Velejando 1.000 milhas sobre rodas
Aventura em carro à vela
André Issi

Parte 4: De Quintão a Rio Grande

Rio Grande 13-08-07
Queridos amigos. Estou aqui na casa do Henri, depois de muitas aventuras neste trecho desde Quintão até Rio Grande.
Houve um capotamento espetacular na saída de um riacho-rio, rotina de faróis, esqueletos de barcos naufragados, esqueletos de baleias, tempestades e frio.
Graças ao Henri o pelotão Farroupilha pode continuar tentando seguir em frente até o Chuí e tentar voltar. Até onde eu não sei, mas não está morto quem peleia e vamos tentar ir e voltar, embora sabendo que um simples acidente possa findar tudo em um instante.
O acidente rompeu a braçadeira de inox que sustentava o mastro e entortou para dentro uma das longarinas de alumínio.
Só uma pessoa poderia consertar isso, era o Henri aqui em Rio Grande, mas tive que viajar por mais de 150 km com um conserto feito de uma tábua cortada a facão e um “bolo” de cordas amarradas que permitiram velejar até aqui. Cheguei na sexta a noite. Vamos ao diário desde Quintão:

04-08-07 Sábado Quintão

Ficar aqui na pousada foi bom e ruim ao mesmo tempo, pois acostumei a ficar embaixo das cobertas, no quentinho enquanto lá fora chove e venta sem parar.
Para ir à lan house todas as ruas estavam viradas em riachos e caminhar aqui só de botas ou de chinelos, o meu caso.
- CHEGA!
- Pelotão! Sentido!
- Arrumem suas tralhas e partam!
Fomos chamados de Laguna para ajudar o comando maior e as ordens chegaram.
- Temos que tomar a vila de S. José do Norte e a barra da Lagoa dos Patos.
O General Bento atacará a vila de S José com Garibaldi e Canabarro e vocês atacam a barra norte que parece estar tomada de Soldados papa-terra e peixes-porcos.
Passo na loja e pego a tal de roupa impermeável. É de nylon, made in China, uma porcaria. Agora azar!
Sigo pelo asfalto, mas logo vou para a praia. Monto a vela, mas o mar está alto, areia mole e pouco espaço para orçar.
O céu está roxo; temeroso dos raios desmonto a vela e sigo puxando.
Vejo uma coisa inusitada: um pescador com uma pandorga (pipa) atada a uma garrafa de refrigerante com metade cheia de areia e outra metade com ar. A garrafa flutuava e era arrastada pela pandorga para além da rebentação.
Na garrafa ficava atada a rede que era arrastada conforme a pipa ia para o fundo, na direção do vento.
Na praia, o pescador dava linha que estava presa à outra extremidade da rede que seguia puxada pela pipa e controlada da praia pelo pescador...
Essa eu nunca tinha visto, que coisa impressionante, como é que os caras tiveram esta idéia? Genial!
Há muitas corvinas e papa-terras mortos. Os pescadores recolhem aqueles que ainda tem as gelras vermelhas (podem ser consumidos). Dizem eles que os peixes estão morrendo de frio.
Chego ao farol Berta, vejo um lobo marinho que me olha suplicante. Percebo agora que possui diminutas orelhas e uma pequena cauda após as nadadeiras traseiras.
Fico com pena e volto a pé um bom pedaço recolhendo peixes mortos. Dou para o lobo que está muito magro e de costelas aparentes.
Ele come tudo, mesmo os peixes mortos há mais tempo.
Resolvo buscar mais e recolho mais vinte peixes. Enquanto me afasto ele se esforça e me acompanha com o olhar suplicante e se deita a própria sorte.
Faz frio e chove, fico mais de uma hora recolhendo peixes.
Ele come a maior parte e se deita, exausto.
- Pelotão! Encontraremos muitos feridos nesta batalha.
- Deixem comida e sigam seu caminho!
Vou me afastando com o carro, ele se levanta e fica me olhando, mas logo se deita esperando a sua hora.
Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás!

