Velejando 1.000 milhas sobre rodas
Aventura em carro à vela
André Issi

Parte 2: De Laguna a Torres

Queridos amigos acabamos de chegar em Torres depois de dias duríssimos lutando contra vento sul de rajadas mar crescido areia mole, tempestades e extremo cansaço físico. Pedimos desculpas por não responder os e-mails mas só temos mais uma hora antes que a lan house feche.

20/7/07
Laguna Ao amanhecer seguimos pelas ruas de Laguna, paramos em uma borracharia para consertar a câmara furada e depois fomos rumo a balsa. Durante a travessia ficamos sabendo que um veleiro argentino se chocou contra um ilha chamada Ihota. Eles velejavam no piloto automático e o barco se chocou contra as rochas. Até onde sabemos, dois tripulantes morreram e um foi resgatado (isto foi na noite de quarta para quinta feira). Fizemos amizade com os tripulantes e passageiros da balsa. Ao iniciarmos a caminhada ( de 20km ) falei para o Luigi sobre colocar as botas, mas ele retrucou que o pelotão farroupilha tinha que ir de pé descalço, pois guerreiro Farroupilha não tem medo de nada. Difícil foi acostumar com o areião que picava os pés como agulha. A paisagem era lindíssima, pois seguimos com a lagoa de Santo Antonio aos dois lados da estrada. - Tenente Issi e Laguna ? - Soldado Laguna é coisa do passado essa já foi tomada e o Rio Grande precisa de nós vamos retornar a nossa pátria. E assim seguiu o pelotão, muita poeira, estrada sem fim, carros, caminhões, etc... Paramos para almoçar, retornávamos, alongávamos e seguimos em frente. Já estávamos com bolhas nos pés dor nos joelhos, mas ninguém queria entregar os pontos. Depois de cinco extenuantes horas chegamos as dunas do Farol de Santa Marta Encontramos local para acampar, já no escuro, entre pés de pinus perdidos entre as dunas.

21/7/07 sábado
Ainda doloridos de ontem, seguimos por uma estradinha cheia de atoleiros até chegarmos á praia. Ali montamos as velas e seguimos a pano até a barra do Camacho ( este rio foi por onde entrou Garibaldi com Seival para surpreender as forças imperiais e atacar Laguna que tinha seus canhões voltados para o mar. Enfrentamos areiais e dunas altas para contornar a barra seca do Camacho. Montamos tudo de novo e seguimos a pano. O vento estava fraco a princípio, mas, para nosso delírio, ficou forte e os carrinhos andavam como loucos para nossa imensa alegria. Como é bom ser aventureiro, arriscar e colocar a cara e a coragem ao vento. É inebriante! Mesmo com vento de popa os carrinhos desenvolvem mais velocidade andando em zig-zag, ou seja, andando de través. Assim seguimos até chegar a barra do rio Torneiro, muito profundo. Atravessamos as dunas seguimos para uma pinguela, onde teríamos que remover os bagageiros para cruzarmos com os carrinhos. Na passada vimos barcos e falamos com seu Rogério "Abacate ". Para nossa incredulidade, ele disse que daria para colocar os dois carrinhos e a nós na mesma viagem. Passamos os carrinhos entre as vacas, colocamos no barco e seguimos pelo rio até a barra. Havia muitas garças entre a vegetação e a água era verde e límpida. Seguimos a pano novamente, passamos pelo balneário de Rincão ( onde havia duas plataformas ) e já no escuro resolvemos parar, pois quase nos chocamos nas estacas de redes na beira da praia. Ameaçava um temporal e decidimos dormir na varanda de uma casa. A noite foi terrível: raios, relâmpagos e ventos fortíssimos que jogavam um pouco de chuva sobre o saco de dormir do Luigi que estava protegido por um plástico.

