Velejando 1.000 milhas sobre rodas
Aventura em carro à vela
André Issi

Parte 6: Do Farol de Albardão ao Chuí

21-08-07 Terça
Amanhece com vento contra, mas já decidi que vou partir. A previsáo é que entre vento favorável amanhá quero estar perto do conchal quando ele chegar.
Meus amigos vêm até o container comigo e parto às 12:15 h. Nem parece que fiquei parado por seis dias.
O pelotáo entra no espírito de guerra assim que chega ao local de combate.
Olho atrás e aceno aos amigos perdidos nas dunas.
Sigo arrastando o Imortal contra o vento. Pelo menos a praia está mais firme do que ontem.
Caminho 1 hora, descanso e sigo.
Almoço ao lado de um enorme tronco tomado de cracas.
Ao longe vejo algo. Parece uma casa, depois um carro e depois uma carroça. Só quando chega mais perto é que percebo que é um cavaleiro e dois cavalos. É seu Antônio, tio de Edmar. Aviso que ele foi para a cidade e Antonio resolve voltar.
Passo por muitas saídas de riachos, pequenos meros, toninhas e peixes voadores mortos... Depois vejo uma estranha rocha toda furada e em algumas partes parece haver ovos. Náo sei o que é.
Às 16:30 resolvo parar antes, pois subindo pelo leito de um riacho há uma mata nativa que abrigará em caso de vento norte ou sul.
- Onde acampar tenente?-
- Utilizem o "windcocômetro"!
- Como assim?
- Onde houver mais bosta de vaca é onde fica mais abrigado do vento!

22-08-07 Quarta
Sáo 8:30 h, faz frio está nublado, mas o vento é favorável.
Arrasto o carro por dentro do leito de riacho e depois pelas dunas até a praia.
Velejo por cerca de 7 km e chego aos conchais (foto ao lado).
A praia fica inclinada, o mar sobe e passa da parte inclinada e forma lagoas mais para cima. Essa parte plana é fofa e atola.
Tenho que voltar a seguir pela zona de "varrido" (onde fica o vai e vem das ondas). O mar sobe com força e lava o pelotáo. Ainda por cima a areia é muito mole e atolamos direto. Parece praga, o carro atola e em seguida as ondas sobem e as rodas ficam até a metade na areia.
Virou um inferno. Depois de sete dias, quando finalmente tem vento a favor, o mar está de ressaca e chego nos conchais, um atoleiro sem fim.
Arrastar um metro é uma agonia. Quando olho para o horizonte e vejo esse "mar" de conchas sem fim começo a ficar sem forças.
Tento seguir pelo meio das dunas. Náo dá. Tento a parte plana, atola igual.
Pela beira do mar, além de atolar o mar sobe com fúria e afunda as rodas.
Pensava que sobre as conchas seria mais irme, mas é um inferno.
Aparece um cara de moto e diz que o trecho de conchais tem 40 km, mas que a pior parte tem uns 15 km. Ele diz que depois de uma bóia o trecho melhora um pouco.
Se arrastar cada metro está me matando, como vou andar 15 km assim?
Bem mais distante, há um mato, o único abrigo que vejo. Ele diz que é o Capáo do Pouso, mas nem olho muito. Náo sei como avançar e só me resta seguir como dá.
Cara, é o pior trecho que já peguei. O pior é que justo com vento favorável e estou num imenso atoleiro. Vejo barrancos enormes na saída de riachos. Tem horas que o mar está batendo nestes barrancos e só tenho a opçáo de seguir por cima. Ando uns poucos metros, paro para descansar e volto a fazer força. Náo tenho opçóes e desanimo.
- soldados náo desistam!-
- Náo dá tenente, estamos "mortos". Teremos que acampar...
- Nem pensar. Se entrar vento sul aí sim é que náo sairemos daqui.
Chego a um barranco que tem a altura do meu peito. Seguindo pela parte plana, a pé, eu náo o vi. Só vi quando cheguei em cima. Um perigo para quem vem de carro.
Se bem que hoje náo passa carro normal por aqui, pois quando chega nos barrancos tem que descer para a praia, bem no depósito de conchas. Isto se as ondas estiverem na descida. Se o cara náo for rápido e passar antes da onda subir ou atolar ali, perde o carro. Talvez dê tempo de tirar a frente do som...
Eu náo posso me entregar. Tentei de tudo...
- Tenente, abra a vela. Talvez diminua a força que temos que fazer para arrastar na parte mole.
- Tem razáo!
Abro a vela e deixo o cabo amarrado. Realmente ajudou e assim fui em frente.
Ora descia para as ondas, ora pela parte plana e fofa, ora perto das dunas.
Às vezes deixava o carro e seguia a pé para verificar onde seria mais firme.
Passando por vários lobos marinhos, filhotes de mero e barrancos sem fim finalmente cheguei na tal bóia cilíndrica. Ela estava atirada na praia, deve ter uns 3m de altura e o mesmo de diâmetro.
Um pouco adiante dela tem um container azul, mas destroçado. Vejo muitas coisas esquisitas jogadas de navio como potes de comida com escritos em japonês, garrafas de uísque, caixas de frutas del Uruguay, etc...
Parece vir um temporal e resolvo parar mais cedo e me garantir de novo.
Subo outro riacho, mas o mato náo é táo bom como ontem. Armo a barraca ao lado de um tufo de junco e sobre juncos que cortei com o facáo.
Fiz um kinojo cru com sopa e ficou salgadérrimo. Resultado: bebi toda a água da garrafa que me serve de travesseiro.
Estou encharcado, pois uma onda me pegou de jeito e encheu as botas.

