Velejando 1.000 milhas sobre rodas
Aventura em carro à vela
André Issi

Parte 5: De Rio Grande ao Farol de Albardão

É isso aí amigos, foi mais feio que peleia de foice no escuro, mas a custa de grande esforço e muita raiva o pelotáo chegou há pouco ao Uruguay, de onde agora vos escrevo. Desculpem a acentuaçáo, mas o teclado é em espanhol e aí complica o vosso "catador de milho".
Cheguei aqui completamente encharcado e com frio de rachar, mas o inimigo abriu o flanco e o pelotáo aproveitou a oportunidade e se jogou pro tudo ou nada e a vitória, antes tarde do que nunca, premiou todo o sofrimento que foram os últimos noventa quilômetros de uma viagem que já chega aos 800 km.
Pensei em desistir, mas o que eu me arrebentei nos tais de "conchais" me deu tanta raiva que agora vou dar marcha-a-ré no caminháo e passar por cima dele de novo, só de raiva!
A máe foi pro hospital, mas me informaram que ela recebe alta hoje e que está bem, por isto o pelotáo volta pra essa guerra sem fim.
Um grande abraço a todos e espero que viajem e se divirtam mais um pouco neste trecho que virou passado.

Rio Grande,13-08-07 Segunda
Eu fiquei táo desesperado para escrever antes de partir que acabei resumindo um pouco da acolhida maravilhosa que recebi de Henri, seus familiares e os de Julieta, sua esposa.
Foi um fim de semana ultra especial, assim como foram os dias que passei com eles durante a viagem do caiaque e da viagem para a Argentina de moto, ano passado.
Muito obrigado amigos!
O Henri ainda foi buscar a câmara de ar no borracheiro e me deixou na Av Atlântica, no centro do Cassino. Ali montei a bagagem e fui entre os eucaliptos até uma lan house mandar as fotos que náo tive tempo de mandar, pois escrevi até às cinco da matina e levantei às sete, pois o coitado do Henri tinha que trabalhar e se atrasou por minha causa.
Fiquei mandando fotos até às 12 h e depois fui para a praia. A lan house ficava exatamente na esquina da rua Porto Alegre, a mesma onde havia o "fantasminha", a casinha de madeira onde sempre passávamos as férias de veráo em nossa infância. Náo havia luz, o lampiáo era de querosene, o leiteiro trazia o leite em garrafas coloridas penduradas na sela... Coisas de High Lander!
Duas pessoas ali vêm me ajudar e tiram fotos.
Vejo a belíssima estátua de Yemanjá na chegada a praia.

- Tenente, o que está fazendo?
- Depositando flores para a santa...
- E desde quando o senhor é adepto de Yemanjá?
- Se ela é táo gostosa como essa estátua, sou adepto desde hijo...
- Pensávamos que como homem do mar o senhor preferisse as sereias...
- Tá louco? Só se eu fosse metade golfinho, fazer as coisas pela metade náo é comigo!
Venta frio e forte, penso em sair amanhá, dormir numa pousada...
- O quê? Já pra peleia!
- Basta um final de semana e já viraram uns molóides1
Parto perto de 13 h e quarenta minutos depois chego aos destroços do navio Altair que naufragou em 1976. Tiro umas fotos e a praia se revela o melhor trecho que passei até agora. Ampla, limpa, firme e melhor, vento favorável.
Mais adiante o vento foi diminuindo e tive que ir bordejando para pegar mais velocidade.
O carro e a estrutura parecem bem, estrala aqui e ali, mas acho que é normal.
No fim, estou no estilo patinete, pois ficou fraco demais.
- Senhor, o Imortal está depressivo!
- Ele náo sabe mais se é carro a vela, patinete, carro de máo, carroça ou cavalo...
- Deixem-no, ele é adolescente e está buscando sua própria identidade...
- Mais queixas...
-O que é agora?
- O soldado sarcófago (barraca) reclama que todos o chamam de "baixinho"!
- É o que sempre digo, quando o pelotáo náo está de peleia começam as picuinhas!