Chove mais ainda e fico na dúvida se procuro local ali nas casas do farol ou se sigo. Já são 15:30 ...
Resolvo seguir em frente, pois tenho que deixar de ser dependente e aprender a me virar sozinho. Está na hora de enfrentar o que vim combater.
Andando mais um pouco, vejo o que parece uma casinha perdida entre as dunas, subindo um pequeno riacho que se mete entre as dunas.
Está cheia de flores de plástico e tem uma cruz no alto. Parece uma sepultura, mas há uma varandinha e tem teto, ali posso inaugurar minha barraca “sarcófago”, que alguns chamam de bivaque. Ela não tem mais do que 50 cm de altura e mal cabe o cara deitado ali, mas acho que oferece menos resistência ao vento se tiver que dormir nas dunas.
- Senhor, isso aqui parece uma sepultura!
- Vamos dormir ao lado de um defunto. O senhor não tem medo de alma penada?
- O que sei é que aqui abriga do vento e da chuva. Vocês querem seguir e dormir nas dunas armando a barraca sob chuva?
- Além do mais o perigo são os vivos!
Tenho que me garantir agora, dormindo mais cedo e amanhã enfrentamos melhor o que vier.
O importante é que estamos no campo de batalha e livres das tentações de cama e cobertas.
Essa barraca eu havia comprado para viajar de caiaque, mas é extremamente desconfortável (não dá nem de ficar sentado, além do que eu não queria dormir “embalado” como papel de bala para sucuri, o grande pavor daquela viagem afora as corredeiras que quase me mataram e que me mandaram para o hospital).
Antes de me deitar, já às 18 h, vi um claro nas nuvens para o sul. Apesar disto, a chuva, o vento sul e o frio permanecem.

5-08-07 Domingo
Hoje realmente começa minha marcha de Quintão para o sul.
Acordo cedo, vento fraco e contra. Está nublado e sei que será um dia sem velejar, mas faz parte.
Enquanto escrevia, chega seu Luis Gonzaga que mora um pouco adiante. Ele pergunta por que não fui dormir em sua casa, diz que onde estou dormindo é uma igrejinha e informa que na barra da Lagoa do Peixe está profundo e que terei que arrumar um caíque para cruzar. Dei a ele um isqueiro para acender seu cigarro de palha e se foi.
Acabei partindo só às 10:30 h; à medida que caminhava vi muitos objetos do tamanho e formato de ovos de galinha, só que transparentes. Muitos peixes porcos e papa terras.
Depois pequenos caranguejos com patinhas coloridas e com cracas na carapaça.
Fui caminhando de chinelo e calção até às 12 h e mais tarde uma caravana de jeeps 4 x 4 cruza por mim. Cerca de vinte.
Depois fica o silêncio... Adiante o piado dos talhamares, gaivotas de cabeça preta e algumas garças.
Havia muitas gaivotas pequenas de dorso negro-azulado e peito branco, com bicos e patas azuis. Pareciam pássaros migratórios.
Depois encontro pedaços de uma embarcação que os pescadores dizem ser do barco pesqueiro que naufragou no furacão Catarina (em 2004). Parte dele está nas dunas e parte semi-submersa na beira do mar.
Caminho em intervalos de hora, alongo, subo nas dunas para ver melhor o que tem pela frente. Vejo algumas casas. Algumas delas são sinalizadas na beira da praia por espantalhos e não se vê, pois estão escondidas atrás das dunas.
Cerca de 15:30 h chego a uma caminhonete que vi de longe onde havia um pessoal pescando.
Converso com eles e Paulinho mostra um peixe estranhíssimo que encontrou ali. Ele ainda está vivo, é marrom com listras negras como zebras. Na parte inferior tem nadadeiras que parecem patas e na parte superior da boca uma extremidade semelhante a uma vara com linha de pesca e uma bolinha como isca. Ele balança aquilo na frente da boca, atrai peixes menores que vêm comer a “isca” e os devora. Já tinha visto um semelhante na National Geographic.
Paulinho é legal, diz que tem um haras de cavalo crioulo, uma loja de autopeças e diz que para frente é deserto e que não tem abrigo. Diz que é melhor eu dormir numa casinha quase ali ao lado e que nem percebi, pois estava atrás da duna, bem ao lado de uma saída de riacho.
É cedo ainda, mas o céu está nublado e é melhor me garantir de novo.
Fico ali tomando vinho com eles e depois vou me instalar na casinha. Na porta os dizeres:
-Use, mas não estrague!
-Feche a porta ao sair!
Está vazia, tem umas prateleiras onde coloco o mais necessário e uma espuma, onde coloco a lona e sobre ela o saco de dormir.
Paulinho retorna com uma caixa plástica atopetada de arroz, feijão, salada de batata e um baita pedaço de churrasco. Além disto, deixou o resto da garrafa de vinho que (Hic!) estou bebendo até agora.
Ele está voltando e diz que o que estou fazendo é o que todos queriam fazer, mas não têm disposição para encarar.
Deixa seu cartão e retorna para Porto Alegre.
Vou deitar, começa um vento forte que balança a casa.
Incrível, ele vem do norte... Nem acredito. Não consigo lembrar quando foi que soprou favorável a última vez...
Nem durmo direito.
O fecho da japona estragou, agora seguirei com a mais fina.