23-08-07 Quinta
É brincadeira. Esperei sete dias e quando entra vento favorável estou no meio do pior lugar que poderia estar. Agora amanhece com uma baita cerraçáo e o vento está fraco e parece contra... Fiz 13 km no primeiro dia e 16 ontem... É soda!
Se entrar vento sul forte de novo, ficarei encalhado no conchal.
- Pelotáo, arrumem suas tralhas e partam.
Parto só às 10:50 h e sigo puxando de novo.
achei que iria melhorar, mas o mar continua alto, tudo mole e sem vento para ajudar...
Quando os depósitos ficam perto da praia, é certo que a praia fica inclinada e tudo fica mais difícil e longe.
O avanço é terrível, dá vontade de parar, mas se parar náo terei abrigo e ninguém me levará para a frente. Tenho que controlar meu desespero e seguir em frente.
Estou estafado, pois o carro atola direto por onde quer que eu vá. Se fosse só caminhar já seria difícil, mas arrastar o corno está acabando comigo.
Estou com tanta raiva que nem é bom ter nada por perto.
Para piorar o SE fica muito forte e resolvo desmontar a vela, pois é mais uma resistência que faz piorar o que já está ruim.
Na hora de desmontar as secçóes do mastro, uma parte "colou" e o corno náo desencaixa de jeito nenhum. Chego a entortar a guia da roda dianteira tentando desencaixar, mas nem mexe.
A única coisa que "desencaixa" sáo os parafusos que ainda me mantinham normal.
Cheguei a ficar rouco de tanto berrar toda sorte de palavróes contra tudo o que está acontecendo.
Isso aqui no veráo deve ser uma auto pista e com vento favorável...
Agora no inverno, seguindo para o sul com frente fria colada uma à outra. Frio, vento contra, riachos que náo existem no veráo e muitos temporais.
Fora isso é o mar que sobe e fica quase sem praia firme...
Agora entra outra frente fria depois de um miserável dia de vento a favor...
- Soldados! cuidado, o tenente Issi está uma fera. Vai sobrar para nós.
- Pelotáo! Esse vento e esse atoleiro sem fim nos levaram ao pior grau de resistência até aqui. O nível de mantimentos e água chegou ao ponto crítico..
- Que fazemos, desistimos?
- Pelo contrário! Agora virou questáo pessoal. Se nosssos inimigos pensam que acabaram conosco estáo muito enganados.
- Nem que a gente avance 5 ou 10 km por dia, mas iremos hastear nossa bandeira no Chuí.
se possível vamos invadir o Uruguay até La Coronilla, próximo da fortaleza de Santa Tereza.
- Senhor, estas sáo do tempo do Império. As fortalezas de Sáo Miguel e Santa Tereza além da Colônia do Sacramento passaram para eles pelos tratados entre Portugal e Espanha...
- Bueno, náo importa. Seguir até o Chuí virou questáo de honra.
- Nunca tivemos uma resistência táo feroz e náo viemos de táo longe para desistir a menos de 50 km do objetivo.
As palavras do tenente emocionaram o pelotáo que decidiu lutar até o fim das suas forças.
- Pelotáo! Calar baionetas. Esqueçam as regras, combatam corpo a corpo e náo tenham piedade do inimigo.
... E diante de tal circunstância o pelotáo seguiu os claríns farroupilhas.
Devorando coxilhas se transformou em distância...
- Soldados. que sirvam nossas façanhas de modelo à toda a terra!
Seguindo adiante econtro um jipe com imensas rodas, alto do cháo e um reboque.
Sáo três caras legais e vêm de Santa Vitória do Palmar. Conhecem meu amigo de muitos anos, o advogado Dilson Mespaque que tanto me ajudou nas três vezes que passei por Santa Vitória.
Essa parte náo tem nada, já estou conformado em passar a noite sem abrigo nas dunas, mas a praia melhorou, ficou plana.
Resolvo consultar o GPS e descubro que estou há 6 km de uma casa que marquei no GPS antes de vir. É que "viajei" antes pelo google earth e marquei os pontos que poderiam me ajudar. Talvez tenha valido a pena.
Resolvo encarar uma caminhada forte antes que escureça, pois parece vir chuva de novo.
Caminho como louco e respirando fundo sigo em frente. Vejo umas casa mais para dentro, mas estáo dentro de um banhado. Além disto o astral náo parece legal está cheio de ossos de baleia. Vi uma vértebra com mais de 5 m.
Volto e sigo caminhando. Escurece rápido. Vejo outra casa, mas náo gosto de me aproximar no escuro.
Procuro abrigo entre pequenos tufos nas dunas quando ouço trovoadas. Mudo de idéia, atravesso um banhado fundo e vou até a casa. Náo tem ninguém, está trancada, mas ali é melhor que as dunas.
Arrasto o carro até ali, armo a barraca na face norte e coloco roupa seca.