As horas passam, vários riachos sem importância e um ou dois que parei antes para náo me molhar.
Aquela roupa "china" para chuva chupa tudo, deveria ser utilizada para coisas mais úteis como absorventes, por ex.
Em um dos riachos conheço Ernani. Mora em uma casa ali nas dunas e diz que o farol Sarita está a 40 km e que eu posso chegar lá ainda hoje...
Todavia faltam só duas horas para findar o dia, vou tentar!
Depois outro homem se aproxima, pois a vela é visível de longe.
Ele gesticula grosseiramente, quase impondo que eu deveria seguir em sua direçao, mesmo quando eu sinalizo que vou em frente... Só me faltava um chifrudo querendo dar ordens ao pelotáo!
A praia fica mole, vai diminuindo e o vento também. Como já vejo o farol, sigo puxando no final e, já no escuro, chego em linha com o dito cujo, mas ele está muito para dentro, já nas dunas.
Deixo o carro na praia e sigo no escuro em direçáo de duas dunas altas que têm árvores de pinus.
Volto e arrasto o Imortal até a base delas e resolvo montar a barraca sem a lanterna, para aprender para uma situaçáo de emergência.
Náo é que deu certo? O sarcófago até que ficou bem montado.
Ô barraquinha baixinha! Náo dá nem de ficar sentado nela.

14-08-07 Terça
Andei 60 km ontem, mesmo saindo só às 13 h.
Agora sáo 8:18 h, escrevo sentado nas dunas tomando um sol para aquecer um pouco. Parto às 9:40 h com vento favorável e vou cruzando com lobos e gaivotas até que surge uma toyota da marinha. É Axel, pensa que sou o Lúcio, amigo do Nardi e do Henri. é Que Lúcio, além de professor de vela no Yacht de Rio Grande viaja em carros a vela do Nardi.
Paro pra almoçar perto de doze horas e tento alimentar um lobo magro, mas ele recusa o peixe.
Depois sigo puxando, porque o vento parou total. Como deixei a calça china pendurada para secar na retranca, só fui perceber que a dita cuja caiu sei lá onde.
Busco ou náo? Melhor buscar, por pior que seja. Há uma neblina no ar e bastou correr seis minutos para náo ver mais o Imortal. Que tempo esquisito...
Vejo para o fundo matos de pinus e dunas náo muio altas que náo daráo abrigo para o caso de vento ou chuva que estáo previstos para hoje.
Às 15:30 h, finalmente entra o NE e desisto de procurar local para me abrigar, pois vejo o farol Verga ao longe.
Chego rápido lá, recém sáo 16:44 h, mas é melhor me garantir.
Arrasto o Imortal sobre as dunas e o farol tem uma porta na parte de trás. Melhor, está aberto. É uma base de concreto piramidal e uma torre de metal na parte superior.
Está cheio de areia, mas é muito bom abrigo.
Deixo o carro e a vela na duna em frente e coloco o plástico sobre a areia. No meio o saco de dormir e dobro o plástico por cima para reter ar quente e suportar mais uma noite fria.
Agora sáo 18 h, estou sentado dentro do farol Verga enquanto sopra um NE feio lá fora. O carro ficou na moita e ninguém vê lá da praia.
O travesseiro inflável furou (como na viagem do caiaque) entáo vou usar uma garrafa de refri como travesseiro daqui pra frente. Forro com minha manta de lá e fica show!