6-08-07 segunda-feira
Cara, que vento forte e de rajadas.
- Senhor, esse vento dá medo! Não é melhor esperar diminuir?
- Negativo, nós viemos combater e não podemos escolher. Vento favorável é raríssimo e temos que avançar a qualquer custo!
Tenho medo de estragar algo, mas ou eu crio coragem e arrisco ou é melhor voltar para casa.
Mal armo a vela e o carro dispara como louco, pega velocidade demais e fica perigoso, pois as constantes chuvas armaram dezenas de armadilhas, pois o mar está alto e os riachos cavocaram barrancos perigosos além de estarem bem mais profundos.
Quando menos espero, mergulho com força nos riachos mesmo seguindo as instruções do Nardi de navegar junto às ondas para livrar dos barrancos.
Quando o mar recua posso descer um pouco e diminuir o perigo, mas às vezes coincide de o mar subir bem na hora que surge um riacho e a coisa fica perigosa, pois estou muito veloz, o carro não tem freios e só tem duas opções: ou dou um cavalo de pau ou embico para o mar.
Afrouxava a vela quando surgiam os riachos, mas parecia que ali ele pegava mais velocidade ainda.
Passei por um esqueleto de baleia e tirei umas fotos.
Seguindo adiante encontrei dois enormes riachos onde o carro quase flutuou e a força da vela o fez emergir e avançar.
O negócio começou a fugir do meu contrôle. Embiquei contra o vento para verificar os cabos e o carro não parava. Para meu espanto ele empinou sozinho, pois as rodas estavam apoiadas no barranco; isto que a vela estava solta...
Segui em frente e a força do vento cada vez pior.
É a primeira vez que sopra um nordeste de jeito em 20 dias.
Já nem paro para fotografar os vários esqueletos de navios e outro enorme, de baleia.
Estou encharcado e de botas cheias de água de tanto varar riachos profundos.
Quase não enxergo direito, pois virei croquete de areia e os óculos escuros estão arranhados na vã tentativa de tirar a areia e ver algo.

