Velejando 1.000 milhas sobre rodas
Aventura em carro à vela
André Issi

Parte 13: De Torres a Cassino - Exterminator: destino final

29-09-07 sábado
Resolvi ficar um dia a mais em Torres para descansar e recuperar o peso, pois afinal estou "só" 14 kg mais magro desde que iniciou este passeio.
Vi pela primeira vez na vida um balão. Passou na frente do hotel e não deu tempo de fotografar. Era todo preto!
Fiquei o sábado todo deitado e comendo como um chancho (porco), mas eu nunca fiz isto antes e estava precisando.
Amanhã seguimos em frente.

30-09-07 Domingo
- Senhor o pelotão está terminando esta viagem e não fará nada de especial?
- O "Espírito que Manda" deixou ordens que serão reveladas na praia da Guarita.
Até hoje apenas viajei contra o vento. Entre outras coisas quero ter o gostinho de viajar um pouco com vento favorável. Do contrário, para quem entende de carro a vela, vai parecer que somos uns boiolas.
Encontro Lopes e depois de um chimarrão sigo para a praia.
Às 12:30 h avanço com um fraco vento de popa até chegar no morro onde tenho que subir por uma estradinha e descer do outro lado.
Ali o vento começa a ficar forte e o Imortal começa a pegar velocidade.
Espero hoje chegar em Capão da Canoa e completar as mil milhas náuticas, minha homenagem ao Danilo do Veleiros que sempre me apoiou e "lançou" a idéia.
Um pouco antes tenho de desmontar a vela para passar pela plataforma de pesca de Atlântida.
A velocidade é o que mais me deixa preocupado, pois o Imortal está como um louco e o vento favorável está bem forte.
Passo por Capão por volta de 14:30 h e sigo como um bólido pela praia, desviando de pescadores, crianças e varas de pesca.
Um guri está lá em cima nas dunas e deixa a linha atravessada lá na praia. O mastro do Imortal me salva, mas a linha zune até que a chumbada e os anzóis dão uma chicoteada bem sobre minha cabeça. Menos mal que eu já tinha diminuído a velocidade e estava fazendo a volta.
Iria dar uma puteada no irresponsável, mas quando vi que era um guri, deixei para lá.
Sigo em frente e perto de Imbé há vários kitesurfistas aproveitando o forte vento para fazer manobras no mar.
O Imortal é metido e "roubou" a cena!
Como dizia Vinicius de Morais:
- O kitesurf que me perdoe, mas o Imortal é radical!
O carrinho passa voando pela praia e, de exibido, faço um jaibe e o Imortal passa com uma roda no ar. A galera aplaude...
Brody, no vento forte não tem pra ninguém, o windcar passa de 100 km/h. Não o meu que tá carregado até os olhos, mas em competição qualquer um passa de 100.
- Senhor, a namorada de um deles se atirou em nosso carro...
- Coloquem o nosso nº de telefone no biquini e a deixem na próxima onda!
Baita macho!
E assim me fui, beijando boca de china e aparando guampa de macho, hehehe!
Andar com velocidade assim dá nos nervos, pois uma vacilada e adiós pampa mio!
- Hombres, huevos!
Às 15 h já estou na barra do rio Tramandaí. Desmonto tudo e sigo caminhando para a ponte. Atravesso a city e quando vou voltar para a praia uma senhora da lanchonete dali quer me dar algo para levar, pois ela conversou comigo quando passei antes.
O chato é que perco quase duas horas de vento bom, isso dá quase 60 km hoje.
Adiante tenho que desmontar a vela para passar pela segunda plataforma de pesca. Um senhor vem me ajudar e quer saber detalhes do carro.
Começo a pensar que dá de chegar em Quintão ainda hoje. Ali seria o final da viagem...
Chego em Salinas, outra plataforma...
Pronto, foi a última!
Agora tem menos gente na praia e o horizonte como destino!
- Senhor, não iríamos parar em Quintão?
- Sim, mas com esse vento mudei de planos, vamos seguir 50 km para o sul e "fechar a conta" em 2000 km. Fica exatamente no farol da Solidão!
- Mas já está escurecendo...
- Azar, agora botei na cabeça.
Sigo em frente depois de Quintão e a praia fica bem mais irregular e com muitas saídas de riacho. Está frio, meus pés estão dormentes, mas agora tenho que seguir com tudo. Além de tudo, estou encharcado e esfria ao final da tarde.
Vejo muitos lobos marinhos vivos e também pingüins.
Alguns levam sustos enormes pois o imortal surge do escuro e quando eles querem correr para a água, o carro já passou.