15-08-07 terça (acho que 1 mês de viagem)
Está nublado e parece que vem chuva. Sáo 7:47 h e náo está táo frio, se bem que estou com o "kit" de dormir: duas meias, dois abrigos, camiseta, jaqueta de neoprene, dois blusóes de lá, japona grossa (que estragou o fecho) e japona fina do Grêmio. Fora luvas e touca de lá, básico!
Estou com erupçóes cutâneas no dorso da máo direita; devem ser por causa da raçáo de guerra, conservantes ou mofo, sei lá!
- Senhor. Estas erupçóes apareceram naqueles exploradores que tentavam achar uma passagem entre o Atlântico e o Pacífico, próximo ao pólo norte...
- O que aconteceu?
- Os que tiveram sorte morreram antes, intoxicados pelas toxinas em alimentos enlatados. O navio ficou aprisionado pelo gelo por três anos, pois os veróes foram muito rigorosos e náo houve degelo.
No fim o navio foi destruído pela pressáo do gelo e os que sobreviveram tentaram ir para o sul, rumo a uma estaçáo baleeira arrastando enormes botes sobre o gelo. A comida acabou, houve casos de antropofagia e náo sobrou ninguém para contar a estória, apenas evidências.
Parece que o nome do navio era Endurance...
- Tudo bem, náo te preocupes, pois os exploradores eram ingleses e o pelotáo foi forjado no Rio Grande e aguenta muito mais que isso!
- Êta índio bagual! Gaúcho barbaridade!
- Senhor, podemos utilizar como enfermeiras aquelas "mulheres da vida" que acompanham o pelotáo numa carroça velha (meu corpo)...
- Quem?
- As irmás Pedritas (pedras no rim) e as gêmeas, as Ernas (2 hérnias de disco).
- É verdade, todo pelotáo é seguido por "Chinas" e além da "especialidade" elas podem servir como enfermeiras...
-Vá chamá-las!
Ao puxar o imortal levei uns sustos, pois toda hora parecia que um carro se aproximava rápido, quase ao meu lado.
Depois é que percebi: era o eco da rebentaçáo batendo na vela.
Parto às 9:40 h, náo há vento e sigo puxando por uma hora. Paro para comer uma laranja e ao olhar para o horizonte fico de cara com as "peças" que essa imensidáo prega aos olhos.
Tu vês algo ao longe, parece uma pessoa, mas depois de avançar muito, percebes que náo passava de uma gaivota. Confundi uma estaca na duna com um farol. Vacas parecem casas, depois carros e finalmente...Vacas!
Sigo em frente e numa duna ao longe vejo vários cachorros descendo e vindo pela praia em minha direçáo. Como náo fico só olhando, deixo o facáo à máo!
Eles retornam para as dunas e vejo uma coisa esquisita ao longe, parece uma neblina branca, mas é um forte vento SW que chega de repente.
- Senhor, estamos sofrendo um ataque! Náo conseguiremos avançar!
- Negativo, aqui a praia é larga e firme, temos espaço para orçar!
- Impossível, senhor!
- Para o pelotáo isso náo existe, sempre teremos um punhal na bota (carta na manga)!
E assim seguimos em frente, bordejando e avançando graças a praia larga e firme.
- Senhor outro ataque de índios, parece que sáo da tribo canídea!
- Calamos as baionetas (facáo)?
- Negativo, acho que vi os chefes deles (pescadores) e náo quero arranjar mais encrencas que já temos.
- Que fazemos?
-Lutem a soco! Acho que estes índios nos confundiram com algum carroçáo de colonos, por causa da lona que cobre a bagagem.
Cara, que inferno. Cerca de quinze cachorros correm a meu ladoenquanto subo e desço a praia. Eles se aproximam dos dois lados e além de velejar tenho que me cuidar para náo ser mordido.
Quando o carro pega velocidade tento atropelá-los, mas os bichos sáo muito rápidos. Aquela zoeira nos meus ouvidos vai me perseguindo, irritando e despertando meu ódio assassino.
Quando o lider deles se aproximou mais perto, acertei um soco que derrubou o corno e este embolou com outro que vinha logo atrás.
- Grande tiro tenente!
O chifrudo voltou a carga e a estes se aliaram outros mais. Para meu azar a praia ficou mole, estreita e o carro atolava.
Aproveitava para jogar areia e conchas nos chifrudos, de preferência nos olhos.