- Senhor, há um enorme rio a frente, é profundo e tem barranco...
Estou em alta velocidade, com certeza a mais de 60 km/h e dar um cavalo de pau a menos de 10 m é arriscadíssimo de capotar sem parar.
Para meu azar o mar sobe com tudo invade o rio com tal força que parece uma pororoca, pois a água do riacho desce com fúria
- Rápido, soltem a vela!
-Soltamos, mas o cabo trancou nas mochilas e ela abriu na posição “asa de pomba”, onde o carro pegou mais velocidade ainda.
Para piorar havia uma descida antes do riacho e fui para o choque a mais de 70 km/h.
Não havia mais o que fazer, segurei-me nas barras e não vi mais nada.
Foi uma pancada tão forte que a roda dianteira mergulhou, trancou no fundo e o carro levantou nas duas rodas traseiras, girou no ar e tombou para bombordo.
Meu desespero era que o carro fosse enterrando na areia com aquela força de água e tentei me desvencilhar do ferro retorcido para dentro e que me prendia dentro do carro.
Saio dele desesperado, tento levantar pelo mastro, mas a força do vento na vela o mantém para baixo.
Corro atrás dos chinelos que seguem a correnteza para o mar e os deixo em terra firme.
Volto para o carro e desamarro nervosamente o cabo que prende a retranca para tentar sacar mastro e vela ao mesmo tempo.
- Sai sua maldita, sai senão eu te quebro ao meio!
E berrando como um doido consegui, no desespero, arrancar o mastro e a vela.
Levo tudo até o outro lado, volto ao carro, consigo desvirá-lo e arrasto o coitado até onde está a vela.
Resgato os chinelos e vejo que o varão está muito torto para dentro. Desentorto com coices para que pelo menos eu possa entrar no cockpit novamente.
Abro a caixa preta e escuto os últimos momentos da tripulação:

- Estamos com muita velocidade, desvia!
- Não dá!
- Tenta os freios...
- Não tem senhor!
- Baixe os flaps (cabos da vela)...
- Soltamos, mas prendeu. Não funciona!
- Estamos com muita velocidade....
- BZZZ, BZZZ (sons de choque nas ondas, etc...)

Olho para mim, desta vez estou inteiro, tenho que montar a vela e seguir...
- Senhor, estamos apavorados...
- O primeiro boiola que arrepiar vai se ver comigo!
- Todo combate tem esses choques de tropas.
- Reagrupem o pelotão e preparem-se para o combate!
- O pelotão tem que seguir batalhando!

E assim nos fomos, agora mais experientes e conscientes que o negócio não é tão fácil assim e que tem que ter muita farinha no saco.
Encharcados e congelados seguimos em frente passando por riachos menores, agora sem os óculos que foram aposentados, pois prefiro ficar cheio de areia nos olhos, mas enxergando melhor por onde vou passar.
Passei vários riachos, mas havia outro enorme, só que vi com mais antecedência.
- Soltem o cabo!
- Trancou de novo!
- Puxem com a mão!
- Soltou senhor, mas ainda estamos com muita velocidade...
- Preparar cavalo de pau!
- Estamos muito rápidos...
- AGORA!
É viver ou morrer. A roda dianteira gira, vejo a traseira esquerda deslizando na areia, o carro girando e ficando de frente para o vento.
A vela balança como louca e o carro inicia a andar de ré, tal a força do vento.
- Pelotão, finquem as esporas no chão até que gastem e arranquem os “garrões”!
Finalmente o bólido pára!
- É isso aí xiruzada, ainda terão que inventar um bicho bagual que o pelotão não aprenda a domar.
Desço e atravesso o Imortal (em homenagem ao brasão de armas da República do Rio Grande) até o outro lado.
Acontece que meu cavalo está ferido e estrala sem parar.
Estou encharcado, cheio de areia, botas cheias de água e enregelado. Não quero parar nem para tirar fotos, tanto que passo por várias carcaças de barcos, grandes esqueletos de baleia e dois faróis: Solidão (avermelhado e base cônica) e Mostardas.
Nem quero saber se molhou a máquina fotográfica para não baixar mais o astral.
Ali no farol de Mostardas havia um povoado grande, mas mesmo com o vento diminuindo bastante sigo em frente, já andando de um lado a outro para pegar mais velocidade.
Aproveito para aprender a andar com uma das rodas no ar, mas o carro estava esquisito:
- Senhor, rompeu a solda que segura a braçadeira das longarinas ao mastro.
- Droga, façam um conserto emergencial com o cabo que usamos como rédea (para puxar o carro)!
Encharcado, congelado, meio da tarde e vento parando.
Dormir aonde?
Subo uma duna e vejo árvores ao longe. São 15:30 o vento parou total, mas pela primeira vez (em 20 dias) velejei por 6 h seguidas.
Sigo puxando e chego às árvores. O céu promete chuva e ali há um povoado, mas não vejo moradores. Um povoado fantasma semi-enterrado pelas dunas.
Vejo um cachorro preto, algumas galinhas e só!
Chamo e nada!
Aparece um carro e um dos moradores sai da casa. Pergunto se posso passar a noite em uma das várias casas.
Tudo bem! Protásio (Tazinho) é muito legal e oferece um café que tomo ao lado do fogão a lenha que aquece um pouco. Ajeito umas tralhas, coloco roupas secas e descubro que a máquina fotográfica molhou, já era!
Tiro as pilhas, ajeito a lona e o saco de dormir em um diminuto quartinho e vou dormir.
O saco de dormir molhou então deito sobre o plástico e puxo a metade sobre mim para reter o ar quente.
Chove forte e para completar o dia duas goteiras finalizam o dia. Uma sobre a cabeça e outra nos pés.
Tortura chinesa (aquele som martelando no plástico e molhando aos poucos) para lembrar da roupa de chuva chinesa que não serve pra nada...
Assim passei a noite.