22/7/07 domingo
Amanheceu nublado e chovendo, mas resolvemos seguir assim mesmo. Não havia vento e a solução foi seguir puxando abaixo de chuva o dia inteiro. Almoçamos sob a base da plataforma ( para abrigar-nos da chuva ) sentados em grandes pneus que protegiam a base do mar. Praia encharcada, areia mole, força e frio. Já no fim da tarde chegamos a foz do rio Ararangua; onde relâmpagos nos obrigaram a desarmar rapidamente os mastros. Seguimos puxando até iniciar uma estrada enlameada e repleta de água. Estávamos exaustos e assim cruzamos uma pequena ponte para chegar na ilha onde havia um barzinho. Conversamos com o pessoal dali, pedimos pouso e uma deliciosa tainha frita que nos aqueceu e matou a fome terrível que sentíamos. Conhecemos pessoas maravilhosas como seu Alvacir, dona Raquel, Sr. Sadi, Sr. Ziltinho e Roberto.
Seu Alvacir sofreu um terrível acidente de carreta, quando chocou sua scania contra outra sobre uma ponte. Seu patrão que estava deitado foi partido ao meio e o cara da outra scania também morreu. O estado dele era tão terrível que foi dado como morto e levado junto com os outros corpos. Ficou um ano em coma e mais três no hospital. Ficou com cicatrizes horríveis nas canelas e nem sei como consegue caminhar. Perto das cicatrizes que ele possui, as minhas não são nada. A vida ensina que nossos problemas nunca são os maiores e que devemos agradecer a Deus por continuarmos vivos e podermos tocar a vida em frente.
Depois do acidente ele casou com dona Raquel e teve três filhos lindíssimos, entre eles Sofia, uma graça de menina, loirinha super simpática ( tinha três anos ).
A vida é bela!
Chuva, chuva, chuva...
Fomos dormir na casa do Sr. Sadi e alojamos os carrinhos no galpãozinho junto com a carroça.

23/7/07 Segunda-feira
Acordamos bem cedo, um forte vento gelado e que, aliado à correnteza do rio prometia dificultar a nossa travessia do rio Araranguá. Seu Sadi disse que não daria para fazer a travessia. Fomos tomar café no seu Alvacir e ele não quis cobrar. Eu e Luigi ficamos emocionados com o carinho e a hospitalidade de pessoas que mal nos conheciam.
Esta viagem está sendo a melhor escola para o Luigi, pois ele está aprendendo os verdadeiros valores que existem nessa vida, como respeitar as pessoas, ser humilde e reconhecer que apesar de poucas posses as pessoas podem ser felizes com pequenos detalhes.
Seu Alvacir foi um exemplo de tudo isto e mais a coragem de começar tudo de novo. Depois fomos com o seu Helio até a casa de seu Miguel que teria um barco maior para tentar atravessar assim mesmo. Quando vimos o barco, fiz o sinal da cruz e deixei a vida nas mãos de Deus, pois o barco era muito pequeno para enfrentar as ondas, vento forte e a correnteza. Já estava colocando o colete no Luigi e mandando tirar as botas para o caso de naufrágio.
Logo que chegou, seu Miguel falou que não daria. Resolvemos seguir a pé até a balsa. Foi bem mais tranquilo e depois de hora e meia de caminhada atravessamos o rio pela balsa. Os caras nem queriam cobrar, mas pagamos para ter o recibo como recordação.
O caminho estava lindíssimo e fomos subindo e descendo lombas. Como estávamos cansados de puxar, nas descidas o Luigi Subia na longarina logo atrás da roda dianteira e descíamos como em um patinete, controlando a direção da roda dianteira com nossas "rédeas". Era até divertido! Quando chegamos próximos do camping havia uma imensa lomba para subir. Já extenuados, subimos a maldita. Na descida, meio que arriscando descemos no "estilo patinete". Como a lomba terminava em outra subida, bastava ter sangue frio para descer em velocidade.
Quando começou o calçamento, fiz a grande besteira de descer sobre o carrinho. Foi a pior coisa que podia ter feito, pois ele pegou velocidade demais, não tinha como freiar e o carrinho balançava de um lado a outro. Senti que iria me ferrar, pois iria de encontro a uns carros mais abaixo. Desviei para o meio-fio e tentei me atirar, mas foi em vão, pois com a velocidade já caí na descida e a roda traseira passou sobre mim. Depois o carrinho bateu no muro e parou. Fiquei deitado no chão com o abrigo todo esfarrapado. Joelhos, ombro, braço e dorso da mão esquerda "lixados". Nem em todos os meus tombos de moto eu me machuquei tanto. O Luigi chegou entre apavorado e com vontade de rir, pois foi muito ridículo.
- APAGADÃO!!
- Seu imbecíl, como é que pode ter feito uma manobra tão ridícula?
- PAGA CINQUENTA FLEXÕES!
- Sim, senhor!
- Senhor, acho que estamos sendo injustos, pois o tenente Issi jogou o próprio corpo diante do carrinho para amortecer o impacto contra o muro.
Bueno, fotos tiradas, quase chorando de rir da minha imbecilidade, seguimos em frente. Descemos a imensa lomba que leva à praia e là montamos novamente as velas. Velejamos até a plataforma e alí o vento ficou fraco demais para deslocar carros e passageiros. Rebocamos até chegar Arroio do Silva. Alí descansamos e comemos alguma coisa. Seguimos até as 17:30h e resolvemos dormir na varanda de uma casa.
A noite foi horripilantemente gelada e custou a passar.