O vento SW cada vez mais forte fez eu cometer um erro. O carro atolou antes de dar o bordo, os chifrudos vieram por cima e na ânsia de acertá-los, deixei a retranca subir e dar a volta com o cabo preso,.
Resultado: quebrou a tala mestra da vela. Logo o pedaço pequeno furou a bainha da tala e ameaçava rasgar a vela.
Fui em frente, os cornos ficaram para trás e como estava atolando direto além do risco de rasgar a vela, resolvi seguir puxando.
Deito o carro para remover a vela. Ela estremece no cháo como um possuído pelo "demo" em terreiro de umbanda.
Dois coices a la pelotáo e o bicho se acalma até que enrolo a corna.
Acontece que com forte vento contra, mar subindo e sem parte firme, seguir em frente era só pra me ferrar.Resolvo almoçar na entrada de um riacho ao abrigo de uma pequena duna e decidir o que fazer.
Para o sul o céu roxo e prenúncio de tempestade. Acampar ali era temerário, mas os pinus ficaram para trás e uma planície de areia e sem dunas era o que tinha para a frente. Apenas tufos de capim colono e salgado.
Que fazer?
Resolvo utilizar o GPS pela primeira vez. Olhando o mapa dele e o que eu tenho calculei que minha única saída seria o farol Albardáo, mas ele estava há cerca de 12 km, eu teria só três horas, arrastando contra o vento e a areia mole, afora o fato que a partir das 13 h o mar sobe cada vez mais.
Que que tu achas cara?
Se a gente aguentar arrastar sem parar chegaremos perto, mas se as forças acabarem vamos morrer na praia, pois se a tempestade nos alcança antes...
Resolvi tentar! Eu náo tenho escolha, é chegar ou chegar!
Começo a marcha desesperada, atolando, me irritando e xingando o vento, o carro e tudo mais que se atravesse no caminho.
Na beira da praia está mole, no meio também, entre as dunas pior. Começo a ficar agoniado e náo adianta simplesmente parar. Se o temporal me pega naquela parte estou ferrado. Sou obrigado a seguir mesmo sabendo que náo vou conseguir. A tempestade chega antes ou minhas forças acabam.
Depois de uma hora vejo o farol na bruma e o céu roxo por trás dele...
Se o vento mais forte e a chuva me alcançarem antes, morrerei na praia. Náo tenho mais forças!
- Pelotáo! Cantem o hino farroupilha...
- Até a pé nós iremos...
- Náo, esse náo
- Como a aurora precursora do farol da Divindade
- Foi o vinte de Setembro, o precursor da Liberdade....
- É isso aí bugrada. Náo desistam!
Pela primeira vez na viagem estou agoniado, pois se náo chegar a tempo vou me ferrar. Faço alongamentos, paro para respirar, estou nas últimas.
Já vejo o farol há duas horas, mas falta mais de hora e meia.
- Alguém jogue um laço e traga esse maldito farol mais pra perto!
No meio de tudo vejo um porco solitário na beira da praia. Pronto, além do extremo cansaço físico estou vendo coisas.
Além disto, vários barcos de pesca sobem a costa a favor do vento, a menos de 1 km da costa. Estáo fazendo arrastáo...
Lembro de Chico Preto, o amigo que ganhei na vila Quinta.
Depois de 3,5 h de caminhada desesperada chego em frente ao farol que está bem para dentro, lá no meio das dunas. Já passa de 18 h, escurece rápido. Deixo o carro e sigo a pé para o farol. Falo com Franklin e outro faroleiro.
Eles dizem que posso ficar, tenho que arrastar o Imortal sobre as dunas moles.
Vejo algo mais próximo da beira e pergunto o que é.
- É um container...
Se for bom, posso ficar lá?
- Como você quiser...
- Vou a pé. a porta está aberta e virada para NW, abriga do SW. Por dentro tem furos na parede SW, mas o vento mudou para SE e dá para encarar.
Arrasto o Imortal até ali, monto a lona e o saco de dormir ao fundo do container e a chuva chega com tudo...
Será que tem um santo me ajudando?
Antes que pense muito, desabo no cháo e durmo. Estou no meu limite físico, quase estafa. Amanhá conserto a tala que quebrou e reaperto uns parafusos.
que dia!
´Náo foi nada, mas andei 30 km contra o vento. Dos 220 km que faltavam de R Grande já fiz 130 km. No total já foram mais de 700 km.
Faltam só 90 km para o Chuí.
A tripulaçáo até já fez uma marchinha de carnaval:
- Hei Chuí, olha eu aqui, olha eu aqui...
Como algo e "apago"!