07-08-07 terça-feira
Viajei mais de 100 km ontem, estou na altura de Tavares e a 8 km da travessia da barra da Lagoa do Peixe, um parque nacional onde centenas de espécies de aves migratórias param em sua trajetória e onde há muito camarão e tainha.
Poucos puderam permanecer e por isto o povoado ficou “fantasma”. Além disto, o mar avançou e mais de 150 m foram tomados; onde antes havia casas hoje é o mar que continua avançando. Fora isto as dunas avançaram, inclusive já invadiram a garagem da casa onde deixei o carrinho.
Agora são 11:15 h, adaptei uma madeira para apoiar a braçadeira quebrada e fixei com cordas, espero que funcione.
As fotos já eram, as roupas coloquei para secar no forte vento SW que sopra hoje e tenho que decidir o que faço.
Resolvo tirar o dia para consertar coisas enquanto secam as coisas de ontem. Como não tenho nada a perder, abri a máquina fotográfica tirando os minúsculos parafusos com a ponta do punhal e a coloquei ao vento, aberta com uma madeirinha.
Na parte da tarde fui até a Lagoa do Peixe caminhando pelas dunas e encontrei a rural de Jorge “Lambari” que a deixou ali na margem para largar as redes. A rural é como muitas outras daqui, funciona a gás, cabine em madeira e muita improvisação.
Volto ao povoado e a máquina fotográfica voltou a funcionar. Fiquei louco de alegria e acabei jantando com Luis, Jorge, Jéferson e Lambari. Comi um delicioso arroz com feijão, moranga e aipim.
Que pessoal legal. Um frio de rachar, mas sigo para minha casa no escuro e dessa vez minhas roupas estavam secas.