Começo a tremer, parece que dará câimbra, mas sigo em frente e vejo a luz do farol piscando ao longe.
Que visão agradável!
Às 19 h chego ao farol. Fico alojado na varanda de uma lanchonete (fechada agora) e coloco roupas secas.
Nem acredito, 180 km em uma tarde!
Fechei os 2000 km. A tripulação está livre da "maldição dos dólares"!
A noite está linda e fecho os olhos tendo a visão da luz do farol da Solidão como uma espécie de sentinela enquanto o pelotão exausto dorme.

1º-10-07 segunda Outubro
Acordo com um nordeste soprando médio....
Cara, se esse vento boiola ficar mais forte eu posso tentar uma coisa que dará respeito ao pelotão até entre os mais experientes pilotos de windcar.
- Pelotão, sentido!
- Chegaram as ordens do "Espírito que Manda"!
- Rio Grande hoje!
O protesto é geral:
- Mas senhor... Estamos quebrados de ontem. Fizemos 180 km em uma tarde...
- Além de tudo estamos livres da maldição dos dólares, pois já fizemos os 2000 km...
- Então podem fazer 220 km em um dia inteiro!
- Muitos homens quase tiveram câimbras...
- Ainda teremos de buscar ajuda para cruzar de barco a barra da Lagoa do Peixe... Isto se não furar nenhum pneu. Lembra dos bagres?
- Silêncio!
- Ordens são ordens. Tratem de cumpri-las!
E assim segue o exército Brancaleone.
Às 6:50 h o pelotão já está perfilado na praia. Em dia de peleia das brabas o pelotão não pára nem para comer nem para beber. Será uma batalha deciva!
Sigo em frente e logo adiante encontro uma tartaruga de bico na praia. Ela é linda, mas está morta.
Depois vejo dois botos (mortos) em miniatura (Toninhas). Casualidade ou não eles estão próximos as redes, uma "praga" por aqui. São quase tantas como as saídas de riachos e rios. Um perigo, pois algumas saídas são escondidas e alguns cabos de redes ficam um pouco mais altos do chão quando o mar puxa a rede.
As horas vão passando, o carro não desenvolve muito pois a praia está mole e com inclinação.
Depois de passar pelo farol do Estreito inicia o parque nacional da Lagoa do Peixe, com uma extensão de 36 km para o sul.
Chego ao povoado fantasma e dou uma parada para cumprimentar os amigos Jorge, Jeferson e Lambari. Eles convidam para almoçar. Vacilo, mas depois o comando dá ordens para não abusar.
Resolvo seguir e eles vêm assistir a partida. O vento está bem mais forte e o carro inclina em uma roda e sai em disparada. Eles vibram e o Imortal segue em frente.
Às 12 h chego na barra. Deixo o carro e sigo a pé até a vila. Tomara que tenha alguém, pois no outro dia todos tinham se ido.
Encontro Jair. Ele me oferece café e conserta uma tarrafa. Os pescadores que restaram se queixam do pessoal do Ibama, pois o rigor é grande.
Depois seguimos para um caíque quase na barra e levamos até o carro. A travessia é feita tranquilamente e vou remontando as coisas enquanto Jair vai tarrafear.
Atravesso as dunas e o carro segue em alta velocidade, pois ali o piso é firme e a praia é plana.