24/7/07 Terça-feira
Acordamos com o barulho de um trator que puxava com dificuldade uma rede do mar. Eles levaram mais de uma hora para retirá-la do mar. A rede veio com enormes bagres de olhos vermelhos, tainhas e peixe-espada. O pessoal foi muito legal e disse que esta noite fez menos sete graus centígrados na serra. Aqui chegou perto do zero, aliado ao vento...
O mar estava lambendo as dunas e o vento sul muito forte aliado a areia mole que demandava enorme esforço físico para seguir para o sul. Resolvemos seguir pelas ruas paralelas ao mar.
Acontece que a estrada estava encharcada e a areia era mole. Terrível!
Voltamos ao mar, mas logo ficamos estafados. Que fazer?
Andamos mais um pouco e resolvemos esperar até às 14:00h, pois um senhor falou que o mar iria baixar. Mas o que vimos foi o contrário, pois ele subia cada vez mais.
- Senhor, estamos cercados!
- Nossas tropas estão exaustas e não vamos aguentar combater com tamanha desigualdade.
- Tem razão, precisamos cavar uma trincheira para combater esse inimigo que nos golpeia sem parar!
Alí ao lado havía uma pousadinha ( do Valmor ) e como não havia opções ( mar e estrada ), além do que estava por vir chuva, resolvemos ficar por alí.
Que pessoal agradável! Sr. Valmor, dona Adelina ( que nos ofertou um delicioso café preto ), Sr.Júlio, Sr, Nelson e o Sr.Sergio. Ficamos ali tomando sol com eles e abrigados do vento. Depois fizemos uma deliciosa sopa acompanhada de kinojo, pois havia fogão no apartamento.
Quando cheguei, estava com as feridas inflamadas e mal conseguia dobrar as pernas, tanto que o Luigi foi quem arrumou as coisas nos tubos hoje de manhã, pois eu não podia apoiar os joelhos cheios de feridas no chão. Dona Adelina me deu um café com cânfora e passou azeite de olíva nas cascas, pois ao tomar banho esfreguei bastante com sabonete para remover a areia.
Foi pior, pois arranquei as cascas todas e a dor ficou quase no ponto de não poder dobrar as pernas pior ainda para puxar o carrinho e caminhar pela areia mole.
Antes de dormir tomei um "coquetel molotov" , ou seja, antibiótico, antinflamatório e alguma coisa para dor.

25/7/07 Quarta-feira
Choveu toda a noite e amanheceu nublado e com vento sul bem forte. Desanimador! O Sr.Valmor, uma pessoa extremamente simples e boa não queria que seguíssemos, disse que não cobraria nem a diária.
Ficamos emocionados com tamanha gentileza, mas o nosso pelotão é de guerra e não veio até aqui para ficar aquecido e abrigado. Temos um objetivo diante de nós e os chefes Farroupilhas necessitam de nossas tropas para tomar São José do Norte e tentar retomar a fortaleza de Santa Tereza que caiu em mãos dos Orientais.
Partimos às 11:30h pela praia contra o forte vento sudoeste. Lembrei do livro " A pior viagem do mundo" que narra a trajetória dos exploradores ingleses rumo ao Pólo Sul puxando os seus trenós. Como agora estamos puxando os nossos carrinhos, é de desanimar e a moral da tropa anda baixa.
Só nos resta cantar o híno Farroupilha e dizer que não está morto quem peleia.
A nossa hora vai chegar e o inimigo será triturado pela raiva acumulada em nossos corações!
Para não dizer que não tentamos, montei um carrinho e tentei seguir no contra vento. Praticamente impossível, pois nem praia havia para bordejar. Desmontamos tudo e seguimos em frente.
Seguimos até a praia da Caçamba onde paramos para almoçar à reversa do vento. Logo chegaram alguns habitante dali para conversar. Disseram que a estrada estava melhor por ali e decidimos seguir por ela, pois nela o vento contra não seria tão forte.
E assim fomos em frente. Passamos pela praia de Arpuadeira, Maracujá até chegar as dunas onde havia um mato que abrigaria do vento, já às 17:00h (praia do Bio).
Montamos a barraca ao lado de uma cerca elétrica ao abrigo dos pinus. O vento rugia sobre a copa das árvores e assim ficou durante toda a noite gelada.