08-08-07 quarta-feira
Acordo cedo, tomo café com os amigos que preparam dois ovos e um copo de café antes de partir. Que gente mais amiga. Jorge dá as dicas para subir a barra onde há um povoado e conseguir um caíque para atravessar a barra que está profunda e com muita correnteza.
Parto às 10h com vento fraco e uma hora depois chego a barra. Subo até o carro atolar e sigo a pé até o povoado.
Encontro uma senhora, seu Nilton e Joel. Eles vão me atravessar. Pego uma tábua de madeira grossa para fazer novo conserto, pois a outra não agüentou e partiu.
Na hora de atravessar tiro as botas, cair na água com elas é caixão. Não adiantou seu Joel dizer que não precisava, não vou dar chance pro azar.
Foi uma luta, mas seu Joel conseguiu tirar uma foto para mim e depois ele se foi enquanto eu cortava a grossa tábua com meu facão.
Amarro com cordas e sigo arrastando pela areia mole com muito esforço até voltar a beira do mar.
O vento ficou mais forte e sigo logo para aproveitar, pois o vento pára de repente por volta de 15 h.
Mas o conserto não durou muito, pois as cordas afrouxaram e tive uma crise histérica e fiquei berrando toda sorte de nomes feios enquanto desamarrava e reamarrava as cordas, agora utilizando as outras que possuía.
Segui em frente, a braçadeira rompeu em outro ponto e vou na manha para ver se consigo chegar em Rio Grande.
Não posso trocar de bordo e tenho que segurar o mastro com as mãos para impedir que ao virar de lado, force mais ainda sobre a braçadeira.
Ao passar pelo povoado areia da Praia, o pneu traseiro fura de novo...
O pessoal dali vem observar, oferece pouso em suas casas, mas dessa vez troquei rápido a câmara e resolvo seguir mais um pouco. É a neura de aproveitar o vento favorável ao máximo.
Sigo em frente até às 17:30 h, e resolvo arrastar sobre as dunas até um grande casarão nas dunas.
O vento frio está forte, mas ele tem uma boa varanda e coloco o plástico no chão.
Chove muito durante a noite, mas as goteiras não me alcançaram e dormi bem.

09-08-07 quarta-feira
Antes de partir, reaperto os cabos, pois o vento está forte.
Agora são 8:45 h. que deus me ajude!
Faltam 95 km para a barra da Lagoa dos Patos.
Estou próximo a Bojurù, de frente para a Barra Falsa, na Lagoa dos Patos.
Vou rezando para o conserto dar certo, pois o vento está forte.
A princípio estava dando certo, pois o carrinho pegou velocidade (apesar da areia mole).
Bueno, dia de vento favorável o pelotão não pára e assim fomos passando por ossos de baleia, lobos marinhos e cascos de navios pesqueiros. Eu nunca pensei que houvesse tantos.
O farol de pedra da Conceição desabou e um pouco mais acima há uma torre de metal, é o novo farol.
Sem sobressaltos fui deixando o carro correr, pois estava mais plano e sem grandes riachos, apenas alguns “mergulhos” em alguns mais profundos, mas tudo bem, normal.
Logo depois de ultrapassar um trator, vi uma caminhonete dando sinais de luz. Passo em velocidade e eles pedem que eu pare. É da FURG (Fundação Universidade de Rio Grande).
São Candinho, Paulo e uma menina, amigos do Henri “Talhamar”. Só consigo parar mais adiante, pois vinha em velocidade. Estou cheio de areia e molhado. Eles tiram muitas fotos, avisam de riachos grandes adiante e seguem para o norte, vão monitorar a barra da Lagoa do Peixe e voltam.
Quando eles partiram, percebi que o pneu estava saindo da roda, por isto trepidava tanto. Esvazio, ajeito o pneu e ponho menos pressão, pois o carro já está todo fora do esquadro e trepida com mais velocidade.
Fui em frente e passei por outra torre de metal (farol do Estreito).
Exatamente as 15 h o vento parou... Não dá de acreditar na força que tinha de manhã e de repente pára!
Para piorar começa a chover e imediatamente a superfície brilha e fica encharcada, difícil para puxar.
Não há casas abandonadas por perto e só me resta puxar, pois acampar nas dunas é muito ruim.
Caminho por mais de duas horas até que chego a um mato de casuarinas (uma espécie de pinus) que vi de longe.
Está cercado, três placas de proibido entrar na porteira.
Acontece que o pelotão está encharcado, cansado e sem ver nada para frente por causa da neblina e da chuva.
Abri a porteira, penetrei no mato e montei a barraca (sob chuva) abrigado pela duna e pelas árvores.
Estava tremendo, mas coloquei as roupas secas, comi a granola e fui dormir na barraca sarcófago.
Deixei as roupas molhadas penduradas nos galhos (pois deu uma estiada) e dormi super bem, abrigado do vento.