Andar assim cansa, pois como não utilizo mais os óculos de proteção tenho que ficar super atento às saídas de riacho. Daí os pneus jogam areia e água que tentam me acertar os olhos.
Todos os dias quando desperto tenho que utilizar uma pazinha para recolher a areia que fica no canto do olho.
Muitos pescadores estão recolhendo os peixes e tenho que cuidar para não pegar nenhum cabo esticado. Eles gritam quando o Imortal passa em velocidade.
Agora sim! Andar desse jeito põem respeito!
Já tive bons dias, mas o vento não durava o dia inteiro como agora.
Começo a ficar nervoso, mas vou passando pelos pontos de referência mais ou menos como calculei.
Primeiro é um farol que não vi devido a neblina. Passei ao lado dele e não vi...
Está praticamente onde termina o parque nacional.
Muitas das casas onde dormi agora tem gente.
Sei que há o riacho que estava forte e onde tive de desmontar a carga. Fica antes do farol do Estreito.
Antes dele tem o farol da Conceição.
As horas passam, passo pelo farol da Conceição onde o outro mais antigo já caiu no mar. Vejo mais duas enormes tartarugas e um golfinho maior mortos na praia. Estranhamente a praia está limpa. O mar "varreu" todos os peixes mortos e nem parece a mesma. Chego ao riacho, atravesso puxando a pé, pois ainda está fundo e forte. Felizmente mais raso, dá de passar.
Depois o farol do Estreito, mas antes dele vejo a casa de Seldo, amigo dos hermanos.
Faço as contas mentalmente, devem faltar pouco mais de 40 km agora e tenho menos de uma hora antes que escureça.
A coxa da perna esquerda está querendo dar câimbra, os pés estão dormentes, mas o comandante não quer nem saber e estica o cabo para fazer o Imortal correr mais ainda.
Sinto a possibilidade de fechar 400 km em um dia e meio e a ansiedade aumenta demais.
Como a areia está grudenta, os pneus jogam toda sorte de porcaria nos olhos e sou obrigado a ir por dentro da água.
- Senhor, estamos tal qual um F1 e pode ocorrer aquaplanagem...
- Então diga que estamos de jetski!
Parece que o povoado de Marumbi não chega nunca, o sol já está no horizonte.
Não sei se foi a força do vento, mas quebrou mais uma tala e ela furou a bainha na vela.
Agora não tem mais aquela de andar devagar para preservar o material. É vai ou racha!
As rajadas ficam mais intensas e quase voando passo por Marumbi. Só faltam 12 km. Uma enorme baleia está na praia. Fosse de noite poderia ter me chocado com ela.
Há muitas garças mouras e joões-grandes que levantam vôo o suficiente rápido pro Imortal não lhes arrancar as penas.
Começo a gritar comigo mesmo, pois além dos pés dormentes de fazer força na guia da roda, estar tremendo incontrolavelmente e com dor no traseiro, ameaça dar câimbra a qualquer momento na parte posterior da coxa direita.
- Não quero ninguém arrepiando agora!
- Agüentem seus bunda-moles!
Às 18:30 h fiz o que não achava possível:
Saí no Domingo à tarde de Torres e desencilhei o Imortal nos molhes de Rio Grande na segunda-feira (lunes) à tarde.
Foram 400 km...
Em pouco mais de 24 h...