26/7/07 Quinta-feira
Acordamos com ausência total de vento e partimos pela estrada procurando local para voltar ao mar. A primeira tentativa não deu certo, pois atolamos no meio do campo. Seguimos em frente pela estrada até achar uma passagem entre as dunas.
Resolvemos almoçar antes (11h), pois ainda estávamos cansados de ontem. Pequenos gaturamas ( passarinhos amarelos com a cabeça azulada ) nos observavam enquanto comíamos.
Já na praia, deixamos as velas montadas ( caso o vento mudasse) e seguimos puxando.
Estamos exaustos e revoltados com esse vento, pois quando sopra a favor mal tem força para deslocar os carrinhos, nunca Torres pareceu tão longe...
O vento estava indeciso e foi testando nossa paciência, pois hora estava fraco, hora estava fraquíssimo. Tínhamos que subir e descer do carrinho a toda hora, o que irritava, pois o mar subia e o carrinho atolava. Neste jogo de paciência e musculaçã (tinhamos que ir bombeando a vela) chegamos a praia de Gaivotas.
Um rapaz começou a tirar fotos e se aproximou para converssar. Se identificou como repórter (graças ao Alzhaimer esqueci o nome do jornal e do repórter). Fez uma entrevista ali mesmo.
Depois vieram dois caras que diziam andar de kite bug (?), eles disseram que Torres estava há 35km, o que nos decepcionou, pois era muito mais distante do que pensávamos.
Às 16h, aleluia, o maldito vento resolveu se manifestar com mais força e começou a deslocar os carrinhos com muito mais velocidade. Nem colocamos as roupas impermeáveis, tal a nossa ansiedade de aproveitar esse raríssimo momento.
Com isto fomos tomando banho de areia e água, principalmente nas saídas de riachos.
Com a velocidade, nossa alegria foi tão grande que esquecemos os dois últimos dias de sofrimento e decepção.
Torres foi se aproximando vertiginosamente e começamos a acreditar que chegaríamos ainda hoje. Passamos por Bela Torres (local onde terminou a viagem de caiaque em fevereiro do ano passado, alí estava a guarita dos salva-vidas que me ajudaram quando cheguei a praia ensanguentado).
Nem paramos para não perder o embalo, apenas quando avistamos um gigantesco lobo (ou leão?) marinho para tirar umas fotos. Era impressionante o tamanho do animal ( que estava morto ).
Depois, já com o mar lambendo as dunas, seguimos em frente até a barra do rio Mampituba, repletos de felicidade (17:30h).
Batemos algumas fotos junto ao farol Mampituba norte, desmontamos os carrinhos e, enregelados, seguimos puxando pelas ruas de Passo de Torres rumo a ponte que liga com Torres.
Em Torres, muitos hoteis diziam estar "lotados", pois eu e o Luigi parecíamos dois papeleiros maltrapilhos arrastando aqueles carrinhos pelas ruas.
Ficamos no hotel das Figueiras, fomos a uma lan house e não conseguimos terminar o diário.
Por isto pedimos desculpas por não responder a todos os e-mails de apoio e que me fizeram mudar de idéia e seguir em frente, mesmo quando o Luigi retornar às aulas no domíngo.
Bueno, o diário está sendo "interneteado" pelo Luigi, que é muito mais rápido para digitar.
Agora são11:37h e temos que partir.
Até a próxima e um grande abraço a todos.

Luigi e André



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