10/08/07 sexta-feira
Sou despertado por raios e trovões e desarmo a barraca em tempo recorde. Nada de diário nem comida.
Monto tudo e logo o dono das terras aparece. É seu Nilton, gente muito legal que diz que adiante há o povoado de Marumbi, quase em linha com S José do Norte. Então ontem andei cerca de 80 km e faltam uns 15 km até a barra...
Pena que não há vento e tenho que seguir puxando.
Chove, fica uma neblina que não deixa ver mais que 500 m. Logo adiante passo por pequenos abrigos com telhados de frente para o povoado e com redes penduradas. Na neblina as coisas são estranhas, tu vês o que parece um farol e quando se aproxima não passa de uma estaca de rede.
Caminho uma hora, como uma laranja, outra hora, outra laranja.
Estou de botas e roupas de chuva, ruim para caminhar, mas não tem remédio.
O pelotão não tomou café e está cansado.
Vejo a carcaça de um enorme leão marinho e depois a de um filhote de baleia. Resolvo parar por ali para descansar.

- Senhor, estamos famintos e de saco cheio de comer queijo e salamito!
- O quê? Soldado reclamando da ração de guerra?
- Sim senhor!
- Bueno, então vou fazer algo que não vão esquecer...
A comida estava ótima, apesar de fria.
- Senhor, que delícia. O que era?
- Ora, o kinojo, um pacote de sopa e... Sprite!
- Argh!
- Por que não fez com água fria?
- Ela estava por baixo das mochilas cheias de areia e achei melhor adicionar o refrigerante!
- Viram como ficou salgado, doce e frisante ao mesmo tempo?
Bueno, o tempo ficou esquisito e parece aumentar, mas está rondando.
Parece ficar a favor e resolvo montar a vela.
Ando um pouco e o corno do vento pára, grrrr!
Em terra, para o lado da barra umas nuvens negras começam a girar em círculos e se dirigem para o mar. Parece um mini tornado...
- Senhor, estamos em perigo, é a frente fria com vento de SW se chocando com esse de NE.
Rajadas chegam de repente, violentas.
Desmonto o mastro rapidamente, pois raios ao longe dixam todos de alerta.
Virou um inferno, chove, venta forte e contra. A superfície fica molhada, mole e me obriga a um esforço triplo.
As pernas fraquejam, tenho que parar a todo instante e os 7 km que faltavam parecem 20 agora.
Paro a todo instante, e tenho que caminhar de costas, pois assim fica mais fácil de seguir contra o vento, pois este desvia no capuz e assim não judia tanto, pois o nariz pinga sem parar, pois ficou mais frio ainda.
Que coisa mais estafante, mas agora só faltam mais 3 km.
Foram os piores que já andei. Sigo entre milhares de peixes porcos e, papa terras e bagres (perigosos de furar os pneus por causa dos esporões).
O mau cheiro está no ar, as areias correm como loucas de encontro e oferecem bárbara resistência ao pelotão que está nas últimas. Quando dá, cantamos o hino farroupilha e seguimos em frente.
Finalmente, às 14:30 h, depois de 5 horas de caminhada arrastando o Imortal (em homenagem ao brasão de armas da bandeira gaúcha) o pelotão amarra as rédeas nas pedras dos molhes.
Dou um berro de raiva, o pelotão conquista mais um baluarte!
Depois arrasto até a vila quinta seção da Barra e lá muitas pessoas vêm olhar o carro.
Depois como um baita bauru e tomo um café quente, pois o vento está horrivelmente frio e forte.
Está difícil de atravessar, mas lembrei de Chico Preto que disse que me atravessaria se não conseguisse com mais ninguém.
Encontro ele num barzinho, no quente e jogando cartas com os amigos.
Fico até com vergonha, mas não tenho nem onde dormir aqui e já escurece.
Chico se levanta, fala no telefone com os amigos e me leva a sua casa. Tom,o um delicioso café em companhia de sua esposa e uma vizinha. Ele fala que se eu quiser dormir em sua casa ou no barco, que arranja quem solde a braçadeira rompida, etc...