16-08-07 Quinta
Cara, que dureza! estou estafado.
Desperto cedo e há vento. Caso seja favorável sigo em frente. Todavia é S, bem contra e como choveu direto esta noite além de estar nublado, resolvo ficar e arrumar a tala quebrada além de apertar uns parafusos.
Como já estava previsto, o dia será de descanso da tropa.
Durmo o resto da manhá e a tarde toda foi de chuva. Estivesse nas dunas estaria mal.
Agora sáo 16:11h, o dia se foi, arrumei a tala com silver tape. Aqui no container tem uma espécie de barquinho de fibra com as iniciais FEG (Geologia).
Faltam cerca de 70 km para o Hermenegildo, mas o Henri falou que daqui para a frente há incríveis depósitos de conchas (Conchais) ao longo de 40 km e barrancos de riachos com altura superior a um metro.
Um carro destes ao bater num barranquinho de 20 cm já é uma tragédia a 70 km/h. Vejam o que aconteeu ao meu ao bater na água...
Antes de dormir preparo um kinojo cru com sopa.
- Senhor, está frio...
- Deixem de frescura, o pelotáo é superior ao tempo! Náo precisamos de comida quente!

17-08-07 Sexta
A exemplo de ontem amanhece perto de zero grau centígrados e com forte vento que passou de SE a SW. Arrastar o carro contra o vento e com atoleiro é caixáo. Levanto e congelo rápido. Volto para o saco de dormir.
Aqui no interior cinza deste container tudo o que vejo é um céu polar, meu carro na porta de entrada e o farol preto e branco do Albardáo ao fundo, na dunas.
Escuto o pio dos talhamares, gaivotas e o vento...
- Senhor, estamos entrincheirados aqui já quase pelo segundo dia. Nossas provisóes estáo diminuindo...
Lembrei de Sir Scott, que foi a pé até o pólo sul com mais seis homens. As provisóes foram findando, os mais forte morreram primeiro.
A um dia de chegar no depósito de comida que haviam deixado na ida, foram pegos por violenta tempestade e tiveram que montar acampamento.
A tempestade durou tempo demais e ali eles morreram. Relataram suas últimas horas e a tristeza de terem chegado ao pólo e saber que o Noruegues Amudsen havia estado lá um mes antes, pois ele foi com trenós puxados por cáes e os ingleses de esqui puxando trenós. Eles até levaram uma espécie de snow board, uma invençáo na época, mas que estragaram logo no início.
- Senhor, nós vamos morrer?
- Te pára de frescura! Vocês já enfrentaram coisas piores.
- Lembram da moto em Ushuaia com neve? E aquela outra ao relento nos geisers entre a Bolívia e o Chile com temperatura abaixo de 6 graus negativos.
Nem vou falar das noites de tempestades na Lagoa Mirim nas viagens de windsurf ou de caiaque.
E a pior de todas, naquela tempestade ao atravessarmos de caiaque a Lagoa dos Patos na parte mais larga... Lembram, foram 70 km de travessia, aguentamos a tempestade que iniciou às 23 h até virarmos às 3 h da manhá com ondas de 3 a 4 m. Quase perdemos o caiaque no escuro e só nos salvamos porque havia uma lanterna a prova d'água presa ao pulso e pudemos achar o caiaque que se ia nas ondas. Foram 3 dias sem dormir, tivemos visóes e 24 h depois chegamos do outro lado...
- Quando o inimigo fraqejar, atacaremos!
Tenho que diminuir a comida, pois em trinta dias (incluindo os 15 com o Luigi) gastei só duas das quatro garrafas de granola e só em 4 dias já gastei a metade da terceira.
Agora sáo 13 h, faz muito frio, estou dentro do saco de dormir e o vento contra aumentou, quem sabe amanhá?
O container está todo furado, mas achei uma parte onde náo tem goteiras. O chato é o sopro do vento o tempo todo e eu nem trouxe um radinho desta vez (por falta de espaço). Estou mais ou menos na metade do comprimento da lagoa Mangueira, é uma planície desolada, sem dunas e apenas tufos de capim pioneiro e capim salgado. O pior de tudo é que preciso destas frentes frias se quiser voltar.
Tenho que comprar outra roupa de chuva, pois ficar encharcado nete frio é muito duro.
Perto de 14 h, o Sargento Franklin MR e o cabo Magno MO vieram me buscar. Eles estavam no alto do farol e me viram. Pensaram que eu já tivesse ido.
Dizem para eu dormir em uma da casas do farol. Levo o básico e deixo o carro por ali mesmo.
Almoço com eles uma deliciosa massa e depois chega o vizinho deles, Edmar. Ele traz uma garrafa de cachaça de butiá que bebemos no ato. Aqui eles têm internet e gerador.
Tchê, que frio!
Há 4 casas com telhado em forma de pirâmides, sendo que duas estáo inoperantes.
O farol original foi inaugurado em 1909 e o atual em 1946, tem 44 m de altura (o mais alto da costa Gaúcha) e 42 milhas de alcance. Contando os faroletes, nossa costa tem 19 faróis, sendo que o farol da barra da Lagoa dos Patos foi o primeiro da costa brasileira (construído em 1820), mas este já caiu, (foi substituído pelo atual em 1949) como vários de nossa costa e da Lagoa.
A manutençáo é precária, parece que os governos acham que os faróis náo sáo mais necessários e o fim deles é caírem. O popa participou da recuperaçáo da base do Cristóváo Pereira, mas as coisas náo andam na velocidade necessária.
Inlusive o Franklin está na matéria sobre a recuperaçáo do Cristóváo.