O pelotão comemora sem parar.
Tiro fotos, entro com carro e tudo no mar para tirar toda aquela areia de nós.
Como é bom ganhar!
Iuuuuuuuuuuuuhhhhhhhhhhhhhhuuuuuuuuuuuuuuuu!
- Senhor!
- Sim?
- Dois mil duzentos e vinte quilômetros se foram!
- Não esqueçam que amanhã o pelotão marcha!
Sigo até o povoado da Quinta seção da Barra.
Vou ao boteco comer um bauru e ali encontro o Cesar, o Luis Paulo e o Mateus.
Depois chega Chico Preto a quem eu considero um grande amigo.
Ele pergunta onde vou dormir, pois já é tarde e ninguém vai atravessar para o outro lado.
Ele oferece seu barco e sua casa para eu passar a noite.
Ligo para a mãe. Falei com ela ontem de tarde antes de sair de Torres e ela não acredita que no dia seguinte estou em Rio Grande... Nem eu!
A gurisada carrega o Imortal para o barco Lirio Grande l, pois o de Chico Preto estragou e amanhã a gente atravessa no outro.
Ele me instala em seu barco (eu não quis ficar na casa pois iria dar muito trabalho a eles) em uma cabine exígua onde ficam cinco pessoas...
Eles vão embora. Coloco roupas secas e tenho dificuldades para entrar no saco de dormir dentro do beliche que tem menos de 30 cm de largura.
Vida de homem do mar é dureza!

Que belo lugar para passar a última noite da viagem... Um barco pesqueiro!
Quanto mais inusitado melhor!

02-10-07 Terça
Acordo cedo, arrumo tudo e o mestre do barco chega. É Paulo. Explico a ele o combinado com Chico, pois ele estranha haver um carro a vela em seu barco, ainda mais que há um portão que foi fechado.
Chega Chico e logo atravessamos para o outro lado.
Entra um nordeste forte. Estou me "coçando" para seguir apenas até o Cassino e parar.
Tem uma vozinha que fica sussurrando no ouvido:
- Com este vento tu chegas hoje mesmo ao Chui...
Cara, que coisa mais difícil que é parar...
Quem mandou o Nardi fazer um carro sem freios?
Faço as contas rápido; em cinco dias andando fiz de Ibiraquera até Rio Grande.
Não tivesse carga e vários obstáculos como rios para atravessar daria para fazer em 3 dias de vento bom...
Como na ida e na volta viajei contra o vento, dias curtos, etc... eu queria ter o "gostinho" de viajar pelo menos dois dias com vento a favor. Foram 400 km em menos de dois dias.
Então eu falo isto para mim mesmo para me convencer a parar no Cassino.
Eu me conheço e sei que quando estiver na praia vou querer seguir, ainda mais que tenho água e comida para ir e voltar.
Saio do terminal, sigo puxando até os fuzileiros e armo a vela.
Hoje com o nordeste foi mais legal de seguir pelo asfalto até os molhes.
Passam os recrutas cantando:
- Corridinha michuruca que não dá nem pra cansar!
Assim a gente cantava enquanto corria em nosso EAS (estágio de adaptação inicial) nos fuzileiros navais. A gente passa e certas coisas permanecem...
Chego aos molhes, tiro fotos das vagonetas que correm a vela sobre trilhos na extensão de 4 km mar adentro.
Depois sigo no Imortal por 15 minutos até chegar ao Cassino (9:30h).
Não agüento, vou passar direto!
- Soldados, o tenente Issi vai passar direto. Virem a cabeça dele para que veja a estátua de Yemanjá.
Deslumbrado com a estátua mais sexy de Yemanjá, o nosso herói fica de língua de fora e dirige o Imortal para "trocar umas idéias" com a santa.
Chego ao lado dela, tiro muitas fotos e desmonto o mastro. Melhor terminar logo com isto.
- Senhor, acabou!
- Não!
- Ainda falta destruir um "chip"!
- O pelotão quase vai às lágrimas enquanto seu comandante vai descendo lentamente para o caldeirão de aço derretido.
Antes de sumir ele faz sinal de positivo e diz:
- I will be back baby!

É isso aí. Foram 2230 km e muitas estórias. Essa aqui já é passado!
Ainda estou no Cassino escrevendo e tenho que dar um jeito de levar eu e o Imortal pra Porto.
Agradeço de coração a todos que me apoiaram de uma forma ou outra e espero ter alegrado um pouquinho aqueles que enfrentaram esse último inverno.
Muito obrigado a todos.
Um grande abraço
André



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