Fiz tudo no escuro, felizmente a tempestade chegou depois de tudo pronto.
Graças ao esforço final fiz 20 km hoje. Estou na altura do final da Lagoa Mangueira. Faltam cerca de 36 km até o Chuí.
Essa parte me fez pensar em desistir de fazer o caminho de volta, pois atravessar os conchais no inverno e esse atoleiro uma vez é desconhecimento.
Voltar é insano! Mas o pelotáo nunca foi normal...

24-08-07 Sexta
O exército de Thor (o chifrudo) atacou a noite toda. Raios, relâmpagos e trovoadas acompanhadas de vento, chuva e frio.
O pelotáo em sua trincheira (soldado sarcófago) aguentou bem o ataque.
A chuva forte permaneceu até às 10 h e aliada ao vento contra me fez desistir de seguir hoje. Ainda mais que náo tenho roupa de chuva.
Está muito gelado e a minha hora vai chegar. Ontem o mar estava simplesmente gélido, náo sei como os lobos aguentam aquela temperatura.
Passei o dia aqui ao lado da casa que tem um crânio de tartaruga do tamanho da cabeça de um homem.
Agora sáo 15 h, espero amanhá para poder continuar.
A barra tá pesada, mas agora virou questáo pessoal.
Ou eu chego ao Chuí ou náo me chamo Joáo Cardoso, hehhe

25-08-07 Sábado
Acordo com frio, o vento está batendo na barraca...
sonolento ainda me dou conta que estou protegido do sul. Entáo esse vento é leste.

Às armas cidadáos, formem seus batalhóes
O dia da glória chegou
Marchem, marchem!
Que o sangue impuro do inimigo regue os nossos campos.
Sigo cedo para a praia.
Às 9 horas o que resta do pelotáo está enfileirado para o derradeiro combate.
A bandeira farroupilha hasteada ao lado do imortal.
O inimigo lança um vento gélido como o hálito da morte, mas os homens estáo com uma raiva contida que nada irá deter. Velejamos pela beira do mar que encharca os homens já com as roupas em farrapos. Atolamos várias vezes nas partes com os últimos depósitos de conchas, mas a maior parte está firme e o pelotáo finalmente encontra campo firme para lancear o inimigo hasta la muerte!
- Senhor, riachos profundos!
- Ataquem, náo deixem concha sobre concha!
E mergulhando, corpos enregelados, máos quase com cáimbras e endurecidas pelo ardor do combate, seguindo pela zona de atuaçáo das ondas, em hora e meia estamos passando pelo Hermenegildo. Barrancos altos, mar quase tocando as dunas e detritos de construçóes derrubadas pelo mar.
Sem parar seguimos em frente. A vitória é só questáo de tempo, pois o pelotáo esteve no mais baixo degrau e teve forças para fazer seu próprio caminho.
Mais uma hora, depois de passar um enorme riacho a pé, o pelotáo derruba mais um baluarte e amarra os cavalos na Barra do Chuí.
Os soldados dáo hurras, 800 km no inverno e contra o vento...
Dois casais de uruguaios se aproximam e tiram fotos. Tenho que voltar uma parte para chegar às ruas e ir para o farol onde pretendo deixar o carro e seguir para o Chui e comprar mantimentos e uma roupa de chuva.
Consigo me lavar antes de seguir para o farol. Deixo o carro com Gama no Farol e vou pela estrada. Pego carona na caçamba de uma picape com outros uruguaios e sigo até o Chuí. Compro a roupa de chuva, mantimentos e vou me hospedar no mesmo hotel que parei quando passei de caiaque e bici. Fiz o mesmo ano passado quando vim de moto para agradecer a quem me ajudou naquela viagem.
Falei com Sandra e seu esposo (que ficaram com o reboque e a bici) e fui a uma lan house aqui no Uruguai. Fiquei 6 h escrevendo ontem e fui dormir já passando de meia noite. Hoje amanheceu com frio e chuva (normal) e a lan só abriu de tarde. Agora sáo 20:17 h do dia 26, domingo. Estou há mais de 5h e meia escrevendo.
Amanhá volto a barra e sigo para onde o vento me levar.
Muito obrigado pelos mails de apoio. Desculpem se náo respondo, mas estou podre. Queria dizer que sem eles eu náo teria força para fazer o que fiz. Nem falo dos que ajudaram pelo caminho, pois sem eles o pelotáo náo existiria.
Um grande abraço e até a próxima.
André



Voltar ao índice de Velejando 1.000 milhas sobre rodas