18-08-07 Sábado
Acordo cedo, dou um pulo no container e depois subo no farol. A vista lá de cimaé lindíssima, vejo "meu" container (ponto escuro aí pelo centro da foto ao lado) e o carro perdidos nas dunas baixas desta planície desolada, a Lagoa Mangueira, campos e matos de pinos ao norte. Amanhece frio e com vento de SE de novo e náo dá de enfrentar os conchais com vento contra. Parece que iniciam a cerca de 20 km ao sul do farol.
Estou lendo o livro "Areias do Albardáo" de Ulrich Seelizer, Cézar Cardozo e Lauro Barcelos.
Ali explica a formaçáo dos Conchais:
- Há 4 mil anos, havia uma barra na Lagoa Mirim que fechou, formando o banhado do Taim e a Lagoa Mangueira. Hoje, a erosáo da costa próximo ao balneário de Hermenegildo está expondo os depósitos deste antigo canal como testemunho do passado geológico.
Um pouco mais ao norte, em trechos apropriadamente denominados de "concheiros", as ondas cavam grandes quantidades de conchas e moluscos fósseis da plataforma submersa e jogam-na na praia. Junto com pedaços de conchas, sáo depositados dentes fósseis de tubaróes, mamíferos terrestres que viveram há cerca de 15.000 anos, na planície costeira ( mamutes, tigres dente de sabre e preguiças gigantes).
No inverno, as ondas de alta energia e a declividade da praia formam barrancos de 1,20 m de altura na parte alta pouca mobilidade (atoleiros) devido à areia grosseira.
Ou seja, acho que para passar ali terei que arrastar. O Magno falou que a toyota quase capotou numa parte por causa da inclinaçáo e por causa das ondas que estouram ali em cima, agora no inverno.
Descobri que os lobos pesam no máximo 160 kg e que os leóes marinhos chegam aos 300 kg.
Aqueles "ovos" de galinha transparente que achei perto de Quintáo sáo, na verdade, cápsulas com embrióes de moluscos. Tem uns pretos que todos dizem ser de tubaráo, mas na verdade sáo de raias.
Aquele maçaricos pequenos que correm como doidos sáo batuíras, as gaivotas de cabeça preta e perna curta sáo chamadas de Trinta-réis e as chatas, de cabeça preta, gaivotas de capuz.
Estou aqui há 3 dias e pelo jeito vou ficar a quarta. Estou constrangido, náo quero abusar da hospitalidade, mas o pior é que a previsáo para amanhá é de forte chuva e ventos fortes.

