duas peles de ovelha que um campesino recém havia carneado. No dia seguinte todas as moscas da cordilheira me seguiam.
- Soldados, não pisem onde brilha. Ali é água ou lama!
Chove, pára e assim vou em frente passando por povoadinhos onde os únicos despertos são os cachorros que latem sem parar.
Às 22:55 h chego a balsa.
Cruzamos o rio e sigo puxando para o Morro dos Conventos.
- Senhor, não seria esse o "Morro dosVentos Uivantes"?
É uma tempestade que se aproxima e a chuva castiga o pelotão que se perde. Queria um atalho para a praia Pai Querê e acabo tendo que subir o morro e descer naquela lomba gigante... Mierda, fiz uma volta gigante e não serviu para nada!
É meia noite e começo a longa descida para a praia.
Quero dormir na varanda de uma casa, mas ali não parece legal.
Sigo pela praia e subo quando vejo outro povoado. Não encontro nada de acordo, tem muita gente por aqui e vou me incomodar...
- Droga, porcaria!
- Voltem para a praia, armem a vela e sigam velejando!
Um baita temporal, tudo encharcado e perto de duas da matina o pelotão segue em campanha desde às oito da manhã...
Pelo menos o vento está bem forte e vamos passando por atoleiros e saídas de riachos sem fim.
A briga está tipo assim: peleia de foice no escuro!
Consigo desviar das estacas de redes e avançando bem rápido.
Resolvo seguir assim até o amanhecer, mas uma visão pavorosa de uma tempestade elétrica me deixa sem saída.
Não sei onde estou, mas vejo uma casa na beira que me pareceu familiar.
Volto e percebo que foi ali que eu e o Luigi dormimos no auge do inverno (Arroio do Silva). Naquela noite fez 4º abaixo de zero ali na serra ao lado.
- Senhor, ataque aéreo!
- Procurem uma trincheira e aguentem!
Arrasto o Imortal, desmonto a vela e a tempestade fica mais forte ainda.
Vejo parelhas de barcos de pesca seguindo para o sul enquanto raios e trovões iluminam tudo como se fosse dia,
Esses caras que trabalham em traineiras devem tener una pelota a mas, pois enfrentar ondas e tempestades em alto mar não é para qualquer um.
27-09-07 quinta
Acordo mais tarde, já parou de chover. Arrumo tudo e sigo para a peleia. O fresco do vento acorda mais tarde e resolvo seguir puxando.
Logo adiante chego na pousada de seu Valmor. Falo com dona Adelina que não me reconhece, diz que estou muito magro... Que alegria ouvir isso!
Falo com Nei, filho dela e que é vereador em Arroio do Silva. Chega seu Júlio e depois seu Valmo. Ele não me reconhece quando pergunto se tem quarto, mas se alegra quando pergunto se tem lugar para guardar um windcar.
Acabo almoçando com eles e depois ele me mostra um galpão atopetado de redes e um trator. Até um cilindro de metal todo furado para descascar marisco.
Ele vai sestear e eu sigo em frente!
O vento fraco torna o avanço lento, mas melhor que nada.
Ao final da tarde chego no balneário Gaivota e já escurecendo o vento pára!
Sigo puxando pela noite e quando me viro para olhar o mar vejo uma bola cor de fogo surgindo entre as nuvens do exército de Thor que fugiu para o norte.
Que coisa mais linda!
O céu fica estrelado para a frente e sigo olhando para o céu.
Que coisa estranha, estar aqui na beira do mar no escuro, vendo a lua surgir no mar depois de uma tempestade e viajando de windcar há mais de dois meses. Irado brother!
Encontro o leão marinho morto na entrada de Rosa do Mar e tiro umas fotos do bicho ao lado do Imortal.
Vou para a casa onde dormi na vinda e me ajeito sobre as tábuas.
28-09-07 sexta
Acordo cedo e às 8h o pelotão já está perfilado na praia. Ando um pouco e paro na guarita onde Borges e Rafael me atenderam, já em Bella Torres.
Ainda está ali o chuveiro onde removi o sangue do rosto na chegada do caiaque ano passado.
O vento sul entra forte e com tudo.
- Senhor, o inimigo não desiste de nos atacar.
- Preparem as lanças!
- Lanças senhor? Não seria baionetas?
- Eles escolheram a hora e o local errado para nos atacar com força.
- Aqui a praia é larga e a essa hora o mar está mais baixo.
- Vamos de Imortal pra cima deles!
E assim o pelotão seguiu no contravento e driblando troncos e arbustos que o rio Mampituba jogava no mar e que vinham parar na praia.
Às 9:40 h o pelotão amarra o Imortal na barra norte do Mampituba.
Chego ao centro de Torres, soldo o bagageiro que rompeu do outro lado.
O cara da solda (Manoel) tem uma academia de box e é muito gente fina.
Resolvo ficar aqui para escrever e amanhã, se o tempo estiver bom eu sigo.
1820 km já se foram. Parece que o pelotão segue até o farol da Solidão e ali será resgatado pelo tenente Paulo, o que adora pelear como bugio, hehehe
Abração
André