Cara, que pessoa maravilhosa, ele nem me conhece!
No fim, depois de fotos e conversas, ele concorda em me atravessar.
Já que está quase escuro, vamos no vento cortante e três rapazes super divertidos carregam o carro pelo trapiche e o colocam no imenso barco pesqueiro (Chico Preto) sobre as redes, no convés.
Mais uma pro caderninho. Sigo na rústica cabine e fico adimirado da coragem deles de sair mar afora, à noite, soltar e recolher redes.
Muitos dos cascos que encontrei eram de barcos iguais a este... Isso sim é que é coragem!
O pelotão se recolhe a sua insignificância enquanto atravessamos em direção da quarta Seção da Barra, já em Rio Grande.
Quando tento pagar, Chico Preto não quer nem me ouvir falar, disse que já viajou muito e que estas coisas não se cobra... que dizer?
Eles se vão, ganhei outro amigo, dos bons!
Estou no meio de uma vila meio “complicada” e sigo caminhando por uma estrada enlameada rumo ao grupamento de Fuzileiros Navais.
Falo com o pessoal que autoriza que deixe o carro aqui, mas não há alojamento...
Em frente, nos Fuzileiros, fizemos o Estágio do curso de formação para oficiais do corpo de saúde da Marinha.
Ali eu, o Rojas, Bello, Beltrame, Verdi e tantos outros iniciamos nossa vida independente e sou muito grato, traz boas recordações.
Se os guris soubessem que vinte anos depois estou onde tudo iniciou...
Eu não tenho saída, tenho que apelar e chamar o Henri, queria tomar um banho antes...
Foi ele que fez com que eu passasse por Rio Grande na viagem do caiaque e fosse alojado no Yatch Club de Rio Grande.
Falo com ele e vou arrumando os tarecos antes que venha. Fico ali no vento gelado arrumando tudo e quando vou tirar as botas, com horror, que dois zorrilhos vêm abraçados nas meias.
Elas fedem tanto que depois de mais de oito horas de caminhada os bichinhos se apaixonaram pela “essência” das meias que eles as querem com cobertor.
Para minha desgraça chega o Henri e a Maíra e não deu tempo de trocá-las.
Só aí me dou conta de que o último banho foi em Quintão.
Sou muito bem recebido pelos dois que mereceriam uma medalha de bravura, pois levaram o pelotão fedorento sem fazer nenhum comentário.
Quando chegamos a sua casa, coloco as meias em um balde com ácido.
- Morram suas meias fedidas!
Minhas botas estão pior que caldeirão de bruxa!
Quando me olho no espelho outro choque.
Só aí foi que vi como está frio, pois minha barba está branca por causa da geada e da neve.
Um banho delicioso, uma janta divina que Julieta preparou e assim recupero minha dignidade de ser humano resgatado do banhado!

11-08-07 sábado
Resgatamos o carro no Comando de Grupamento Naval do sul e voltamos para a casa do Henri.
Ele tira as cordas, olha reolha e logo está cortando chapas de inox, desentortando longarinas e o meu carro ficou melhor do que estava antes.
Se havia alguém que pudesse recuperar meu carro aqui em Rio Grande, seria o Henri, que tem uma oficina em casa com todo e qualquer tipo de ferramentas que possui como hobby.
Revejo dona Gesine e seu Pierre, vamos jantar e passear.
Almoço, amigos do Henri, Yatch e outro passeio maravilhoso em companhia dele, de Julieta e Maíra.
Ontem foi dia dos pais e fomos passear de Toyota desde Povo Novo, arraial, Quitéria e vila Quinta.
Voltamos depois de visitar os pais e irmãos de Julieta e depois me puz a escrever.
Agora são 4:34 h da manhã e estou podre. Mais tarde estarei partindo para o sul.
Tem feito muito frio, ontem fez 0º C e outros dias esteve – 2 e -4º C.
Vou enviar este e depois vou tentar mandar as fotos.
Um grande abraço a todos e Bom dia
André



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