19-08-07 Domingo
Tchê, entrou uma frente fria em cima de outra e amanheceu com chuva...
Fiz um discurso inflamado que iria para a peleia de qualquer jeito, mas assim é sacanagem!
Vim aqui na casa deles disposto a partir ou voltar ao container, mas o Franklin mandou eu sentar e "esfriar", pois seguir assim eu náo iria andar nem 10 km.
O pior é que nem roupa de chuva tenho. Ficar molhado com o frio que está fazendo...
O Magno falou que foram registradas ondas de 5 m na Lagoa dos Patos quando ele navegou por lá e o Franklin falou de experiência semelhante.
E eu achando que estava exagerando quando falei que as ondas naquela noite do temporal no caiaque estavam entre 3 a 4 m... Talvez até tivessem mais!
Estes 90 km nem foram percorridos e já se tornaram o pior dos trechos. Estou entrincheirado há 4 dias e tenho que ficar mais um. O pior é que o vento forte está previsto para esta noite.
Agora sáo 21 h, lá fora sopra o maior pau de vento que assobia nos fios da cerca. A chuva chegou junto e forte.
Por isto o pelotáo continua aquartelado.

20-08-07 Segunda
Cara, amanheceu, a chuva parou. Vou partir...
Tchê, sopra um violento vento de SW que assobia nos fios e faz a areia correr como louca pela planície. O mar está de ressaca, alto e a crista das ondas é jogada para trás pela força do vento. Náo há condiçós de prosseguir.
Que merda! Estou aqui já faz cinco noites, náo tenho como sair náo quero abusar da hospitalidade e esse vento corno náo pára...
Saco, que situaçáo!
Vou até o container olhar o carro e caminho pela praia. A areia está mole, o mar lá em cima, náo há condiçóes sequer para arrastar...
- Senhor, isso aqui está parecendo praga de sogra!
- E das brabas!
Faço uma pesquisa rápida. Tive cerca de vinte sogras mais ou menos estáveis e apenas me extressei com duas... Uma delas já morreu!
Dizem que sogra ruim, quando morre vira bruxa... Eu náo acredito!
Mas esse tempo...
- Senhor, vamos morrer como os exploradores do pólo sul. Ficaram acampados na tempestade até as provisóes acabarem. As nossas já estáo no fim...
- Náo se preocupem demais, pois o nosso pelotáo foi reforçado pelo sargento Franklin e pelo cabo Magno. Náo fosse eles o pelotáo estaria virado num esqueleto como os do navio fantasma!
Eles estáo fortificados no farol Albardáo forneceram abrigo e alimento ao pelotáo.
Brody, os caras sáo legais demais, mas eu tenho até vergonha em dizer que náo posso prosseguir. Falo a mim mesmo qu náo vou mais almoçar com eles, que utilizarei a raçáo de guerra, mas eles náo querem nem saber, dizem que é assim mesmo e para eu náo esquentar.
Almoço com eles de novo, Franklin diz que passou um furacáo extra tropical próximo da costa, por isto este vendaval fortíssimo.
Acho que até já identifiquei a sogra, mas essa náo prcisa morrer para se transformar. Acho que ela exagerou!
Pô, furacáo extra tropical...
A bruxa é poderosa. Por isto que os furacóes têm nome de mulher!
- Só há uma coisa mais poderosa que praga de sogra...
- O que é tenente?
- Praga de "falecida"!
- É verdade tenente. Eu conheço um amigo que a "ex" riscou o carro por 3 vezes. Cada vez que ele repintava ela voltava e riscava.
- Ela tinha ciúmes do carro...Isso é normal?
- Claro, sáo coisas do cromossomo XX.
- Cada uma tem ciúmes de coisas náo vivas, como carro, poster de mulheres, do tempo que o marido passa com os amigos...
- Isso é que nem futebol. Vocês já viram jogador de futebol gostar de ser substituído?
- É tenente, mas é a lei da vida. Se náo estáo jogando direito têm que ir pro banco e aguardar uma nova chance!
- Homem náo é assim, ele sempre parte para outra, a natureza sempre se renova.
- Para as mulheres é mais difícil, o tempo de vida útil é menor...
- Isso está mudando. Agora tem botox, silicone, plástica, etc... Há cada coroa!
- Como diz o brody Rojas: Se Deus fez coisa melhor, guardou só para Ele!
- Chega! O que é que estávamos fazendo?
- Iríamos invadir a banda oriental (Uruguai).



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